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A evolução da ampla defesa na Constituição Federal brasileira

Capítulo III – A ampla defesa

3.9. A evolução da ampla defesa na Constituição Federal brasileira

O direito de defesa na Constituição Federal hauriu grande prestígio, posto que elencado dentre os direitos e garantias fundamentais (CF, art. 5º, LV), estando, pois, insuscetível qualquer deliberação, via emenda constitucional, tendente à sua abolição.

Percebe-se, portanto, que a ampla defesa galgou importante difusão de conteúdo.

Impende assim analisar o desenvolvimento da ampla defesa nas diversas Constituições que sucederam esta atual em vigor.

Como ressalta MICHEL TEMER, isso importa diante da diversidade de

ideais e objetivos que surgem com o novo Estado, a cada nova Constituição. “O Estado brasileiro de 1988 não é o de 1969, nem o de 1946, de 1937, de 1934, de 1891, ou de 1824. Historicamente é o mesmo. Geograficamente pode ser o mesmo. Não o é, porém, juridicamente”.168

167 Em interessantíssimo entendimento, o STJ entendeu que “se a acusação valeu-se da totalidade das gravações para pinçar,segundo seu livre arbítrio e convencimento, as partes relevantes para embasar a denúncia, também à Defesa deve ser franqueado o mesmo direito, sob pena de clara inobservância à paridade de armas, princípio norteador, juntamente com os do contraditório e da ampla defesa, do processo penal constitucional acusatório; o préstimo dos conteúdos desses mesmos elementos deve ser avaliado pela defesa da parte, não cabendo ao Juiz antecipar desvalor quanto a eles, senão após o seu cotejo com todo o elenco probatório”, in, HC 199730/CE, Quinta Turma, Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 31/08/2011.

Apenas a título de curiosidade, a primeira Carta política que estruturou, ainda que precariamente, o poder no Brasil foi o Regimento de Tomé de Souza. Datado de 1549, o Regimento em questão nomeava o fidalgo e militar português Tomé de Souza então Governador Geral do Brasil. “Sua nomeação, pelo rei D. João III (1502-1557), ocorreu num momento delicado para as conquistas ultramarinas portuguesas. A monarquia lusitana vinha sendo forçada a abandonar algumas praças africanas, como forma de reduzir despesas e manter os domínios no Oriente”.169

Claro que, então, não havia uma disciplina específica e expressa acerca do direito de defesa, visto que a intenção do Regimento de Tomé de Souza era, tão somente, organizar o Estado-colônia brasileiro como forma de fomentar o poder da coroa portuguesa. Assim, a Bahia foi nomeada como sede do Governo e eleitas algumas autoridades para administração geral.

Nos anos que seguiram à independência do Brasil, em 25.03.1824 foi outorgada170 a primeira Constituição Federal sob os influxos de ideias do liberalismo político, que transcendia a independência do Estado brasileiro: a Constituição do Império.

Dentre outras características, fora adotado o modelo de BENJAMIN

CONSTANT, sobre o modelo de repartição de poderes em quatro esferas: Poder

Executivo, Legislativo, Judiciário e Moderador (representado pelo Imperador).171 Não havia menção expressa acerca do direito de defesa, nos moldes como hoje é concebido; porém, por vias transversas era garantida a justiça e a

169 Cfr., COSENTINO, Francisco Carlos Cardoso, A difícil missão de Tomé de Souza, homem de

confiança de D. João III e primeiro governador geral do Brasil,

http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/o-braco-do-rei. Acesso em 04.11.2011.

170 Adota-se aqui a classificação de ARAÚJO, Luiz Alberto David; e, JÚNIOR, Vidal Serrano Nunes, Curso de direito constitucional, 5ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001 , p. 04, segundo a qual Constituição Outorgada é aquela “que é fruto do autoritarismo, geralmente imposta por um grupo ou pelo governante. São exemplos, no Brasil, a Constituição do Império de 1824, a de 1937 e ade 1967 (apesar de, quanto a esta, a doutrina apresentar alguma divergência)”.

171 Cfr. BONAVIDES, Paulo, Curso de direito constitucional, 21ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 363-364.

equidade como valores a serem seguidos. É a hipótese do art. 179, XVIII, que preconizava tais primados como norte para o legislador. 172

MOACYR CARAM JÚNIOR assevera que “o Direito Constitucional

Brasileiro, desde a Constituição de 1891, consagra o princípio da ”ampla defesa“, limitado, todavia, ao processo penal. O preceito do art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal em vigor é a novidade em nosso direito.173

Como ressaltam LUIZ ALBERTO DAVID ARAÚJO e VIDAL SERRANO

NUNES JÚNIOR, “essa Constituição trouxe uma declaração de direitos individuais e

garantias que, nos seus fundamentos, permaneceu nas Constituições que se seguiram”. 174

Iniciava-se, a partir de então, o embrionário da ampla defesa.

Posteriormente, após a proclamação da república, em 24.02.1891 foi promulgada a Constituição Federal, que trouxe alguns aspectos comuns com a Constituição americana, como o sistema republicano, a forma presidencial de governo, a forma federativa de estado com separação de competências entre União e Estados, bem como a criação de uma Suprema Corte de Justiça para analisar casos de inconstitucionalidade. 175

Além disso, passou-se a adotar a clássica tripartição de poderes de MONTESQUIEU: Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.176

172 CF/1824: “Art.179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. (...). XVIII. Organizar–se-ha quanto antes um Codigo Civil, e Criminal, fundado nas solidas bases da Justiça, e Equidade. (...)”.

173 CARAM JÚNIOR, Moacyr, O julgamento antecipado da lide, o direito à ampla defesa e ao

contraditório, São Paulo, Juarez de Oliveira, 2001, p.74/75.

174 ARAÚJO, Luiz Alberto David; e, JÚNIOR, Vidal Serrano Nunes, op. cit., p. 73. 175 Cfr. BONAVIDES, Paulo, op. cit., p. 364-365.

176 CF/1891: “Art 15 - São órgãos da soberania nacional o Poder Legislativo, o Executivo e o Judiciário, harmônicos e independentes entre si”.

Já nesta Carta foi expressamente prevista a ampla defesa como direito inerradável das pessoas, no art. 113, 24.177 E não só neste dispositivo houve tal inserção, vez que outros dispositivos também passaram a consagrar o direito de defesa, como, por exemplo, o art. 107, “c”, que deferia a garantia de defesa àqueles tivessem em vias de perder a nacionalidade brasileira; ou dos agentes públicos que somente poderiam perder o cargo mediante sentença judicial ou processo administrativo em que lhes fosse garantido o direito de defesa (art. 95, § 3º).

A Constituição Federal de 1934 foi promulgada no dia 16 de julho daquele ano, tendo como fonte de inspiração a Constituição de Weimar 178, reelaborou o processo eleitoral admitindo o voto feminino, bem como aumentou consideravelmente os poderes da União, conferindo aos Estados poderes remanescentes.

Pontificam LUIZ ALBERTO DAVID ARAÚJO e VIDAL SERRANO NUNES

JÚNIOR, que “seu traço característico, no entanto, reside na declaração de direitos

e garantias individuais, pois, ao lado dos direitos clássicos, inscreveu um título sobre a ordem econômica e social, sobre a família, a educação e a cultura, normas de caráter dogmático”. 179

Sobre o direito de defesa, a Constituição Federal de 1934 praticamente em nada inovou, permanecendo até mesmo o enunciado idêntico à Carta anterior.180

177 CF/ 1891: “Art 113 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: (...). 24) A lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os meios e recursos essenciais a esta. (...)”.

178 Como lembra MOREIRA, Vital, 50 anos da lei fundamental alemã, Revista Jurídica Virtual, Brasília, vol. 1, nº. 2, 1999. Acesso em 04.11.2011, “Nasceu quatro anos depois da Guerra como lei constitucional provisória da parte da Alemanha então ocupada pelos aliados ocidentais. Nem sequer lhe deram o nome de constituição, mas sim o de Lei Fundamental. Tornou-se, porém, na constituição definitiva da República Federal Alemã, por efeito da criação dos dois Estados alemães, um na parte ocidental e outro na parte oriental, coincidente com a zona de ocupação soviética (a República Democrática da Alemanha)”.

179 ARAÚJO, Luiz Alberto David; e, JÚNIOR, Vidal Serrano Nunes, op. cit., p. 75.

180 CF/1934: “Art 113 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à

Mas a Constituição de 1934 durou pouco mais de três anos, vindo a ser sucedida pela Carta de 1937, então outorgada por GETÚLIO VARGAS em 10 de

novembro daquele ano. E, neste passo, refletindo a mentalidade autoritária de então, alguns direitos e garantias individuais foram restringidos (como, por exemplo, a irretroatividade da lei e a reserva legal), bem assim excluídos do texto constitucional o mandado de segurança e a ação popular.

Em relação ao direito de defesa, a Constituição Federal, em nosso sentir, reduziu o alcance do instituto tal como previsto nas Cartas anteriores. Garantiu-se a defesa de direitos e interesses, mas sem aquela acepção de defesa ampla.181

Após a Segunda Guerra Mundial, houve um momento histórico de redemocratização do Brasil, sendo a Assembleia Nacional Constituinte convocada com o afastamento de GETÚLIO VARGAS. A nova Constituição foi aprovada em

18.09.1946 com os ideais de 1891.

Nesta Carta, vários dispositivos retirados da anterior foram novamente alçados ao texto constitucional, como o restabelecimento do cargo de Vice-Presidente, a retomada do regime democrático e a reintrodução do mandado de segurança e da ação popular. “Repudiou o Estado Totalitário veiculado pela Constituição de 1937, trazendo um modelo equilibrado e consagrador do Estado Democrático”.182

propriedade, nos termos seguintes: (...). 24) A lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os meios e recursos essenciais a esta. (...)”.

181 CF/1934: “Art 122 - A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: (...).7º) o direito de representação ou petição perante as autoridades, em defesa de direitos ou do interesse geral; (...)”.

O direito de defesa foi novamente prestigiado em vários enunciados, com a intenção de valorizar a democracia e assegurar o equilíbrio, em especial no que tange ao processo penal.183

A sexta Constituição do Brasil foi outorgada em março de 1967, e veio a lume após severa crise no quadro político-social do Brasil, precedida por golpe militar que tomou o poder em março de 1964.

Esta nova Carta manteve algumas disposições da Constituição de 1946, mas, com diversas modificações, tais como: eleições indiretas para Presidente da República, suspensão de direitos e garantias individuais, suspensão de direitos políticos, entre outros. A ideologia de então estava fundada na segurança nacional.

Apesar da nova ordem constitucional prever expressamente a ampla defesa184, fácil perceber que tal direito restou conspurcado, já que diversos direitos eram cassados, bem como suspensas garantias da magistratura, além da proibição de utilização de habeas corpus em matéria de crimes políticos contra a segurança nacional.

A doutrina constitucional muito tem discutido acerca da natureza da ordem constitucional de 1967. Alguns juristas sustentam inexistir uma Constituição de 1969, vez que somente foram adotadas modificações na Carta anterior.185 Outros, porém, afirmam que, diante de tantas e tão profundas

183 CF/1946: “Art 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: (...). § 25 - É assegurada aos acusados plena defesa, com todos os meios e recursos essenciais a ela, desde a nota de culpa, que, assinada pela autoridade competente, com os nomes do acusador e das testemunhas, será entregue ao preso dentro em vinte e quatro horas. A instrução criminal será contraditória. (...)”.

184 CF/1967: “Art 150 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pais a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...). § 15 - A lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os recursos a ela Inerentes. Não haverá foro privilegiado nem Tribunais de exceção.(...)”.

185 Sustentou SOUZA, Washington Peluso Albino de, A experiência brasileira de constituição

econômica, Paulo Lobo (org.), Antologia Luso-Brasileira de Direito Constitucional, Brasília,

Livraria e Editora de Brasília Jurídica, 1992, p. 385, que “a metodologia adotada para tal emenda não obedeceu ao disposto nos arts. 49, I e 50. Ao contrário, baseou-se no art. 3º do Ato Institucional nº 16, de 14-10-69, combinado com o parágrafo 1º do art. 2º do AI 5, de 13- 12-68,

mudanças, impossível não se considerar uma novel legislação constitucional a de 1969.186

Nesta época, o direito de defesa restou ainda mais mitigado, afastando-se a possibilidade do Poder Judiciário conhecer casos que estivessem lastreados em atos institucionais.

Após estas Constituições, foi promulgada a Constituição Federal de 1988 que erigiu o direito de defesa à amplitude hoje consagrada e reconhecida.

Pode-se vislumbrar do quanto narrado que o direito de defesa, nas diversas Cartas constitucionais brasileiras, recebeu tratamento diverso, conforme a sucessão do momento político e social. Num determinado momento o direito de defesa foi consagrado e prestigiado; vindo, posteriormente, a ser mitigado e reprimido; e, ao final, angariar a extensão e a envergadura típicas de tempos de Estado Democrático e de Direito.