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O procedimento de aplicação judicial da pena verificado nas sentenças proferidas pelos magistrados catarinenses corrobora a hipótese levantada no presente trabalho, qual seja, a de que a imprecisão conceitual que caracteriza as circunstâncias judicias, malgrado o esforço doutrinário e jurisprudencial para definir os seus contornos, acaba por conferir ao julgador amplo – e perigoso - espaço de discricionariedade.

Com efeito, os precedentes selecionados revelaram que, na prática, as circunstâncias judicias previstas no art. 59 apresentam-se como “campos em brancos” a serem preenchidos durante o procedimento de aplicação judicial da pena, verificando-se que não há um consenso, entre os magistrados, no tocante aos critérios de valoração e tampouco no que diz respeito aos fundamentos e elementos de provas considerados idôneos para a afastar a pena basilar do seu mínimo legal.

No ponto, para ilustrar a confusão conceitual relacionada ao referido dispositivo legal, importa relembrar que nos precedentes analisados o mesmo elemento fático foi considerado idôneo para apreciar diferentes vetores, esvaziando o conteúdo de cada um deles, a exemplo da condição de desempregado do acusado para valorar negativamente a culpabilidade e a conduta social do agente.

Nesse contexto, conforme bem ponderado por Salo de Carvalho (2010, p. 269), observa-se

O emaranhado no qual estão inseridos os aplicadores do direito, perdidos em conceitos vagos, lacunosos, contradições legais e imprecisas fórmulas jurisprudenciais. A ausência de critérios que permita ao julgador realizar de forma razoável e proporcional

a individualização da pena – como, p. ex., para decifrar o significado das circunstâncias judiciais, para diferenciar as circunstâncias e os elementos do tipo, para diferenciar o conteúdo de circunstâncias judiciais e legais, para distinguir argumentos condenatórios e valoração da reprovabilidade, para concretizar as circunstâncias e vincular a aplicação da pena às provas produzidas na instrução processual, para quantificar o peso das circunstâncias na dosimetria da pena – fomenta o descontrole neste momento crucial de incidência do sistema punitivo na sociedade, produzindo as inúmeras lesões nos direitos individuais expostas na análise da pesquisa empírica – violação dos princípios da fundamentação das decisões, do ne bis in idem, do contraditório, da legalidade, da livre apreciação da prova, da isonomia e da secularização.

Esse cenário de tipicidade aberta afronta, sobretudo, o princípio da legalidade, identificada por Ferrajoli (2002, p. 76-77), em seu sentido lato, com a reserva relativa da lei, ou seja, à submissão do magistrado às leis vigentes na qualificação jurídica dos fatos sob seu julgamento e, em seu sentido estrito, com a reserva absoluta da lei, esta na acepção substancial de norma ou conteúdo legislativo, o qual deve ser constituído por “pressupostos típicos dotados de significado unívoco e preciso, pelo que será possível seu emprego como figuras de qualificação em proposições judiciais verdadeiras ou falsas”.

E quando as previsões legais se apresentam vagas e imprecisas, como as circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal, mitigando, assim, o modelo regulador da legalidade em seu sentido estrito, verifica-se, de acordo com o mesmo autor, que

À atenuação ou dissolução da estrita legalidade se unem, assim, aquelas da estrita jurisdicionariedade: quer dizer, uma atenuação, até os limites da arbitrariedade, do poder de rotulação e de inquisição do juiz, que vem a configurar-se, segundo a ocasião, como confessor, psicanalista ou terapeuta social, em todos os casos desvinculado de critérios rígidos e certos de qualificação penal. E o juízo penal, da mesma forma que o ético ou o estético, degenera em juízo "sem verdade": não motivado por juízos de fato, isto é, por inserções verificáveis ou refutáveis, mas por juízos de valor, não verificáveis nem refutáveis porque, por sua natureza, não são verdadeiros nem falsos; não baseado em procedimentos cognitivos, pelo menos tendencialmente, e, por isso, expostos a controles objetivos e racionais, senão em decisões potestativas; não realizado mediante regras de jogo - como o ônus da prova e o direito à defesa - que garantam a "verdade processual", mas confiado à sabedoria dos juízes e à "verdade substancial" que eles possuem (FERRAJOLI, 2002, p. 37 - grifei).

Diante desse quadro, a ausência de critérios legais dificulta sobremaneira a impugnação ao procedimento de aplicação judicial da pena, constatando-se que, não raras as vezes, a valoração das circunstâncias judiciais nos precedentes colhidos foi realizada de forma vaga e imprecisa, sem lastro em fundamentos e elementos de provas idôneos a promover qualquer incremento na pena-base, impedindo, assim, o exercício pleno dos direitos do acusado quando submetido à persecução criminal, notadamente os da ampla defesa e do contraditório.

Assim agindo, o julgador não cumpre o mandamento constitucional 19 de expor ao

acusado as suas razões de decidir, devendo-se ter em vista que

[...] o conteúdo dos argumentos também deve ser (pré) determinado, fundamentalmente pela opção do Direito Penal da modernidade em instituir um modelo do fato-crime, excluindo valorações de cunho eminentemente morais. O controle material-substantivo, ou seja, daquilo que pode ou não ser objeto de valoração, é imprescindível, pois a subjetivação das hipóteses gera uma perversão inquisitiva do processo, dirigindo-o não mais à comprovação de fatos objetivos mas para a análise da interioridade da pessoa julgada; obtendo, como corolário, a degradação ...da verdade processual (empírica, pública e intersubjetivamente controlável) em convencimento intimamente subjetivo e, portanto, irrefutável do julgador (CARVALHO; CARVALHO, 2002, p. 34 -35).

Além disso, verificou-se em inúmeros decretos condenatórios a exasperação da pena- base mesmo ante a ausência, no conjunto probatório coligido, de elementos concretos a indicar que o fato delitivo atribuído ao acusado extrapolou os limites do tipo penal violado, em clara manifestação da punição do autor, ante a impossibilidade, no caso concreto, de maior reprovabilidade do fato.

Dessa forma, a análise jurisprudencial permite constatar que as circunstâncias judiciais subjetivas constituem “brechas” para o juiz tecer julgamentos puramente morais acerca do autor do fato delitivo, sendo a tipicidade aberta que caracteriza o art. 59 do Código Penal, portanto, um instrumento de legitimação do punitivismo na lógica inquisitorial que permeia o sistema penal brasileiro (CARVALHO, 2010, p. 242).

De fato, basta uma rápida lida nos acórdãos colhidos para verificar o recrudescimento da pena na primeira etapa dosimétrica com base em elementos fáticos que não se relacionam com o fato delitivo e tampouco permitem uma maior censura ao acusado, a exemplo da condição de desempregado do réu ou as suas boas condições de vida, o (suposto) mal exemplo dado à prole com a prática delitiva, o registro de atos infracionais e a condição de usuário de drogas, todos relacionados a um juízo moral realizado pelos magistrados.

Sobre a relação entre direito e moral, aliás, importante destacar lição de Ferrajoli (2002, p. 179) esclarecendo que:

Para que se possa proibir e punir comportamentos, o princípio utilitário da separação entre direito e moral exige, como igualmente necessário, o fato de que os mesmos

19 Art. 93, inciso IX, da Constituição Federal: IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão

públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;

ofendam concretamente bens jurídicos alheios, cuja tutela é a única justificação das leis penais enquanto técnicas de prevenção daquelas ofensas. O Estado, com efeito, não deve imiscuir-se coercitivamente na vida moral dos cidadãos nem mesmo promover-lhes, de forma coativa, a moralidade, mas, somente, tutelar-lhes a segurança, impedindo que os mesmos causem danos uns aos outros. Em segundo lugar, se aplicado ao processo, e conseqüentemente aos problemas da jurisdição, o princípio normativo da separação impõe que o julgamento não verse sobre a moralidade, ou sobre o caráter, ou, ainda, sobre outros aspectos substanciais da personalidade do réu, mas apenas sobre os fatos penalmente proibidos que lhe são imputados e que, por seu turno, constituem as únicas coisas que podem ser empiricamente provadas pela acusação e refutadas pela defesa. Assim, o juiz não deve indagar sobre a alma do imputado, e tampouco emitir veredictos morais sobre a sua pessoa, mas apenas individuar os seus comportamentos vedados pela lei. Um cidadão pode ser punido apenas por aquilo que fez, e não pelo que é. (grifei).

Felizmente, a comparação entre as fundamentações das decisões impugnadas e os acórdãos reformadores, assim como a análise de decisões paradigmáticas – e de entendimentos sumulados – dos Tribunais Superiores, revelou que os órgãos colegiados procuram impor freios ao punitivismo dos juízos singulares, além de “direcionar a jurisprudência no sentido garantista da interpretação das normas penais e processuais penais” (CARVALHO, 2010, p. 242-243).

Ainda assim, verificou-se na análise jurisprudencial que é bastante amplo o espaço para a manifestação de um direito penal do autor, tendo em vista os muitos julgamentos morais e a análise da “periculosidade” do agente, remetendo ao conceito formulado por Zaffaroni (2002, p. 66) sobre o tema:

Este derecho penal imagina que el delito es síntoma de un estado del autor, siempre inferior al del resto de las personas consideradas normales. Este estado de inferioridad tiene para unos naturaleza moral y, por ende, se trata de una versión secularizada de un estado de pecado jurídico, en tanto que para otros es de naturaleza mecánica y, por lo tanto, se trata de un estado peligroso. Los primeros asumen expresa o tácitamente la función de divinidad personal y los segundos asumen la de divinidad impersonal y mecánica.

Nessa perspectiva, o delito revela-se como um sinal indicativo da necessidade de o sistema penal investigar e reprovar toda a vida pecaminosa do agente criminoso, e o seu cometimento apresenta-se, também, como uma evidência de falha de um aparato complexo, mas que é na verdade uma complicada peça de outro sistema maior: a sociedade. Assim, essa pequena falha significa um perigo para o mecanismo maior, ou seja, indica um estado de periculosidade, de modo que as agências jurídicas têm a incumbência de corrigir ou neutralizar essas peças falhadas (ZAFFARONI, 2002, p. 65 – tradução nossa).

Acerca da valoração da perigosidade do agente criminoso, Zaffaroni (2002, p. 65 – tradução nossa) destaca a sua manifesta incompatibilidade com um direito penal de culpabilidade, seja esta do ato ou do autor, tendo em vista que os conceitos tomam por base antropologias inconciliáveis: enquanto a culpabilidade parte do princípio de que a pena deve ter caráter retributivo em virtude da autodeterminação do ser humano, a perigosidade, por sua vez, reduz a reprimenda à uma coação direta administrativa que tem por escopo a neutralização - positiva ou negativa – da determinação do ser humano à prática delitiva.

Em que pese essas diferentes – e conflitantes - perspectivas, Zaffaroni (2002, p. 65) pondera que

[...] la imaginación discursiva intentó estas conciliaciones imposibles, mezclando idealismomaterialismo y espiritualismo, objetivismo y subjetivismo valorativos, metafísica y empirismo, nominalismo y realismo, etc., con lo cual el discurso penal - que ya había asumido la potestad de ignorar las ciencias sociales- también se atribuyó la de yuxtaponer arbitrariamente elementos de las corrientes generales del pensamiento. El resultado fue un discurso que pretende indicarles a las agencias jurídicas que consideren al humano como un ente que produjo un mal atribuible a su autodeterminación y, al mismo tiempo, que lo considere como un ente causante de mal, que necesita ser neutralizado: asimismo, el juez debe considerar al humano como una persona con conciencia moral y como una cosa peligrosa. En la práctica con ello se le indica que cuando quiera imponer uma pena aunque no haya delito (o cuando habiéndolo no le parezca suficiente la retribución o la neutralización), obvie sus límites, apelando a las teorías contrarias.

Dessa forma, verifica-se que a prática comum de análise da periculosidade do agente quando da aplicação judicial da pena deve ser afastada, tendo em vista que essa espécie de sanção penal é imposta somente àqueles que agem com capacidade de autodeterminação, existindo patente incoerência, conforme indicado por Zaffaroni, em se considerar um sujeito capaz de agir livremente e, ao mesmo tempo, puni-lo de forma mais severa em razão da sua perigosidade.

E no cenário de “peças falhadas” no corpo social, conforme descrito pelo autor, certo é que algumas são alvo de maior punição pelo sistema penal, tendo os precedentes colhidos revelado que a maioria dos crimes em que o julgamento moral sobre o autor do delito se mostrou mais rigoroso eram aqueles contra o patrimônio - sobretudo furto e roubo - e o de tráfico de drogas, perpetrados, como é sabido, em sua esmagadora maioria pelas classes mais inferiores sob o ponto de vista socioeconômico, reforçando, assim, a ideia de que:

[...] o sistema penal está estruturalmente montado para que a legalidade processual não opere e, sim, para que exerça seu poder com altíssimo grau de arbitrariedade

seletiva dirigida, naturalmente, aos setores vulneráveis. Esta seleção é um produto de um exercício de poder que se encontra, igualmente em mãos dos órgãos executivos, de modo que também no sistema penal "formal" a incidência seletiva dos órgãos legislativo e judicial é mínima (ZAFFARONI, 2001, p. 27).

Dessa forma, tendo em vista essa seletividade do sistema penal, tem-se que o seu exercício de poder acaba por assumir muito mais a função de contenção de determinados grupos sociais do que propriamente à repressão do delito cometido, como visto, principalmente, na valoração moral dos indivíduos desempregados, usuários de drogas e daqueles que, por outros motivos, foram considerados “perigosos” ou merecedores de punição mais rigorosa (ZAFFARONI, 2001, p. 40).

No ponto, releva anotar que, conforme registrado por Baratta (2002, p. 177-178), pesquisas empíricas revelam os diferentes juízos de valor feitos pelos magistrados de acordo com a classe social do indivíduo, levando-os, ainda que involuntariamente,

[...] a tendências de juízos diversificados conforme a posição social dos acusados, e relacionados tanto à apreciação do elemento subjetivo do delito (dolo, culpa) quanto ao caráter sintomático do delito em face da personalidade (prognose sobre a conduta futura do acusado) e, pois, à individualização e à mensuração da pena destes pontos de vista. A distribuição das definições criminais se ressente, por isso, de modo particular, da diferenciação social. Em geral, pode-se afirmar que existe uma tendência por parte dos juízes de esperar um comportamento conforme a lei dos indivíduos pertencentes aos estratos médios e superiores; o inverso ocorre com os indivíduos provenientes dos estratos inferiores. Em referência a delitos contra o patrimônio tem sido mostrado o predomínio destas duas tendências opostas, conforme a extração social do acusado.

Destarte, uma vez identificada a relação entre a tipicidade aberta que caracteriza o art. 59 do Código Penal e a manifestação de um direito penal do autor, resta agora apontar, entre as circunstâncias judiciais subjetivas, aquelas em que o julgamento moral recai sobre o agente criminoso de forma mais acentuada.

3.7 CULPABILIDADE, PERSONALIDADE E CONDUTA SOCIAL: AMPLIAÇÃO DO

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