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A imprecisão conceitual que caracteriza a circunstância judicial da culpabilidade, conceito de natureza estritamente jurídica, apresenta-se de forma mais evidente na análise da

personalidade do agente, haja vista que o julgador, em muitos casos, acaba valorando-a com base em aspectos reservados à psicologia sem, contudo, ter conhecimento técnico para tanto.

Por isso, e considerando a tese firmada pelo Superior Tribunal de Justiça reputando como dispensável a existência de prova técnica elaborada por psiquiatra ou psicólogo para aferir a personalidade do agente, deve-se diferenciar, consoante bem adverte Marina Pinhão Coelho Araújo (2017, p. 120)

A análise da personalidade do agente em termos jurídicos com exame da personalidade psicoanalítica do indivíduo, que num processo não se poderia afirmar, a menos que houvesse exame com profissionais capacitados para tanto. Um conceito psicológico da personalidade, sob análise dos tribunais, traria muita insegurança à aplicação do direito, e, principalmente, a aplicação das penas. [...]. O que o magistrado pode – e deve – aferir, é a personalidade como um conceito meramente jurídico e atrelado aos fatos narrados no processo. Falar sobre a personalidade do agente em provas colhidas ao longo da instrução criminal, tais como bondade, compaixão, responsabilidade, honestidade, calma, ou ainda raiva, inveja, agressividade, entre outros.

Entretanto, essa distinção não se revelou de forma clara nos precedentes colhidos, verificando-se que a personalidade do agente, na maioria dos casos, não tem o seu conceito bem delineado pelo magistrado sentenciante, haja vista a recorrência nas fundamentações das decisões impugnadas da análise genérica da personalidade do agente – atrelada indistintamente, em alguns casos, à conduta social – como “desfavorável”, “reprovável” ou “mal formada”.

Sobre a questão, Boschi (2014) afirma que essas conceituações nada dizem sob o ponto de vista técnico, exceto em nível de temperamento ou caráter, destacando o autor, ainda, que nos julgamentos a incursão na história pessoal e familiar do acusado feita pelo magistrado é, na maioria das vezes, bastante rasa.

Retornando-se à análise dos acórdãos, constatou-se que a valoração mais frequente nas decisões recorridas é o de “personalidade voltada para o crime/prática delitiva”, tratando-se, conforme leciona Nucci (2019) de expressão de uso comum na prática forense, não obstante dissociada de qualquer critério científico para analisar e conceituar a personalidade do agente. Para esse doutrinador, o comportamento humano não pode ser reduzido a uma determinada prática, mas sim a uma qualidade ou defeito, de modo que a assertiva de que o réu tem a sua personalidade voltada ao crime resgata o conceito do homem delinquente de Lombroso, definindo-o como um criminoso por natureza.

Nos precedentes analisados, a personalidade do agente foi definida como propensa à prática criminosa sobretudo com base nas condenações pretéritas transitadas em julgado, tendo

ocorrido, em alguns casos, a violação ao princípio do ne bis idem, com o uso da mesma condenação para valorar a personalidade e os antecedentes.

Todavia, conforme já registrado nos capítulos passados, firmou-se no âmbito do Superior Tribunal de Justiça o recente entendimento que os decretos condenatórios com trânsito em julgado poderiam sopesar a primeira etapa dosimétrica tão somente no que diz respeito aos antecedentes, afastando-se, assim, a prática comum de “preencher” o vetor da personalidade com base em um elemento reservado à outra circunstância judicial.

No ponto, importa transcrever trecho do acórdão prolatado nos autos 0000902- 72.2015.8.24.0069, tendo a instância revisora registrado que:

O juízo a quo não procurou perfilhar os conceitos de conduta social e personalidade acima exarados com o caso dos autos, de modo que, ao mencionar em seu veredicto que estaria exasperando a pena-base diante de duas condenações, sem, ao menos, justificar as razões necessárias que o levaram a tal inclinação, figura-se como motivação inidônea [...]. Migração para os antecedentes (SANTA CATARINA, 2019).

Dessa forma, conforme constatado por Salo de Carvalho (2010, p. 186) em pesquisa empírica, é bastante comum, além da valoração conjunta dos vetores da personalidade e da conduta social, a fusão de ambos com os antecedentes, reforçando, no seu entender, a hipótese de que a dupla valoração de elementos no procedimento de aplicação judicial da pena ocorre com frequência.

A quantidade expressiva de sentenças condenatórias em contrariedade a esse entendimento é plenamente justificável, consoante registrado anteriormente, em razão da recente mudança jurisprudencial neste particular. Entretanto, verificou-se também contrariedade a posicionamento há muito firmado pelo mesmo Superior Tribunal de Justiça, como o uso de inquéritos policias e ações penais em curso para reputar a personalidade do agente como propensa à prática delitiva, à revelia do que dispõe a sua Súmula de n. 444, editada no ano de 2010.

Em violação ao referido verbete sumular, mostra-se como exemplo a decisão de primeiro grau proferida nos autos 0003082-86.2017.8.24.0038, tendo o magistrado sentenciante registrado que “o réu foi denunciado pela prática de mais dois fatos análogos que tramitam perante esta Unidade Jurisdicional, sendo que em um dos feitos já foi inclusive condenado, demonstrando a sua propensão à violência e periculosidade social” (SANTA CATARINA, 2019).

No que diz respeito à “periculosidade” do agente, mencionada – direta ou indiretamente – em muitos dos acórdãos selecionados, importa destacar que, conforme bem anotado por Salo de Carvalho (2008, p. 132), a

[...] noção de personalidade do acusado padece de profunda anemia significativa e que, agregada ao conceito de conduta social (outro requisito subjetivo presente nos institutos avaliados), conforma substrato legitimante de decisões extremamente autoritárias e sem o mínimo controle jurisdicional, visto que tais hipóteses são irrefutáveis sob o ponto de vista probatório, dado seu caráter subjetivista. Outrossim, por sua indefinição e verdadeira impossibilidade de comprovação e refutação em juízo, nota-se que as noções de personalidade e conduta social se confundem jurisprudencial e conceitualmente com a de periculosidade, sendo sua determinação inclinada a juízos e prognósticos de tendências delinquenciais, na melhor orientação de um direito penal do autor.

O mesmo autor observa, ainda, que a periculosidade carece da mesma ausência de significado da vetorial da personalidade, ponderando que aquela, também chamada de perigosidade, baseia-se no juízo de que o agente, em razão do seu comportamento desajustado na sociedade, tem a probabilidade de cometer um crime ou reiterar na prática delitiva. Assim, tem-se que a periculosidade na valoração da personalidade – e também da conduta social do acusado – revela-se como um "juízo futuro e incerto sobre condutas de impossível determinação probabilística, aplicada à pessoa rotulada como perversa, com base em uma questionável avaliação sobre suas condições morais e sua vida pregressa” (CARVALHO, 2008, p. 135).

Da mesma forma, a vedação à utilização do histórico de atos infracionais para valorar a personalidade do agente não é entendimento recente na jurisprudência daquele mesmo Tribunal Superior, merecendo transcrição a decisão proferida no julgamento do Habeas Corpus 57.924/MS:

O Direito Penal, dadas as conquistas liberais, estabelece a distinção entre as respostas penais: para imputáveis, à luz da culpabilidade, cominam-se penas; para inimputáveis, de acordo com a periculosidade, são estabelecidas medidas educativas/curativas. Diante deste modelo, é incompossível exacerbar a reprimenda criminal com base em passagens pela Vara da Infância; isto porque, assim se entendendo, confundem-se grandezas distintas – culpabilidade e periculosidade. O comportamento carente de capacidade de entendimento/autodeterminação não se presta a aumentar a pena (BRASIL, 2009).

Contudo, em mais de uma das decisões analisadas a pena-base foi recrudescida com base nesse argumento, a exemplo da ação penal n. 0005250-03.2013.8.24.0135 em que o magistrado sentenciante entendeu que “a personalidade da ré é voltada para o mundo do crime,

em face aos atos infracionais, principalmente pelo cometimento do mesmo delito” (SANTA CATARINA, 2019).

Releva destacar, ainda, dois precedentes nos quais que a vetorial sob enfoque foi valorada com base nas declarações judiciais do acusado sobre determinada circunstância do fato delitivo, isto é, tão somente em situações episódicas que não oferecem elementos concretos, a toda evidência, para aferir corretamente a personalidade do agente.

Nos autos n. 0001096-12.2016.8.24.0013 o juízo singular entendeu que o réu possuía “personalidade desfavorável, pois mentiu sistematicamente neste processo, inclusive mantendo a mentira ainda que confrontado, no interrogatório, com as diversas versões dadas para o fato, em um nível de dissimulação incomum” (SANTA CATARINA, 2019).

E na ação penal n. 0006588-22.2018.8.24.0075 o magistrado sentenciante reputou como desfavorável a personalidade do acusado em razão de sua negativa, ao ser interrogado judicialmente, de revelar a propriedade da droga apreendida em seu poder, muito embora tenha ele confessado a prática do delito previsto no art. 33, caput, da Lei 11.343/2006.

Acerca desse fundamento, também considerado na análise da culpabilidade, como visto anteriormente, impende observar que o Superior Tribunal de Justiça já registrou, conforme anotado no Habeas Corpus nº 334.643/SPque

Não é possível majorar a reprimenda básica do paciente em decorrência do conteúdo do seu interrogatório judicial, pois a sua tentativa de se defender das acusações contra ele formuladas não pode ser levada em consideração para elevar sua pena, procedimento que ofende o direito à não auto-incriminação (BRASIL, 2016).

No mesmo sentido, retira-se do escólio de Nucci (2015) que

[...] descabida é a discussão, à luz da Constituição Federal de 1988, se há o direito de mentir, ou não, extraindo-se disso a nítida posição de que o direito de não se autoacusar implica, por óbvio, no direito de invocar todos os instrumentos lícitos para o desempenho da autodefesa. Dentre tais instrumentos, encontra-se o direito de mentir. Se a mentira é moral ou imoral, ética ou antiética, tais debates são inoperantes e inócuos diante da imunidade maior, autorizada constitucionalmente, significando calar-se ou declarar o réu o que bem quiser.

Como se vê, a imprecisão conceitual e a inexistência de critérios previstos para a avaliação da personalidade do agente geram um “campo em branco” que é preenchido, no procedimento judicial de aplicação da pena, das mais diversas formas possíveis, ampliando-se, nesse cenário, o punitivismo judicial, dado que o julgador possui à sua disposição um espaço

aberto para julgamentos morais e considerações acerca de suas impressões pessoais sobre os réus, a exemplo do estilo de vida seguido por eles (CARVALHO, 2010, p. 184).

Nesse mesmo sentido, e acrescentando a dificuldade de impugnação da valoração da personalidade operada pelo julgador, Alexandre Morais da Rosa (2004, p. 360) bem observa que na análise da referida vetorial

Os julgamentos moralizantes desfilam com todo o vigor. Auto-arvorando-se em censores de toda-a-ordem-moral, a maioria dos magistrados adjetivam muito mais do que democraticamente poderia se esperar. Julgam, enfim, o ‘pária’ com um desdém demoníaco, em nome da ‘segurança jurídica’ e do ‘bem’, obviamente. Apesar de assim procederem, suas pseudoconstatações são o mais puro exercício de imaginação, quiçá um auto-julgamento, projetando no ‘outro’ seu ‘inimigo interno’, sem, ademais, qualquer hipótese comprovada, refutável em contraditório, mas tão-somente impressões pessoais, lugares-comuns, [...].

Ainda sobre essa controvertida circunstância judicial, ressalta-se interessante análise realizada por Boschi (2014) no sentido de que, para assegurar a coerência interna do ordenamento jurídico, o julgador deveria considerar como menos reprovável a conduta daquele que tiver a sua personalidade reputada como desfavorável, porquanto, na sua perspectiva, uma personalidade “deformada” afetaria a capacidade do indivíduo de comporta-se de acordo com a ética e as normas jurídicas.

Segundo o autor, existe clara incoerência em utilizar um transtorno de personalidade para incrementar a pena-base dado que, por outro lado, a perturbação da saúde mental ou o desenvolvimento incompleto ou retardado - circunstância mais gravosa – impõe ao magistrado a redução da pena provisória, conforme preceitua o art. 26, parágrafo único, do Código Penal.

Por derradeiro, no tocante aos elementos de prova considerados para a valoração da personalidade, cabe retomar as considerações feitas no subitem anterior sobre o interrogatório do acusado, bem como a análise sobre o seu direito à mentira, devendo-se acrescentar, ainda, que o registro de antecedentes criminais do acusado – bem como de atos infracionais - não mais se prestam, conforme anotado alhures, a avaliar a aludida circunstância judicial.

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