• Nenhum resultado encontrado

Ampla defesa: princípio ou regra?

Capítulo III – A ampla defesa

3.5. Ampla defesa: princípio ou regra?

Uma questão bastante interessante reporta-se à natureza da ampla defesa, como princípio ou norma encartada no ordenamento jurídico. Para tanto, mister voltar-se atenção às diferenças entre ambas realçadas pela doutrina.

Neste particular, segundo clássica concepção doutrinária, norma é gênero, do qual derivam os princípios e as regras, que são espécies.120

ROBERT ALEXY formulou teoria segundo a qual os princípios são

normas de otimização, as quais ordenam algo seja feito de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas do caso concreto. Noutro sentido, regras são

119 Neste passo, impende reiterar nossa posição no sentido da ampla defesa abarcar todos os meios a ela inerentes (CF, art. 5, LV), o que compreende a possibilidade de interposição de recursos próprios e cabíveis.

120 Tem-se utilizado, ainda, vários outros critérios para diferenciação entre regras e princípios. REIS, Solange Vaz dos, Distinção entre regras e princípios & abertura e densidade das normas

constitucionais, Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, v. 11, n. 3, 1999, p. 65, nos

traz um rol das principais diferenças apontadas pela doutrina: “a) grau de abstração - os princípios são normas que possuem grau de abstração maior que as regras; b) grau de determinabilidade na aplicação ao caso concreto - os princípios, por serem vagos e indeterminados, não têm aplicação direta. Para serem concretizados é necessário que tenha uma regra aplicável ao caso concreto; c) caráter de fundamentabilidade no sistema das fontes de direito - os princípios exercem papel fundamental no ordenamento jurídico em face de sua posição hierárquica. Pode-se dizer, então, que estão num patamar superior às regras; d) proximidade da ideia de direito - os princípios são padrões de justiça; já as regras podem ser normas vinculativas com conteúdo meramente funcional; e) natureza normogenética - os princípios são fontes de elaboração das regras”.

normas definitivas, que são cumpridas ou não, na conotação “tudo ou nada”. 121- 122

Isso redunda na diferenciação das formas para solucionar os conflitos entre regras e as colisões entre os princípios. Enquanto o conflito de regras deve ser solucionado pelo método da subsunção, a colisão entre os princípios será resolvida por intermédio do sopesamento.123

Assim, na hipótese de conflitos entre regras, duas soluções podem ser apontadas: (i) inserir-se uma cláusula de exceção numa das regras, permitindo com isso a plenitude da outra sem a invalidade da primeira; ou, (ii) declarando-se a invalidade de uma regra em prol da outra, ocasião em que a primeira regra mostrar-se-ia eficaz, em detrimento da segunda que não mais irradiaria efeitos. Estas situações ocorrem porque o conflito entre as regras as atinge diretamente no plano da validade, na medida em que uma regra vale ou não juridicamente.124

No que tange à colisão entre princípios, tal deve esta ser resolvida de forma diversa: através da cedência recíproca. Desta forma, constatando-se sua ocorrência, não se deve pensar em invalidade de qualquer um destes, mas,

121 ALEXY, Robert, Teoria dos direitos fundamentais, trad. Virgílio Afonso da Silva, São Paulo, Malheiros, 2008, p. 90.

122 LIMA, George Marmelstein, Princípios e regras: uma distinção didática, in: http://direitosfundamentais.net/2008/06/02/principios-e-regras-uma-distincao-didatica/. Acesso em 01.11.2011, traz interessante exemplo de diferenciação: “Começo pelas regras. ‘A aula começa às 7:30 da manhã. O aluno que chegar à sala depois desse horário não terá direito à presença’. Eis um exemplo de regra. Nesse exemplo, não há meio termo: o aluno deve chegar antes do horário marcado. Se chegar um minuto depois, estará descumprindo a regra e, portanto, deverá sofrer a sanção nela prevista. É na base do tudo ou nada. Não tem blá, blá, blá, nem choro nem vela. Agora veja um exemplo de princípio: ‘A aula começará bem cedo. O aluno deve chegar o mais cedo possível’. Observe que a estrutura da frase mudou substancialmente. Não é possível estabelecer com precisão qual é o horário exato em que a aula começará. Vai depender de diversos fatores. Num dia de chuva, o mais cedo possível é um pouco mais tarde do que num dia de sol. Se o carro “der o prego”, certamente haverá um atraso. Se houver engarrafamento, idem”.

123 Segundo GRAU, Eros Roberto. Licitação e Contrato Administrativo, Malheiros, São Paulo, 1995, p. 17, a proporcionalidade não exige o sacrifício de um princípio em relação ao outro, mas reclama a harmonização dos mesmos, de modo a obter-se a máxima efetividade entre eles. 124 ALEXY, Robert, op. cit., p. 92.

sim, analisar o peso dos princípios jurídicos em colisão diante do caso concreto, por esta razão fala-se em sopesamento.125-126

Neste prisma, sintetiza ALEXY que os direitos fundamentais

possuiriam natureza de princípios, vez que otimizam as demais normas do sistema, de acordo com as possibilidades do caso concreto.127

Em nosso modo de enxergar, a ampla defesa coaduna-se a um princípio, não obstante esteja expressamente prevista no bojo da Constituição Federal e de leis infraconstitucionais.

125 Na acepção de ESPÍNDOLA, Ruy Samuel, Conceito de Princípios Constitucionais, Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 66, “os princípios são normas jurídicas impositivas de uma optimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionalismos fácticos e jurídicos; as regras são normas que prescrevem imperativamente uma exigência (impõem, permitem ou proíbem) que é ou não é cumprida (...); a convivência dos princípios é conflitual (ZAGREBELSKY); a convivência de regras é antinômica; os princípios coexistem; as regras antinómicas excluem-se; (2) consequentemente, os princípios, ao constituirem exigências de optimização, permitem o balanceamento de valores e interesses (não obedecem, como as regras, à ‘lógica do tudo ou nada’), consoante o seu peso e a ponderação de outros princípios eventualmente conflitantes; as regras não deixam espaço para qualquer outra solução, pois se uma regra vale (tem validade) deve cumprir-se na exacta medida das suas prescrições, nem mais nem menos. (3) em caso de conflito entre princípios, estes podem ser objecto de ponderação, de harmonização, pois eles contêm apenas ‘exigências’ ou ‘standards’ que, em ‘primeira linha (prima facie), devem ser realizados; as regras contêm ‘fixações normativas’ definitivas, sendo insustentável a validade simultânea da regras contraditórias. (4) os princípios suscitam problemas de validade e peso (importância, ponderação valia); as regras colocam apenas questões de validade (se elas não são correctas devem ser alteradas)”.

126 A jurisprudência já teve oportunidade de se manifestar neste sentido: STJ, REsp. n° 1.083.061/RS, 3ª Turma, Rel. Min. Massami Uyeda, j . 02/03/2010. Ementa: “RECURSO ESPECIAL - AÇÃO DE EXECUÇÃO DE DÉBITO ALIMENTAR - PENHORA DE NUMERÁRIO CONSTANTE NO FUNDO DE GARANTIA POR TEMPO DE SERVIÇO (FGTS) EM NOME DO TRABALHADOR/ALIMENTANTE - COMPETÊNCIA DAS TURMAS DA SEGUNDA SEÇÃO - VERIFICAÇÃO - HIPÓTESES DE LEVANTAMENTO DO FGTS - ROL LEGAL EXEMPLIFICATIVO - PRECEDENTES - SUBSISTÊNCIA DO ALIMENTANDO - LEVANTAMENTO DO FGTS - POSSIBILIDADE - PRECEDENTES - RECURSO ESPECIAL PROVIDO. I - A questão jurídica consistente na admissão ou não de penhora de numerário constante do FGTS para quitação de débito, no caso, alimentar, por decorrer da relação jurídica originária afeta à competência desta c. Turma (obrigação alimentar), deve, de igual forma ser conhecida e julgada por qualquer dos órgãos fracionários da Segunda Seção desta a. Corte; II - Da análise das hipóteses previstas no artigo 20 da Lei n. 8.036/90, é possível aferir seu caráter exemplificativo, na medida em que não se afigura razoável compreender que o rol legal abarque todas as situações fáticas, com a mesma razão de ser, qual seja, a proteção do trabalhador e de seus dependentes em determinadas e urgentes circunstâncias da vida que demandem maior apoio financeiro; III - Irretorquível o entendimento de que a prestação dos alimentos, por envolver a própria subsistência dos dependentes do trabalhador, deve ser necessariamente atendida, ainda que, para tanto, proceda-se ao levantamento do FGTS do trabalhador; IV - Recurso Especial provido”.

Isto porque, segundo as lições acima aludidas, infere-se que um princípio possui intenso grau de abstração e, além disso, está em posição hierárquica superior às regras. Por fim, orientam tanto o legislador na elaboração das regras como o aplicador do direito por ocasião da decisão.

Por sua vez, a ampla defesa possui um grau de abstração maior do que as regras em geral, tendo em vista que, apesar da expressa previsão legal e constitucional, não se conseguiu sintetizar com palavras o que seria uma defesa ampla. Assim, poder-se-ia questionar se a defesa seria ampla somente quando feita por advogado habilitado, ou quando utilizados todos os meios possíveis de impugnação (sendo que a negativa importaria em ausência de ampla defesa).

Não nos parece assim. A abstração do conceito é determinante. A ampla defesa é conceito que deve ser observado no caso concreto, de acordo com as especificidades de cada demanda. Desta forma, a inexistência de elementos concretos acerca do conceito culmina em elevado grau de abstração perante os demais institutos do direito.

Nos processos que tramitam perante o Juizado Especial, o direito de defesa é diverso daquele atinente a um processo de conhecimento que tramita pelo rito ordinário. Neste, existem muito mais possibilidades do réu manifestar-se (à exemplo da possibilidade de utilização da reconvenção, da intervenção de terceiros ou assistência).

Contudo, em ambas as hipóteses existem o postulado da defesa ampla e completa, cada qual dentro de suas especificidades e limitações, temas estes que pretendemos tratar em outro Capítulo. Mas o que se quer ressaltar é que a ampla defesa nestes processos está assegurada, de forma que o réu poderá manejar o que bem entender para impugnar os pedidos deduzidos contra si.

E é justamente esta falta de concretude nas hipóteses de possibilidades de defesa que configuram a abstração de tal direito e o configuram

como princípio de direito. Não se diz o que pode o réu fazer para se defender, apenas assegura-se tal direito em projeção tal que ele poderia impugnar, dentro dos limites possíveis, o que contra si é postulado. Noutras palavras, dentro dos limites estatuídos pela legislação, o réu pode manejar a defesa que bem entender (até mesmo tentar um acordo para por fim à demanda), e esta inexistência de fatores que condicionem a defesa, é que torna abstrata a defesa possível, culminando, então, no entendimento de que tal é um princípio.

Além disso, a ampla defesa encontra-se hierarquicamente em patamar superior às demais leis que tratam de outros institutos. Obviamente, quer-se analisar o conteúdo da ampla defesa dentro do mesmo universo jurídico das demais disposições. Dentro daquele determinado microssistema, a ampla defesa acoroçoa posição de maior prestígio frente aos demais institutos.

Não se quer também elevar a ampla defesa ao grau máximo de hierarquia; afinal, como será alhures, nenhum direito ou princípio é absoluto, vez que poderá sofrer as mitigações necessárias dentro da lógica e coesão do sistema.

Mas, não se pode deixar de reconhecer que a ampla defesa galgou posição de um prestígio tal, que lhe permite uma posição de respeito quando contrastadas com outros institutos de semelhante matiz.

Não se pode olvidar da diretriz da ampla defesa no sentido de orientar tanto legisladores como aplicadores da lei. Ora, quando da elaboração de uma determinada regra, o legislador não pode deixar de prestigiar as hipóteses de defesa, elevando-as a um patamar de utilidade que torna eficaz tal direito nas hipóteses a serem reguladas. Desta forma, o ideal é evitar os extremos: nem deixar de prever o direito de defesa, muito menos consagrá-lo de modo a exacerbar suas funções precípuas.128

128 Com igual entendimento: HERNANDEZ, Ary César, O contraditório e a ampla defesa no

processo administrativo, Justitia, São Paulo, v. 62, 2000, p. 05, para quem: “A ampla defesa é

princípio que também se dirige ao legislador, porque este deve ter em mente, na elaboração das leis infraconstitucionais, que está obrigado a velar para que todo acusado tenha defensor, que possa ter pleno conhecimento da acusação que pesa contra sua pessoa, das provas que a

O mesmo deve ser tomado em relação aos aplicadores da lei: deve ser propiciada às partes uma defesa ampla, mas dentro da utilidade do caso concreto, evitando-se exageros seja em concessão ou em mitigação.129

Por fim, não podemos deixar de ressaltar que, caso a ampla defesa fosse extirpada do texto constitucional, ainda assim subsistiria em sua plenitude, pois que tal direito é ínsito àqueles Estados ditos de Direito e Democráticos. Não é porque não previsto expressamente que inexiste. 130

Sendo assim, a soma de todos estes fatores culmina no produto do raciocínio alinhavado linhas acima: a ampla defesa, apesar de estar expressamente contida no bojo de um texto legal, coaduna-se a um princípio jurídico.