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O núcleo intangível dos direitos fundamentais – limite dos limites

7. A DEFINIÇÃO DE LIMITES DA FUNÇÃO REGULAMENTAR

7.2. Os limites materiais

7.2.1. O núcleo intangível dos direitos fundamentais – limite dos limites

Os direitos fundamentais decorrem de um reconhecimento social mútuo e um autoreconhecimento emancipado. Ainda quando implícitos na ordem constitucional, constituem garantias em favor das pessoas, orientando sua proteção e concretização por meio de ações positivas e negativas do Estado. Revelam normas de eficácia imediata, vinculando Estado (agentes públicos, Administração direta e indireta), bem como os cidadãos nas suas relações privadas.

São, de tal forma, imperativos, que, apesar de emanarem do povo, protegem- lhe contra si próprio em suas manifestações volitivas, afastando as paixões momentâneas, as lesões contra as minorias ou maiorias, enaltecendo a igual dignidade da pessoa humana e reprimindo o retrocesso.

Sem embargo de toda construção doutrinária, positivista ou não, bem como dos diferentes critérios utilizados para sua definição (critérios formal-jurídico, material etc.), os direitos fundamentais são traduzidos por esse sentimento coletivo e individual acerca de sua validade, efeitos e eficácia.

São como trunfos em um jogo de cartas, recorrendo à ideia originária de Dworkin (1977)243. O direito fundamental prevalece por sua qualidade e força, assim como a carta de trunfo prevalece sobre todas as outras em um jogo de baralho.

Jorge Reis Novais (2006) esclarece bem essa concepção de direitos fundamentais como trunfos, desenvolvendo seu sentido originariamente aplicado por

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Dworkin, para nos ensinar que:

“Por outro lado, para além de uma função directamente orientada à garantia da qualidade da democracia, a concepção dos direitos fundamentais como trunfos significa, tambem, a protecção de todos os direitos fundamentais da pessoa contra restrições essencial ou determinantemente decorrentes de tentativas de imposição de concepções ou mundividências particulares ou de doutrinas compreensivas sustentadas conjunturalmente no apoio de maiorias políticas, sociais, culturais ou religiosas. Por último, é um recurso especialmente adequado à protecção dos direitos fundamentais dos indivíduos ou grupos cuja debilidade, isolamento ou marginalidade não lhes permita, mesmo em um quadro democrático, a possibilidade de influenciarem as escolhas governamentais e a capacidade de garantia de seus direitos fundamentais através dos meios comuns da participação política ou da luta social ou sindical.”244

Há de se entender, portanto, que constituem os direitos fundamentais o conteúdo sempre integrativo e ampliativo de garantias do ser humano em favor de suas liberdades. São os comandos de otimização, lembrando Robert Alexy (2008), em favor da soberania popular e da construção de um cidadão verdadeiramente emancipado. Finalmente, a igual consideração às necessidades sociais, ao acesso real à tutela jurisdicional e à participação na construção normativa e das decisões estatais.

A propósito, José Adércio Leite Sampaio (2003) apresenta interessante posição:

“Mas os direitos fundamentais não são apenas direitos no sentido jusprivatista. São vinculações, mandados e objetivos referidos a aspirações, necessidades e interesses humanos que se adscrevem ora como nítidos dispositivos de direitos subjetivos, ora como enunciados de princípios e tarefas estatais (e às vezes individuais e sociais) de hierarquia constitucional. Mesmo os enunciados que prescrevem direitos subjetivos estão acompanhados de comandos objetivos direcionados para o Estado com vistas a uma obrigação de fazer (garante o livre exercício dos direitos de cunho liberal por meio de prestações jurídicas e políticas – de segurança, de burocracia orientada para a defesa desses direitos – e realizar o conteúdo dos genericamente chamados ‘direitos sociais’). Mas é preciso ter-se em conta que essa dimensão objetiva sedimenta uma aspiração coletiva, criando, em contrapartida,

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um dever coletivo de cuidado e respeito e um ônus individual de relativa indisponibilidade.”245

O direito fundamental traduz vinculações diretas. É guia orientador do sistema jurídico infraconstitucional, das ações estatais e entre particulares, compreendendo um conteúdo mínimo existencial capaz de afastar ou elidir quaisquer restrições.

Nesse sentido, ao se admitir que o Poder Executivo está vinculado a uma legalidade ampla, reconhecendo-lhe uma capacidade normativa com limites materiais e formais para a edição de atos regulamentares autônomos, autorizados e executivos, a maior limitação material que se lhe impõe é o núcleo intangível dos direitos fundamentais, afinados que somos à teoria dos limites dos limites.

Não se trata de uma particularidade da função regulamentar do Poder Executivo, mas de toda a função normativa integrativa do sistema jurídico, inclusive o Poder constituinte derivado e decorrente.

É de tal sorte a sua vinculação direta aos direitos fundamentais que o Poder Executivo estará, diante da omissão do legislador ou devido a lacunas legais, autorizado a normatizar individualmente determinada matéria integrando o sistema jurídico para a adequada proteção de direitos fundamentais no exercício de sua atividade institucional. Nesse mesmo sentido, ainda que autorizado a editar regulamento por uma lei, não deverá fazê-lo se esta impingir flagrante ofensa a direitos fundamentais.

Em extrema síntese, a teoria dos limites dos limites apregoa a existência e defesa de um núcleo essencial dos direitos fundamentais. A intocabilidade desse conteúdo mínimo é condição para a própria existência do direito fundamental.

O assunto encontra vozes na doutrina constitucional brasileira, a exemplo de Gilmar Ferreira Mendes (2011), Virgilio Afonso da Silva (2011), Bernardo Gonçalves (2011), dentre outros.

Como bem anota Virgilio Afonso da Silva (2011), a ideia de um núcleo essencial é utilizada em vários Acórdãos do Supremo Tribunal Federal, muito embora nem sempre tenha aquela Corte adotado expressões simples ou similares, como “conteúdo essencial” etc.

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Para o ilustrado autor, depreende-se tal entendimento dos Ministros do Supremo através de fundamentações de Acórdãos como “a restrição imposta não pode chegar à inviabilização de um deles”, ou “(...) a garantia constitucional da ampla defesa tem, por força direta da Constituição, um conteúdo mínimo essencial, que independe de interpretação da lei ordinária que a discipline”; ou quando se fala de um “mínimo existencial”246.

Nesse sentido, o núcleo essencial caracteriza-se como o limite dos limites, ou seja, é o espaço, asilo ou reduto intocável pelo legislador ordinário, por qualquer instância de poder (ressalvada a problemática afeta ao poder constituinte) ou mesmo entre particulares. É o limite das restrições (ou limites) que venham a ser criadas ou instituídas para a conformação, adequação e aplicação dos direitos fundamentais.

A proteção do núcleo essencial compreende dois principais enfoques: concepção relativa e concepção absoluta.

Os seguidores da teoria absoluta de proteção do núcleo essencial o consagram como unidade substancial autônoma que, independentemente de qualquer situação concreta, estaria a salvo de eventual decisão legislativa ou atos de limitação pelo Poder regulamentar. Existiria um espaço interior livre de qualquer intervenção estatal.

Segundo Gilmar Ferreira Mendes (2011): “... neste caso, além da exigência de justificação, imprescindível em qualquer hipótese, ter-se-ia um ‘limite do limite’ para a própria ação legislativa, consistente na identificação de um espaço insuscetível de regulação”247.

Como se verifica, a ideia de um núcleo absoluto leva-nos a crer na existência de uma fórmula vazia, diante da impossibilidade e/ou dificuldade de se demonstrar a sua existência in abstracto. Ademais, traduz a ideia de imutabilidade, capaz de resistir ao tempo e a evolução social.

Já na teoria relativa (ou enfoque relativista), o núcleo essencial há de ser definido para cada caso, tendo em vista o objetivo perseguido pela norma de caráter restritivo. Seria, então, aferido mediante um processo de ponderação entre meios e

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AFONSO DA SILVA, 2011. 247

fins, baseado no princípio da proporcionalidade.

A definição do que é realmente essencial dependerá das condições ou circunstâncias fáticas e do contexto (ou zona) de conflitos com outros direitos e interesses em cada caso concreto. Mais uma vez, Gilmar Ferreira Mendes (2011) esclarece: “o núcleo essencial seria aquele mínimo insuscetível de restrição ou redução com base nesse processo de ponderação. Segundo essa concepção, a proteção do núcleo essencial teria significado marcadamente declaratório”248.

Neste caso, a crítica que se faz é exatamente pelo extremo oposto da concepção absoluta. Confere-se grande flexibilidade aos direitos fundamentais, o que acabaria por descaracterizá-los como princípios centrais do sistema constitucional.

É certo que a Constituição da República de 1988 não disciplina de forma expressa a proteção do núcleo essencial dos direitos fundamentais. Não obstante, sua presença, ainda que de forma relativa, parece soar no artigo 60, §4º, inciso IV, quando veda expressamente qualquer proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais. A lição de Bernardo Gonçalves Fernandes (2011):

“Qualquer limitação (restrição) aos direitos fundamentais tem que respeitar o núcleo essencial destes, ou seja, o núcleo essencial que envolve diretamente os direitos fundamentais e por derivação a noção de dignidade da pessoa humana, que não pode ser abalada. O controle desses limites, então, fica a cargo do Judiciário.”249

As limitações aos direitos fundamentais devem, portanto, obedecer sempre a regra da proporcionalidade e suas subregras: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, identificando-se bastante com os princípios orientadores da Legística, quando se está diante de uma ação normativa geral e abstrata.

Compreende-se a subregra de adequação como o meio que deve ser apto a alcançar determinado resultado.

A necessidade consiste em afirmar que as restrições ou limites são os menos

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MENDES, 2011, p. 242 249

gravosos ou prejudiciais para se alcançar os fins colimados. Não pode haver outro meio menos prejudicial, já que a ideia de inovação normativa sempre revela uma restrição à liberdade.

Por fim, como bem esclarece Bernardo Gonçalves Fernandes (2011), há de ser considerada a proporcionalidade em sentido estrito (relação custo/benefício), ou seja, “o ônus com a medida restritiva (que obviamente causa ônus) deve ser menos que o bônus. Nesse caso, a restrição (ou limitação) irá desenvolver mais do que prejudicar o direito fundamental em questão (ou os direitos fundamentais em questão)”250.

Ao lado da ideia de proibição ao excesso, decorrente da aplicação da regra da proporcionalidade, a Corte Constitucional alemã tem adotado a proibição da proteção insuficiente, como alude Gilmar Mendes (2011). A conduta estatal insuficiente é, nesse sentido, inadequada e ineficaz. Logo, é também desproporcional em sentido estrito e ofensiva ao núcleo essencial. Por essa razão, inclusive, cumpre ao Poder Executivo adotar ação normativa quando o vácuo legal no exercício de sua atividade institucional comprometa a tutela de direitos fundamentais.

Em qualquer hipótese, as limitações ou restrições devem ser claras no texto normativo, até como corolário da segurança jurídica. São necessárias clareza e precisão, afastando interpretações que induzam a ampliar restrições não reconhecidas pelo ordenamento jurídico constitucional. Nesse mesmo sentido, as limitações devem ter natureza geral, como corolário da igualdade constitucional e obstando discriminações absurdas ou arbitrárias.

Como se verifica, a Legística exerce o seu papel fundamental ao propor meios de controle sobre a atividade normativa (produção do direito), mormente quando se está diante da temática dos direitos fundamentais. A proteção do núcleo essencial exige afastar comandos legais casuísticos, standards e conceitos extremamente indeterminados no direito posto que ampliem a margem de discricionariedade, comprometendo o conhecimento real do direito e o controle jurisdicional.

Desse modo, qualquer que seja o ato normativo do Poder Executivo que lhe

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seja reconhecida competência para editar, ainda que estejamos diante de uma norma individual, a integração no sistema jurídico está limitada pelo núcleo intangível dos direitos fundamentais, servindo o instrumental da Legística para o seu controle durante o processo elaborativo.

7.2.2. O princípio da reserva legal e a legalidade ampla – a possibilidade de

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