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A ampla defesa e o princípio da isonomia

Capítulo III – A ampla defesa

3.7. A ampla defesa e o princípio da isonomia

O princípio da isonomia140 decorre do ideal de igualdade assegurado pela Constituição Federal brasileira de 1988 em várias passagens.141 Tal enunciado possui origens na Revolução Francesa, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, tendente a abolir privilégios a determinadas classes sociais em detrimento de outras.142-143-144

139 VACCARELLA, Romano; e, GIORGETTI, Mariacarla.

Codice di procedura civile annotato con la giurisprudenza, Milano, Utet Giuridica, 2007, p. 445.

140 Não se ignora a distinção feita por alguns juristas entre igualdade e isonomia, sendo aquela a expressão da exatidão formal que não leva em conta as diferenças inerentes a cada pessoa, e esta, instituto que preconiza tratamento igualitário somente a quem estiver em idêntica situação, possibilitando tratamento diferente a quem encontrar-se em situação desigual na medida desta desigualdade. Neste sentido, STUMM, Raquel Denize, Princípio da igualdade, Estudos Jurídicos vol. 23 n.º 59, 1990, p. 69: “o conceito de igualdade a que nos referimos é amplo e integrante do Direito Natural. (...). A isonomia é buscada na ratio, meio que permite igualar o homem”. Contudo, neste trabalho tomar-se-ão ambas as expressões como sinônimas.

141 Com efeito, quando a Magna Carta estatui como um dos objetivos fundamentais da República, a construção de uma sociedade justa (CF, art. 3º, I), quer-nos parecer que pretendeu conferir igualdade a todos os seus membros. Outrossim, também é objetivo primordial a redução de desigualdades sociais e regionais (CF, art. 3º, III); assim, parece que o intento do legislador foi buscar a igualdade como marco para a almejada sociedade justa. Por fim, mas não com pensamento em esgotar os exemplos, fica tal preceito explicitado quando se diz que todos são iguais perante a lei (CF, art. 5º, caput). Todos estes exemplos servem para ilustrar o citado ideal de igualdade ora comentado.

142 “Artigo 1º- Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundar-se na utilidade comum”.

143 Apenas a título ilustrativo histórico, segundo lição de SILVA, José Afonso da, op. cit., p. 215- 216, o princípio da isonomia passou por três grandes fases: a nominalista, a idealista e a realista. A primeira fase, nominalista, a desigualdade era marca de uma dada sociedade em um momento histórico em que havia uma concepção segundo a qual as pessoas nasceriam desiguais e assim permaneceriam até a morte. A segunda etapa, idealista, passou-se a identificar a igualdade absoluta entre as pessoas, de modo que a lei deveria ser aplicada de modo idêntico a todos. Na terceira fase, realista, percebe-se que os homens possuem diferenças, e estas diferenças devem

Segundo CHAÏM PERELMAN “la noción de justicia sugiere a todos

inevitablemente la idea de uma certa igualdad”. E complementa: “La idea de justicia consiste en una cierta aplicación de la idea de igualdad”.145

Assim, tem-se que a ideia de igualdade está intimamente ligada àquela noção de justiça, de probidade, no sentido da observância de direitos e deveres, que implicarão no tratamento igualitário a todos.146-147

Para PINTO FERREIRA, a isonomia “procurou tornar inexistentes os

privilégios entre os homens por motivo de crença, nascimento ou educação”.148 Já CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO afirma que o princípio da

isonomia coaduna-se a uma reafirmação do direito fundamental à igualdade, devendo nortear as relações jurídicas, bem como possibilitar às partes tratamento

ser levadas em consideradas para a exata dimensão do princípio da igualdade. Desta forma, iniciou-se o pensamento de que tais diferenças devem ser sopesadas para chegar-se ao ideal conceito de igualdade.

144 Lembra STUMM, Raquel Denize, op. cit, p. 68 que “a ideia de que os homens são livres e iguais em direitos provém dos pensadores do Contrato Social (Rousseau, Locke, Hobbes, Montesquieu). Teoria desenvolvida no século CVII, cujo ideal vai desencadear em documentos como as declarações americana e francesa”.

145 PERELMAM, Chaïm, De la justicia, trad. Ricardo Guerra, México, Centro de Estudos Filosóficos da Universidade Nacional Autônoma do México, 1964, p. 25-39.

146 MARTINEZ, Maria Del Pilar Hernandez, El principio de igualdad en la jurisprudência del tribunal

constitucional español, Boletim Mexicano de Derecho Comparado n.º 81, 1994, p. 699-701

reconhece uma dupla acepção no que tange à igualdade: a igualdade no conteúdo da lei e a igualdade na aplicação da lei. Neste prisma, a primeira vertente, a igualdade na lei, seria entendida como uma consequência da generalidade e abstração da norma com eficácia erga

omnes, implicando a submissão dos indivíduos ao ordenamento jurídico. Já a igualdade na

aplicação da lei seria a correta aplicação, inclusive quando a própria lei prescreve tratamento desigual.

147 Neste sentido também é o manifesto de TABORDA, Maren Guimarães, O princípio da

igualdade em perspectiva histórica: conteúdo, alcance e direções, São Leopoldo, Estudos

Jurídicos vol. 30 n.º 80, 1997, p. 126128. Segundo a autora “a chamada ‘igualdade perante a lei’ é a aplicação correta da lei qualquer que seja o seu conteúdo, isto é, ainda que ela não prescreva um tratamento igualitário, mas um tratamento desigual. Esta igualdade será, portanto, ‘conformidade com a norma’ e difere, segundo numerosos juristas, da ‘igualdade da lei’ ou igualdade na formulação do direito, concebida como igualdade material ou que vincula também o legislador”.

igualitário e obtenção das mesmas oportunidades em quaisquer procedimentos.149-150

Entretanto, a igualdade não é aquela formal, segunda a qual deve ser dado o mesmo tratamento a todas as partes, independentemente de sua condição, ou seja, sem levar em conta diferenças básicas.

Na concepção de JOSÉ AFONSO DA SILVA, “a isonomia ou igualdade

não deve ser entendida em sentido individual, que não leve em conta as diferenças entre grupos. Não se pode tratar todos de maneira abstratamente igual, pois o tratamento igual não se dirige a pessoas integralmente iguais entre si”.151

A igualdade deve ser material, a ponto de equilibrar as pessoas segundo as diferenças ínsitas de todo ser humano e de uma coletividade. Desta forma, equalizando as diferenças, os pratos da balança tendem a se nivelar.

Aliás, segundo CARMEM LÚCIA ANTUNES ROCHA, “o que se quer é a

igualdade jurídica que embase a realização de todas as desigualdades humanas e as faça suprimento ético de valores poéticos que o homem possa desenvolver. As desigualdades naturais são saudáveis, como são doentes aquelas sociais e econômicas, que não deixam alternativas de caminhas singulares a cada ser humano único”.152

No dizer de NELSON NERY JÚNIOR, “dar tratamento isonômico às

partes significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida exata de suas desigualdades”.153-154

149 MELLO, Celso Antônio Bandeira de, Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, 3ª ed., São Paulo, Malheiros, p. 48-52.

150 Para MARTINEZ, Maria Del Pilar Hernandez, op. cit., p. 695 “en tanto significado de un mismo término, tal como lo hemos indicado, el princípio de igualdad se encuentra igualmente vinculado a la Demnocracia”.

151 SILVA, José Afonso da, op. cit., p. 215-219.

152 ROCHA, Carmem Lúcia Antunes, O princípio constitucional da igualdade, Belo Horizonte, Lê, 1990, p. 118.

E, neste passo, tomadas as lições acima aludidas, pode-se, em nossa concepção, afiliar o direito de defesa à isonomia.

Isto porque, a ampla defesa como direito da parte manifestar-se sobre as alegações e os pedidos de seu adversário, funda suas raízes no ideal da isonomia, o qual, por sua vez, pretende equilibrar forças das partes contendoras para decisão da quizila, de acordo com as normas legais.

Desta forma, em sendo permitido ao autor de uma ação judicial a busca de um seu pretenso direito ofendido, também deve ser conferido àquele contra quem foi deduzido o pedido, manifestar-se nos mesmos moldes e com a mesma utilidade com que a tutela jurisdicional foi posta ao adversário.

Noutras palavras, tanto o autor como o réu possuem o direito de ser ouvidos pelo Estado, nas mesmas condições do adversário, visando à defesa de seus interesses, com todo o arsenal processual possível e útil, posto à disposição. Eles se servirão do processo com a mesma possibilidade de argumentação e provas daquela destinada ao adversário, como meio de equilibrar o jogo.

Nos dizeres de GERALDO ATALIBA, o art. 1º da Constituição Federal

coloca o Brasil como um Estado de Direito, estando, pois, submetido à lei e à jurisdição, onde todos se submetem à condição de parte em igualdades de condições com outras partes, inclusive o Estado.155

Deflui deste contexto que a ampla defesa e isonomia ficam imiscuídas em um centro de forças único, dotado de uma significação tendente ao equilíbrio de forças das partes litigantes. Em sendo assim, se a uma das partes é dado produzir uma alegação ou prova, à outra, por via de consequência da ampla

154 Segundo MARTINEZ, Maria Del Pilar Hernandez, op. cit., p. 695 “la clausula de igualdad implica una justificación de la desigualdad, dentro de los limites de lo que se considera justi- racional, razonable y proporcional – dependiendo del ámbito territorial, espacial y temporal en el que se analiza”.

155 ATALIBA, Geraldo, República, igualdade e ampla defesa – o caso “folha”, Revista dos Tribunais vol. 661, 1990, p. 235.

defesa e da isonomia, também poderá se servir dos mesmos expedientes para afastar a pretensão do adversário.

RAQUEL DENIZE STUMM afirma que “o direito à igualdade de

tratamento é um direito subjetivo de cada cidadão. Logo, a esfera de discricionariedade que possui o Poder Público deve vincular-se obrigatoriamente a esta qualidade de tratamento”. 156

Não seria crível, por exemplo, permitir que uma parte valha-se de uma perícia, impedindo o acesso de tal meio de prova à outra. Tanto a ampla defesa como a isonomia restariam ofendidas.

Como reconhece WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, a ordem

constitucional de 1988 não mais contemplou a isonomia dentre os demais direitos fundamentais, decorrentes da norma, vez que, agora, o princípio vem esculpido no próprio enunciado genérico do art. 5º. Segundo ele, “o princípio da igualdade perante a lei, enquanto signo da generalidade da norma jurídica (...) não se deriva diretamente de nenhuma situação jurídica subjetiva específica, mas antes como princípio regulador de todo o sistema positivo”.157

Em sendo assim, apesar de dialética e ontologicamente diversos, em nossa concepção, ampla defesa e isonomia são institutos jurídicos que se autocomplementam, vez que um confere o apoio necessário para que o outro seja observado em sua plenitude.