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4. A NOVA INTERPRETAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

4.2. A resposta possível do pós-positivismo

É possível justificar a concepção ampla de princípio da legalidade a partir de uma perspectiva pós-positivista. Embora não seja esse o propósito – e não temos a presunção de explorar as linhas do pensamento substancialista – não podemos ignorar a construção doutrinária que agasalha a ideia de legalidade ampla para a concretização de direitos fundamentais, autorizando ações do Poder Executivo sem amparo em lei expressa.

Note-se que o centro da discussão pós-positivista pode ser sintetizado pelo reconhecimento do Direito não apenas por meio de normas postas e o rigor lógico- dedutivo do aplicador, mas também pela afirmação de princípios a revelarem, ainda que de forma não expressa, um sistema jurídico aberto, observando-se o conteúdo axiológico acima do processo formal criativo do ordenamento.

A partir dessa visão, o princípio da legalidade admitiria o agir da Administração Pública, inclusive nos casos de omissão legislativa para a proteção e defesa de princípios e valores que compõem a realidade social. Mais: o Poder Executivo poderia recusar-se ao cumprimento de leis que, no seu juízo de interpretação, contrariassem os critérios de justiça, os valores denominados “democráticos”, ultrapassando o plano normativista positivista para a satisfação de um ideal de justiça.

A doutrina pós-positivista tem demonstrado bastante interesse pela defesa de uma função normativa aos Juízes, mesmo nos sistemas jurídicos de tradição

romano-germânicos. Para tanto, revisitam a teoria tripartite de Montesquieu (1996) e o contrato social de Rousseau (1996), demonstrando, por meio de uma lógica metajurídica, que a realização da justiça e a defesa de uma ordem democrática exigem o reconhecimento de um sistema jurídico aberto.

Segundo Dworkin (1999), o direito não seria esgotado por nenhum “catálogo de regras ou princípios”. Teria, pelo contrário, abertura a ponto de definir-se pela atitude. Revela-se, pois, como um sistema aberto, jamais estanque ou imutável pela cartilha procedimental das normas postas.

“O império do Direito é definido pela atitude, não pelo território, o poder ou o processo. (...) É um atitude interpretativa e auto- reflexiva, dirigida à política no mais amplo sentido. É uma atitude contestadora que torna o cidadão responsável por imaginar quais são os compromissos públicos de sua sociedade com os princípios, e o que tais compromissos exigem em cada nova circunstância. (...) A atitude do Direito é construtiva: sua finalidade, no espírito interpretativo, é colocar o Princípio acima da prática para mostrar o melhor caminho para um futuro melhor, mantendo a boa-fé com relação ao passado. É, por último, uma atitude fraterna, uma expressão de como somos unidos pela comunidade apesar de divididos por nossos projetos, interesses e convicções. Isto é, de qualquer forma, o que o Direito representa para nós: para as pessoas que queremos ser e para a comunidade que pretendemos ter.”95

Nesse sentido, não se poderia ignorar que o direito pressupõe a existência de um ordenamento jurídico erigido sob os valores reconhecidos pela sociedade. Decorre de uma construção voltada para o conteúdo e não para a forma, partindo da realidade social e tendo como características ordenação, abertura, unidade e mobilidade96. A realidade o influencia, denotando sua constante dinâmica e necessária adaptação ao contexto de sua aplicação.

A defesa do princípio da legalidade em uma dimensão ampla, pós-positivista, passa a vincular o Administrador Público, no exercício de suas funções, não apenas à validade formal das normas esculpidas no ordenamento. O administrador está vinculado à sua validade material, que exige um juízo de interpretação e conformação do direito aos valores defendidos pela sociedade. Essa carga

95

DWORKIN, 1999, p. 492. 96

axiológica estaria expressa na Constituição, mas não apenas, revelando a sua sujeição ao império da justiça.

Essa visão de legalidade é defendida por Carmen Lúcia Antunes Rocha (1994), Ministra do Supremo Tribunal Federal:

"O ‘império’ da lei não tem mais lugar no Estado Democrático de Direito material, pois neste o que se adota é o ‘Império da Justiça’, sob cuja égide ainda se forma e se informa a ordem jurídica contemporânea. A ‘legalidade’ não é cogitada, pois, senão com o significado de ser aquela que veicula a materialidade da Justiça concebida e desejada pelo povo de um Estado, segundo suas necessidades e aspirações. A dimensão do Estado haverá que ser, pois, a desta Justiça realizadora do bem de todo o povo, da universalidade das pessoas que o compõem, mais, ainda, sem prejuízos graves ou fatais para toda a humanidade, pois não poucas vezes, agora, os interesses públicos não são apenas locais, mas transnacionais, como ocorre quando se cuida de meio ambiente, saúde e, especialmente, direitos humanos."97

Observamos essa defesa na doutrina do Direito Administrativo moderno. Além de Carmem Lúcia Antunes Rocha (1999), que o denomina como princípio da juridicidade, João Batista Gomes Moreira (2003) e Juarez Freitas (1999) exploram o conceito de princípio da constitucionalidade, tal como Diogo de Figueiredo Moreira Neto (ano) apresenta o princípio da legitimidade, dentre outros. Recorrendo a figura de um “arco-íris”, Luciano Ferraz (2005) explica que o princípio da legalidade, no contexto atual, revela uma fusão dos princípios da eficiência, razoabilidade, proporcionalidade etc98.

Luiz Roberto Barroso (2007) ensina, ao escrever sobre as tendências do constitucionalismo moderno e seus reflexos sobre o direito administrativo, que o administrador público pode e deve atuar tendo por fundamento direto a Constituição e, independentemente, em muitos casos, de qualquer manifestação do legislador ordinário. O princípio da legalidade teria transmudado em princípio da juridicidade, compreendendo a subordinação da Administração à Constituição e à lei.

97

ROCHA, 1994, p.109. 98

A propósito: “No âmbito do Direito Administrativo, o princípio da legalidade começa a ganhar colorido: o ordenamento jurídico-administrativo passa a angaria manifestações exógenas traduzidas em princípios, tais como moralidade, razoabilidade, proporcionalidade, eficiência, eficácia, amalgando substância e brilho, num verdadeiro arco-íris normativo.” (FERRAZ, 2005, p. 2)

À toda evidência, a lição de Barroso (2007) sobre a tendência do constitucionalismo em que se mira é a mesma defendida por Carmem Lúcia (1994) e demais autores acima referidos. Não se vinculam aos rigores positivistas de validade formal das normas, mas admitem a construção normativa, seja pelo julgador, seja pelo Administrador Público, aos critérios materiais (substanciais), devendo ambos responderem à pergunta: esta lei é justa?

Leila Cuéllar (2011) também adota o conceito amplo de legalidade, defendendo que a vinculação da Administração é ao direito, portanto, à legalidade que denomina como material99. Já Lúcia Valle de Figueiredo (1998) é ainda mais precisa ao afirmar que o princípio “é bem mais amplo do que a mera sujeição do administrador à lei, pois aquele, necessariamente, deve estar submetido também ao Direito, ao ordenamento jurídico, às normas e princípios constitucionais”100.

No exercício de sua função normativa, a Administração Pública deverá, a partir de uma corrente pós-positivista, atentar para o cumprimento dos rigores do processo formal de elaboração, mas com a sua subsunção às dimensões substantivas do conteúdo normativo para a maior efetivação dos valores apregoados pela razão humana.

Desse modo, o Poder Executivo terá respaldo ao realizar seus atos na afirmação dos valores defendidos pela sociedade. A Administração Pública deverá agir, a partir de uma legalidade ampla, para dar maior efetividade aos direitos fundamentais reconhecidos pela ordem constitucional, dispensando leis formais expressamente autorizativas para todos os seus atos.

Válida a ponderação feita por Juarez Freitas (1999):

“Assim, a subordinação da Administração Pública não é apenas à lei. Deve haver respeito à legalidade sim, mas encartada no plexo de características e ponderações que a qualifiquem como razoável. Não significa dizer que se possa alternativamente obedecer à lei ou ao Direito. Não. A legalidade devidamente adjetivada razoável apresenta-se menos como submissão do que como respeito. Não é servidão, mas acatamento pleno e concomitante à lei e, sobretudo, ao Direito. Assim, desfruta o princípio da legalidade de autonomia relativa, assertiva que vale para os princípios

99

CUÉLLAR, 2011, p. 39. 100

gerais.”101

Não são poucos os que sustentam os perigos para a segurança jurídica das teses substancialistas. Toda essa construção pós-positivista é extremamente louvável e enriquecedora, mormente se adentrássemos na corrente argumentativa do Direito. Robustece e – para não sermos injustos – amplia ainda mais a dimensão de princípio da legalidade no Estado contemporâneo.

Sem adentrar no mérito de quem está com a razão, tentando ocupar o papel de Hermes, defendemos o reconhecimento de uma função normativa do Poder Executivo que seja exercida de forma complementar, colaborativa, integrativa, devidamente autorizada pelo sistema jurídico, seja por meio de normas constitucionais, legais ou infralegais.

Resta clara a oposição que temos à concepção de outrora em relação ao princípio rígido da legalidade, segundo o qual a Administração Pública somente poderia agir mediante prévia definição por lei formal, bem como, sob a óptica do cidadão, os atos normativos infralegais não poderiam definir obrigações ou regulamentar o exercício de seus direitos, jamais inovando na ordem jurídica.

Bastante provocante o ideal de justiça e a concepção de direito pós- positivista. A confiança de que o Poder Executivo poderia, tal como o Supremo Tribunal Federal tem entendido nos casos de omissão legislativa102, aplicar o direito por princípios, dando o máximo de eficácia aos direitos fundamentais por meio de uma análise interpretativa criativa (integrativa) é, certamente, algo que fascina. Deve-se considerar, por outro lado, a sua faceta perigosa, relacionada à legitimação de atos arbitrários em nome de uma justiça duvidosa – ou em nome de quem lhes prestigia.

Andythias Matos (2009) aponta os perigos de defesa das teses materiais, já que se prestaram – essas sim – a legitimarem regimes jurídicos autoritários em contraposição a acusação – dita injusta – sofrida pelo positivismo jurídico:

101

FREITAS, 1999, p. 60. 102

Greve dos servidores públicos, casamento de homossexuais, aborto etc. Casos já citados nessa pesquisa.

“Esse primeiro argumento epistemológico já bastaria para absolver o positivismo jurídico da acusação de legitimador de regimes jurídicos autoritários: seu acentuado formalismo não lhe permite tal façanha, ao contrário das teses materiais (substanciais-legitimadoras, no dizer de Dimoulis) que justificaram o nazismo, o fascismo e o stalinismo, que pretendendo superar o Estado de direito, ambicionavam criar um ‘Estado de justiça’ onde princípios jurídicos como o da anterioridade, o da irretroatividade das leis, o da tripartição das funções do poder e o da legalidade estrita seriam afastados pelos juízes, em nome dos ‘ideais do povo’, efetivando assim uma flexibilização do direito por meio da qual se confiaria grande poder discricionário aos julgadores, exatamente como querem os jusmoralistas dos dias de hoje.”103

Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2007) adverte, por sua vez, acerca de tendências doutrinárias que defendem o fim da supremacia da lei em favor da supremacia dos fins. Haveria, segundo o autor, a substituição da nomocracia pela telocracia.

“‘A supremacia dos fins’ equivale a ‘supremacia do fim revolucionária’, princípio construído pelos juristas soviéticos, para explicar e justificar o arbítrio relativamente aos indivíduos. Consiste esse princípio em última análise em afirmar que os objetivos políticos têm de prevalecer em toda e qualquer situação. Assim, os tribunais não só podem como devem decidir contra a lei, se isso for necessário para o prevalecimento dos objetivos políticos. Em conseqüência disso, não há hierarquia das fontes de direito para o direito soviético.

É patente que a supremacia dos fins implica a rejeição do regime constitucional pluralista e da filosofia que o inspira. Conduz a destruir a segurança individual, na medida em que ninguém poderá num dado momento saber como proceder para que amanhã não seja tido como criminoso. (...) Na verdade, só o pleno restabelecimento da supremacia da lei, mas da lei orientada para a Justiça, é que pode salvar essa civilização.”104

A ideia de conceder liberdade à atuação do ao Poder Executivo, desvinculando-a do critério lógico-dedutivo formal do positivismo, mas vinculando-a ao conteúdo axiológico das normas que orientam um dado sistema jurídico, é algo que se recomenda extrema cautela.

103

MATOS, 2009, p. 103-123. 104

Preocupa-nos, a exemplo do que foi argumentado por Ferreira Filho (2007) e Andythias Matos (2006;2009), que o Administrador Público possa ter amplas digressões e esteja autorizado a ultrapassar os postulados da certeza e da segurança, justificando o cumprimento ou descumprimento de normas postas, inclusive as de estatura constitucional, conforme o ideário político que ocupe o Poder.

Diante dessas considerações, resta suficientemente demonstrado, seja por meio do pensamento positivista ou pós-positivista, que o cenário do Estado de Direito atual admite a ampliação do princípio da legalidade, traduzindo a possibilidade de o Poder Executivo exercer uma função normativa colaborativa, complementar, integrativa do sistema jurídico, sem que represente ofensa aos princípios republicanos e à ordem democrática (positivados ou não). Trata-se, assim, de uma exigência decorrente dos fenômenos empíricos sociais.

Ao se adotar qualquer das correntes teóricas, admite-se a compreensão de atividade administrativa afinada a uma legalidade de alcance amplo, justificada e sujeita a todo o sistema jurídico. Suas atribuições normativas decorrem obrigatoriamente desse sistema – não representam delegação ou abdicação de função legislativa, mas recurso necessário à realidade social que autoriza (reconhece) tal competência ao Poder Executivo para regulamentar com o alcance necessário casos que, ao Poder Legislativo, não é dado fazer.

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