• Nenhum resultado encontrado

A ampliação do princípio da legalidade a partir da corrente positivista

4. A NOVA INTERPRETAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

4.1 A ampliação do princípio da legalidade a partir da corrente positivista

A partir de uma visão conciliadora entre a corrente positivista e a teoria discursiva, o Direito, como ordenamento jurídico, decorre de uma ação comunicativa. A partir da figura do legislador, opera-se um diálogo a materializar-se na norma expressa. A letra legal é a exteriorização de um discurso. Nesse sentido, Fabiana de Menezes Soares (2004):

“Os destinatários do comando normativo (receptores – auditório), que ao mesmo tempo dão condições de aplicabilidade do direito (aceitando o monopólio da jurisdição e o conhecimento de todos os comandos gerais emanados do estado) elegeram a representação política como instrumento de produção normativa e regulação do poder, fundados no arbítrio que os impeliu a buscar mandatários e na constatação fática de que o exercício direto não é possível.”85

Como resultado de um fenômeno lingüístico (mas também empírico e, portanto, factual), a norma precisa ser compreendida (qualidade da legislação), reconhecida como válida e ter eficácia perante seus destinatários. Somente a conjugação desses fatores torna possível e realizável a finalidade da lei.

A visão positivista já exteriorizada neste trabalho é robustecida pela noção de que o sistema unitário de regras é moldurado por princípios e valores positivados na Constituição, por atos legais e infralegais (atos normativos do Executivo), devidamente autorizados pela ordem vigente, sendo integrado até por normas individuais.

Não há contradição ou antagonismo – a nosso sentir – a um sistema escalonado de normas ou a ideia de hierarquia consagrada por Kelsen (1998). Da mesma forma, desnecessário seria recorrer ao positivismo moderado. Não preocupa à corrente positivista o conteúdo axiológico das normas, mas seu aspecto formal.

Essa aparente neutralidade positivista – diversas vezes criticada, bastando mencionar como exemplo Carl Schmitt (2006) – não contraria o ideal ora defendido

85

de que o sistema jurídico a que se submete a Administração Pública e o próprio exercício de sua função normativa são resultado de um conjunto de valores adotados e concebidos pelo Estado de Direito, devidamente positivados na ordem jurídica86.

Respeitar a formalidade normativa significa obediência a coerência entre as normas, harmonia entre as regras postas e vigentes, tendo como condição de validade a sua eficácia (ainda que mínima, à luz da Teoria Pura do Direito), sob pena de falência da própria ordem positiva.

A formalidade tem, portanto, um colorido diferente daquele que muitos interpretam. Alcança por via reflexa – para não ser extremista – o conteúdo normativo como esse próprio o exige para ter eficácia e adesão de seus destinatários. A força (coerção) promove a obediência, mas é a adesão social resultante do discurso posto e compreendido que revela a perenidade das normas. Ambos justificam a eficácia, mas o último é, sem dúvida, vitorioso.

A lei possui, por óbvio, um conteúdo axiológico que motivou o critério racional adotado pelos legisladores e, porque não dizer, dos julgadores que irão promover sua integração – sempre racional à luz kelseniana – no quadro normativo. Sobre a interação axiológica que permeia o direito, Andithyas Matos (2009) esclarece:

“...o direito não é um valor, mas um fato, um complexo fato- normativo, caso se prefira esta expressão. É claro que toda norma jurídica protege determinados valores em detrimento de outros, mas isso não significa que o direito seja, ele mesmo, um valor, o que soaria inclusive antilógico e redundante: um valor valoroso, i.e., um valor que protege outros valores. O direito convive com valores, os realiza em certa medida e os torna objetivos ao limitar-lhes o alcance conceitual, encerrando-os nos estreitos limites da norma positivada. (...) Sim, o direito é capaz de interações axiológicas extremamente complexas, mas não é, ele mesmo, um valor, e sim um fato ou um conjunto de fatos.”87

Desse modo, parece-nos evidente que, embora não seja em si mesmo um

86

Para esclarecimento, citamos a observação feita por Andithyas Matos sobre a teoria positivista de Kelsen: “...quando uma norma estatui certa conduta como devida, valora-se positivamente o fato do mundo fenomênico que consiste no seu cumprimento, enquanto o ato que corresponde ao seu descumprimento é valorado negativamente: ‘A norma considerada como objetivamente válida funciona como medida de valor relativamente à conduta real.” (p. 116)

87

valor, o direito agasalha determinados valores. O fato de protegê-los positivamente autoriza e, inclusive, determina o processo factual de construção normativa por seus poderes instituídos, de forma a promover um constante diálogo entre as suas fontes.

Na esteira desse entendimento, “a aplicação do direito efetuada pela autoridade competente é ao mesmo tempo criação do direito porque um ordenamento jurídico formal tal como o concebido pela Teoria Pura do Direito é sempre dinâmico”88.

Ao interpretar desse modo, conseguimos defender a compreensão e aplicação de um princípio da legalidade em sentido amplo, tanto pela ordem constitucional brasileira, como em diversos outros sistemas constitucionais, admitindo que a Administração Pública atue com maior liberdade no exercício de suas funções e, ao mesmo tempo, que o Poder Executivo exerça uma função normativa legítima (válida) para a otimização dos comandos da Constituição e concretização dos direitos fundamentais.

Se há um déficit legislativo provocado pela superação do Estado Liberal89, não significa que esse déficit não possa ser superado pelo próprio sistema jurídico posto através do reconhecimento de autores diretos das normas que não apenas o Legislativo.

As condições para a sua integração existem e são exigidas à luz do próprio ordenamento. Não se trata de digressões metafísicas em busca de um ideal normativo a regular casos não regulados, mas justamente obter a positivação exigida pelo sistema, autorizada pelas normas postas, até alcançar, inclusive, se preciso for, a norma hipotética fundamental. Válida a lição de Bobbio (1992) sobre o problema:

“Com efeito, o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados.”90

88 Idem, 2006, p. 97. 89 GASPARETTO, 2011, p.99. 90 BOBBIO, 1992, p. 25.

Nesse sentido, deflagra-se a concepção ampla de princípio da legalidade no regime jurídico-administrativo atual. A Administração Pública não está restrita em seu agir às leis formais decorrentes do processo legislativo, mas a todo o sistema jurídico que orienta o ordenamento de dada sociedade. Mais: exerce função normativa integrativa desse sistema que vincula obrigatoriamente a si e aos cidadãos.

A releitura do princípio da tripartição do poder dá sentido a essa vinculação direta da Administração Pública aos comandos constitucionais, legais e infralegais.

Da mesma forma, os cidadãos devem observar os atos administrativos (inclusive normativos) desse sistema, sem que representem violação à ordem democrática por amor ao rigor formal do princípio da legalidade rígido, herdado dos ideais libertários da Revolução Francesa.

Conforme já outrora argumentado, a Administração Pública passa a ampliar obrigatoriamente seu campo de visão. Deve atentar-se para o sistema jurídico como um todo, buscando o máximo de aplicação das normas e não se valendo da viseira formal, da lentidão dos processos legislativos, do desprestígio do legislador, das travas burocráticas do sistema rígido, para esquivar-se em dar guarida às necessidades do verdadeiro titular do poder estatal (o povo) e editar suas normas para esse fim.

A ideia de que o positivismo jurídico representaria um sistema fechado não se opõe ao que é aqui defendido. Na verdade, a resposta para essa atuação estatal é encontrada exatamente no sistema positivado. São as normas constitucionais integrantes desse sistema, assim como os princípios positivados e todo o arcabouço jurídico autorizativo de condutas estatais e direitos expressos na Constituição, que dão o necessário suporte fático-jurídico para que o Estado atue e exerça uma função normativa integrativa.

O positivismo não representa barreira à força de regras infralegais; o que repudia é a violação ao processo lógico-dedutivo-formal, assim como a justificação de validade das normas baseada em um conteúdo meramente axiológico. Seja qual for o processo integrativo, desde que reconhecido e autorizado pelo sistema, de modo racional e válido, abstraindo-se o conteúdo axiológico como justificador de sua validade, há de ser respeitado e aplicado.

No que tange ao valor que a norma há de agasalhar, a partir da visão positivista, adentra-se no mérito da decisão do autor (ou emissário) da regra e em momento anterior à sua própria edição e vigência. Trata-se, assim, de política jurídica.

Nesse sentido, o óbice que existiria para o exercício de uma ação do Poder Executivo (regulamentar) desamparada de lei formal seria a inexistência de autorização pelo sistema jurídico deste exercício ou mesmo de uma norma fundamental pressuposta.

Não é preciso, portanto, adentrar na discussão sobre a rigidez tripartite do Poder estatal e valores democráticos que dão guarida a essa miscigenação de funções estatais.

A partir da visão positivista, constatado que o próprio sistema jurídico positivado reconhece (admite) essa atuação da Administração Pública, ou se não o faz, o exige a partir do fenômeno empírico, conferindo-lhe eficácia, não há dúvida de que a legalidade tutelada pelo ordenamento é possível a partir de uma função desempenhada pelo próprio Poder Executivo.

Surgem, então, algumas perguntas a que devemos responder para admitir essa dimensão da legalidade a partir de uma ação do Poder Executivo à luz do positivismo. Os atos normativos da Administração Pública inserem-se de forma coerente e sistêmica no ordenamento jurídico vigente? Seu processo elaborativo é reconhecido, autorizado e seu produto é minimamente eficaz? Há legitimidade?

Como se verifica, o reconhecimento de uma função normativa ao Poder Executivo vem sendo admitido pelos sistemas jurídicos, inclusive expressamente, como resultado de fenômenos empíricos sociais de tal sorte que representam imperativo de funcionamento da máquina estatal para a satisfação das necessidades dos destinatários das normas e concretização de seus direitos fundamentais.

Os riscos desse fenômeno e do reconhecimento dessa autoridade normativa ao Poder Executivo, todos sabemos. Mas as balizas, freios e contrapesos, também são – ou ao menos podem ser – previstos pelo sistema jurídico a ponto de fulminá- los como inválidos – independentemente do conteúdo axiológico.

Como conclusões preliminares, a partir de uma justificação positivista, podemos sustentar a defesa de uma função normativa para uma Administração

Pública mais flexível e dinâmica, como o é o sistema jurídico, partindo dos seguintes pontos:

a) as condutas da Administração Pública não estão condicionadas apenas à observância restrita das leis decorrentes dos processos legislativos, mas a todo arcabouço normativo que orienta o Estado, inclusive – mas não apenas – normas infralegais emanadas pela própria Administração, sendo possível recorrer a uma norma pressuposta (norma hipotética fundamental) para justificar sua atuação normativa válida se necessário, respeitando-se, por óbvio, o sistema jurídico posto, no qual se insere a Constituição;

b) os cidadãos vinculam-se a esse sistema jurídico unitário que exige a observância e cumprimento de normas infralegais, regulamentos, portarias, resoluções, dentre outros atos normativos da Administração Pública de conteúdo integrativo do sistema.

À toda evidência, não se quer defender a força normativa autônoma e sem limites ao Poder Executivo nesta pesquisa, mormente no contexto do ordenamento jurídico brasileiro.

O que acima expusemos e apresentamos como conclusões preliminares é a possibilidade de justificação dessa capacidade integrativa (ou poder normativo) do direito à luz da corrente positivista. De qualquer modo, tal poder normativo deve estar devidamente autorizado e reconhecido pelo sistema, o que inclui, por óbvio, a observância dos princípios positivados da ordem democrática.

Admitir que o Executivo estaria autorizado a exercer uma função normativa com plenos poderes, sem limitações, seria o mesmo que tornar o Legislativo peça irrelevante e absolutamente dispensável no Estado. Atentaria contra o ideal republicano, não se olvidando jamais que o Poder Executivo atual é também formado por agentes não eleitos e demanda freios e contrapesos para afastar abusos e o arbítrio já referido nos tópicos anteriores.

Não se está pregando uma dimensão de legalidade que justifique regimes autoritários, embora saibamos que a corrente positivista tenha, segundo muitos de seus críticos, como o já citado Carl Schimitt (2006), se prestado a tal papel.

ao Poder Executivo para o exercício de funções normativas em favor de sua coerência, unidade e visada completude. Mais: em favor de sua qualidade, maior adesão e, por conseguinte, certeza e segurança, alcançando, desse modo, o próprio objeto da Teoria da Legislação de que nos ocuparemos adiante. Isto não significa qualquer ofensa ao princípio da legalidade, mas sua releitura ampliada e bastante distinta daquela apregoada pelo Estado liberal.

Limites, é claro, existem e sempre deverão existir. O controle sobre a atuação do Executivo é condição para se reconhecer a atribuição normativa. A ampliação da legalidade, partindo do direito como um todo e não apenas das leis formais, é a compreensão que se exige não apenas para o adequado exercício da administração, mas para a satisfação de direitos dos cidadãos e cumprimento de seus deveres em uma ordem positivada.

Nesse mesmo sentido, o Poder Executivo não estaria autorizado a fazer tudo o que a lei não proíba, partindo do conceito de princípio da legalidade próprio aos cidadãos.

A vinculação da Administração Pública, como dito, é mais ampla e, ao mesmo tempo, torna seus atos mais restritivos a ponto de caracterizar, com maior tranqüilidade, sua responsabilidade por omissão e aplicação incorreta de dispositivos legais manifestamente inconstitucionais91. Nesse contexto, o administrador não é mero executor da lei formal. Todos os seus atos, embora não precisem estar detalhados e sequencialmente descritos nos comandos normativos, hão de estar autorizados pelo sistema jurídico unitário. Ressalvados os casos de reserva de lei, a ação da Administração não está obrigatoriamente sujeita à preexistência de lei formal regulando todos os seus atos.

“Estes (os atos da Administração) devem ser controlados com base no ordenamento jurídico como um todo, seja pelas regras ou pelos princípios constitucionais. A legitimidade dos atos da Administração decorre do sistema jurídico, de forma que, se o ato praticado estiver de acordo com a finalidade do sistema, pode ser válido mesmo sem a preexistência de uma lei formal disciplinando. É evidente, porem, que o ato não deverá violar outro dispositivo normativo.”92

91

Embora não seja o tema dessa dissertação, a defesa de que a Administração Pública não deve aplicar leis inconstitucionais é defendida pela doutrina moderna. Citem-se as obras de Gasparetto (2011) e Puccineli Junior (2007).

92

Embora, em sentido amplo, a linha de interpretação do princípio da legalidade tenha um viés pós-positivista, sobre o qual falaremos adiante, há sempre a condição autorizativa do sistema positivado, já que esse mesmo sistema não poderia expressamente negar (proibir) a realização do ato pela Administração Pública93.

Como bem ensina João Batista Gomes Moreira (2003), reportando-se a Kelsen (1998) e sua teoria escalonada de normas, não apenas a sentença, mas também o ato administrativo têm natureza normativa, só que de incidência concreta. Isto porque toda interpretação pode ser considerada criação do Direito94.

Na esteira de seu raciocínio, na edição de regulamentos, estabelecendo critérios gerais de sua atuação, reafirmando a impessoalidade e a isonomia, a Administração agirá observando os critérios ou degraus criativos que o sistema jurídico concebe, sendo viável afirmar a possibilidade de edição, inclusive, de regulamentos autônomos, quando não haja reserva expressa de lei formal ou sua proibição.

À luz da teoria positivista, a despeito do nome que se prefira dar a esse alcance da legalidade (princípio da juridicidade, constitucionalidade ou legalidade lato sensu etc.), verificamos que:

a) A legalidade a que se vincula a Administração Pública e os cidadãos não exige lei formal, decorrente do processo legislativo, mas de norma que integre o sistema jurídico a partir de uma concepção positivista, podendo vincular-se diretamente a Constituição ou a atos infralegais;

b) Decretos, resoluções, portarias, dentre outros atos normativos decorrentes de uma função normativa do Poder Executivo, devem ser reconhecidos como válidos, dentro de um sistema jurídico que os reconheça como tal; ou seja: por meio de delegações expressas, autorizações do Poder Constituinte e atos que não exijam reserva de lei ou proíbam o exercício normativo pela Administração Pública. É de se admitir, portanto, o próprio exercício de uma função normativa autônoma ou

93

Afasta-se dessa afirmação a idéia de normas postas inválidas. A idéia de uma lei inconstitucional restritiva é tema que não nos ocuparemos, mas que Gasparetto, citado no parágrafo anterior, defende o seu não cumprimento pela Administração Pública. O princípio da legalidade em sentido amplo daria guarida a essa postura do Poder Executivo.

94

autorizada, vinculada aos comandos ou autorizações expressas da Constituição ou quando tal se possa deduzir implicitamente.

c) Os cidadãos não devem se valer do princípio da legalidade rígido para, inspirados apenas em um conteúdo metajurídico, não reconhecerem a função normativa do Executivo, apregoando a defesa da legalidade rígida em todos os casos. A validade das normas estará condicionada a um processo formal, o que, obviamente, pressupõe sua unidade e coerência com o sistema e a condição de eficácia.

Outline

Documentos relacionados