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2.5 Variação e interferência linguística

2.5.4 Alguns fenômenos selecionados

2.5.5.2 A variação morfossintática no âmbito da concordância verbal e nominal

Por se tratar de mais um dos aspectos analisados em nossa pesquisa, no âmbito da interferência por transposição do ponto de vista morfossintático, neste subcapítulo discorremos acerca do fenômeno da concordância verbal e nominal. Além do ponto de vista da abordagem tradicional, verificamos a concordância com base em uma perspectiva funcionalista centrada no uso, por considerar a necessidade de se verificar o modo como os usuários da língua se comunicam eficientemente, o que implica considerar as estruturas linguísticas como configurações de função, conforme Neves (1997).

Para Possenti (2002), o ensino de gramática na escola deve partir das noções que o aluno tem em mente, resultantes de suas interações verbais, seguindo para aquilo que ele realmente usa nas situações concretas de comunicação para assim, chegar ao que é mais elaborado, uma vez que é papel da escola criar as condições para que o aluno aprenda também as variedades que não conhece – as cultas -, tornando-se este falante capaz de se expressar nas mais diversas circunstâncias, obedecendo às exigências e às convenções determinadas pela situação de comunicação.

Em relação à gramática normativa, entende-se por regra na concordância verbal o fato de que nas construções em que apareça um só núcleo, o verbo deve se conformar ao número e à pessoa do sujeito. Sendo um fato morfossintático, essa relação entre verbo e sujeito se concretiza por meio das desinências verbais de natureza número-pessoal, de acordo com Vieira (2007). Ainda para a autora, variáveis linguísticas e extralinguísticas atuam como condicionadoras da concordância e da não-concordância na fala.

É bastante perceptível a concordância entre os falantes escolarizados, principalmente se o sujeito estiver anteposto ao verbo, mesmo fator que ocasiona a ausência da marca de plural entre os não escolarizados. Sendo assim, o ensino da concordância verbal justifica-se pelo fato de a ausência dessa marca constituir um traço de estigmatização, que se revela, sobretudo, no âmbito escolar, segundo Vieira (2007). Podemos constatar, portanto, que as propostas de ensino devam surgir de uma realidade próxima do falante, com dados que correspondam ao uso.

No que se refere à aplicação, sugere-se que os aspectos motivadores para a não concordância devam ser exemplificados para que o aluno adquira a regra tanto para a modalidade escrita quanto para a falada, isto é, a partir de uma situação efetiva de uso. Para Possenti (2002), o trabalho com a gramática na escola não deve desconsiderar a gramática normativa, mas que este deve consistir em práticas efetivas, significativas e contextualizadas nas quais é importante fazer-se entender pelo outro e entender o que o outro diz, priorizando, assim, o caráter funcional da linguagem.

Embora o tema da concordância seja de grande relevância quando o assunto é o emprego de variedades cultas, este ocupa, geralmente, a listagem de conteúdos nas séries finais do Ensino Fundamental. Em alguns livros didáticos, por exemplo, ainda se pode perceber que a explanação do tópico concordância verbal vem sendo pautada na demonstração da regra geral seguida de exercícios os quais consistem na exploração dos casos especiais como podemos ver nos exemplos6 a seguir:

Observe estes dois trechos do texto “Uma escolha para a História7”:

I “As mudanças climáticas foram causadas ao longo do século [...]”. II “A vitória sobre as mudanças climáticas exigirá o triunfo do otimismo [...]”.

a) Em que número e pessoa está a locução verbal destacada no trecho I?

6 Os exemplos referem-se a exercícios retirados da Coleção Jornadas. Port, edição 2012, 9º

ano, páginas 296 e 297.

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b) Em que número e pessoa está a forma verbal destacada no trecho II?

Observe agora a posição do sujeito composto neste trecho:

“Já foi elaborada para a publicação a retrospectiva do ano e as notícias de hoje”.

a) O sujeito está posposto ou anteposto à locução verbal? b) A locução verbal está no singular ou no plural?

c) Podemos concluir que a locução verbal concorda com os dois núcleos do sujeito composto? Explique.

Pelos exemplos acima, podemos perceber que a tendência das propostas é a de privilegiar a concepção de variedades cultas, contemplando- se a regra geral e desconsiderando aspectos relacionados à noção de variação linguística, tão presentes nas situações concretas de comunicação.

Do ponto de vista da Linguística Funcional, de acordo com Vieira (2007), pode-se conceber a concordância verbal como um fato variável em situações concretas de interação, ou seja, a concordância pode ser concretizada ou não pelo usuário da língua em função de fatores diversos de natureza linguística ou extralinguística.

Entre as variáveis linguísticas, podemos mencionar, segundo Vieira, 2007, p. 88-89:

a) a posição do sujeito em relação ao verbo: sujeitos pospostos tendem a favorecer a não-concordância. (Chegou os menino (s));

b) a distância entre o núcleo do sintagma nominal sujeito e o verbo: quanto maior a distância, maior o cancelamento da regra de concordância verbal (Os livros, sobre a viagem dos navegantes do século XVI, já menciona o fato);

c) o paralelismo no campo oracional: o menor número de marcas explícitas de plural no sujeito levaria à ausência de marcas de plural no verbo (os peixe nada velozmente);

d) a animacidade do sujeito: sujeitos de caráter animado (peixe, homem), os quais funcionam como agentes da oração, em geral,

tendem a favorecer a marca de plural no verbo, enquanto os de natureza inanimada (barco) não a favoreceriam;

e) o paralelismo no campo discursivo: no caso de verbos em série discursiva, a ausência de marcas de plural em um verbo levaria a ausência da marca nos verbos seguintes (os peixe pula, corre, nada sem parar);

f) a saliência fônica (além da relação entre a tonicidade e o número de sílabas das formas singular e plural): no que se refere à diferença material fônica entre as formas singular e plural, as formas verbais mais perceptíveis, mais salientes (como por exemplo cantou/ cantaram ou é/ são), seriam mais marcadas no plural do que as menos perceptíveis, ou menos salientes (come/ comem);

g) o tempo verbal e o tipo de estrutura morfossintática: ainda pode-se testar a hipótese de que os índices de concordância poderiam ser diferenciados, dependendo do tempo verbal e da construção sintática.

Já em relação às variáveis extralinguísticas, consideram-se a localidade e a faixa etária a que pertencem os participantes da pesquisa, além do nível de escolaridade.

No que se refere à concordância nominal, de acordo com a gramática normativa, trata-se da reiteração do mesmo conteúdo morfológico - categoria de gênero ou de número – de um nome no determinante – artigo, pronome demonstrativo ou possessivo e/ou adjetivos a ele inter-relacionado sintática e semanticamente, o que funciona, diversas vezes, como uma marca explícita ou redundante dessa interdependência, segundo Brandão (2013). Para exemplificação, de acordo com a visão estruturalista de Camara Jr (1979, p. 92, apud BRANDÃO, 2013, p.57), a distribuição da categoria gramatical de gênero nos nomes segue três padrões: nomes substantivos de gênero único: a criança/ a criatura; nomes de dois gêneros sem flexão: o/a estudante; nomes substantivos com flexão redundante: o autor/ a autora.

Quanto à modalidade falada popular, no âmbito do sintagma nominal, doravante SN, observamos os estudos de Scherre (1998; 1989a; 1989b; 1992; 1994; 1996; 2005, apud BRANDÃO, 2013), os quais constatam diferenças de

padrões de concordância, tendo em vista o diversificado número de constituintes que pode compor o SN, e ainda, outros fatores que o condicionam. Para focalizar a questão, de acordo com Scherre, é necessário levar em conta aspectos relevantes ligados mais propriamente à estrutura do SN, os relativos a alterações morfofonológicas decorrentes de mecanismos de flexão; às características dos falantes (sexo, idade, nível de escolaridade, área de origem ou de residência – urbana, rural); à situação de intercomunicação (formal, informal) e à modalidade de língua (falada, escrita).

Para os estudos mencionados (Brandão, 2013, p. 63-65) interessam, em particular, três classes: a) a que ocupa, categórica ou usualmente, posição à esquerda do núcleo – a dos determinantes, composta por artigos, demonstrativos e possessivos; b) a dos quantificadores, que inclui vocábulos que exprimem diferentes tipos de quantificações; e c) a dos adjetivos, que pode ocorrer à direita ou à esquerda do núcleo.

Exemplos: Comprei um livro interessante. Comprei um interessante livro.

Brandão (2013) nos apresenta ainda as variáveis importantes para o estabelecimento de concordância nominal, entre elas o fato de os constituintes estarem comprometidos morfossintaticamente com um elemento nuclear (o nome) e o princípio da saliência fônica, proposto por Lemle e Naro (1977, apud BRANDÃO, 2013), que consiste em uma “maior ou menor identidade entre as formas de singular e plural dos vocábulos” (BRANDÃO, 2013, p. 64).

Graus de saliência fônica

Quadro 04: graus de saliência fônica

Fonte: Scherre (1988. p. 75-76, apud Brandão, 2013, p. 64)

Outro princípio analisado no âmbito dos estudos da concordância nominal é o do paralelismo formal, o qual

consiste na ideia de que marcas levam a marcas e zeros levam a zeros, isto é, de que uma vez presente, por exemplo, o morfema (a marca) – S, de plural, num constituinte do SN, este poderia condicionar a presença do morfema no elemento subsequente, o mesmo ocorrendo em relação ao Ø (BRANDÃO, 2013, p. 65, grifo da autora).

Exemplos:

TodosS oS meuS alunoS leram o livro. Comentei oS livroØ didáticoØ.

À face do exposto, podemos concluir que diante das mais variadas situações de uso da língua, trata-se de um desafio para o professor o trabalho com a gramática normativa em sala de aula, uma vez que, para muitos, ainda é cultural considerar a aula de português como a mera reprodução das regras prescritas pela gramática normativa para a modalidade escrita. Conforme já mencionado, costuma-se reputar a fala, por exemplo, como sinônimo de “caos”, em que tais regras não são aplicadas. Entretanto, embora seja o papel da escola permitir o acesso às variedades cultas, é fundamental também que se proponham atividades em que sejam refletidas as questões de uso dentro das

diversas situações de comunicação. Considerando especificamente a concordância verbal, conforme diz Vieira (2007), é importante que se promova o raciocínio lógico-científico do aluno, para que ele desenvolva o conhecimento sobre as relações e esteja consciente da valoração sociolinguística, de modo a fazer de forma consciente as opções linguísticas na produção de textos orais ou escritos.

Ainda de acordo com os PCN, o trabalho com a gramática não é mais visto como um fim em si, mas como um meio para o desenvolvimento das competências linguísticas do aluno. No que se refere à Língua Portuguesa, não se deve desconsiderar os elementos que a constrói, uma vez que para compreendê-la, é necessário se refletir sobre seus usos comunicativos e, nessa perspectiva, os PCN apontam uma série de variáveis com que o aluno tem de lidar, no papel de enunciador, tais como: lugar social do locutor em relação ao destinatário; o lugar social do destinatário; intenção do autor; tempo e lugar da produção e do suporte.

2.5.5.3 A alternância entre os verbos ter e haver em estruturas