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A análise como possibilidade de novos vínculos identificatórios

4.1 Léo e sua varinha mágica: um episódio de quase devolução

4.1.6 A análise como possibilidade de novos vínculos identificatórios

No processo de atendimento individual, após falar com o pai, dois dias depois, atendi Léo, em uma segunda-feira. Ele chegou sorrindo: Marcia, eu e meu pai tivemos um final de semana de pai e filho, ele me ensinou a instalar um chuveiro e eu ensinei ele a baixar vídeos no celular. Parecia emocionado e feliz. Percebi que o atendimento que realizei com o pai, na sexta-feira, tinha, de certa forma, promovido alguma elaboração. Disse a Léo que percebi que estava feliz por ter recebido amor do seu pai e também por ter demonstrado amor por ele, e que algo novo estava surgindo. Ele lembrou: eu não o obedecia porque eu não conseguia amar ele. Eu tinha vontade de dizer: você não é meu pai, por que vou te obedecer? Mas eu ficava quieto, agora estou sentindo amor, um pouquinho mais, ele me olha diferente, até me elogiou. Tirou então de sua mochila uma varinha que ele mesmo havia feito e me presenteou: É a varinha da Hermione. Como sinal de reconhecimento, falei: Da bruxinha inteligente do filme do Harry Potter; sorrindo, ele disse que sim.

Penso que, como na série de Harry Potter, Léo, também adolescente, buscava valores de coragem, amizade, lealdade, admiração, vitórias, conquistas. Mas também ansiava muita magia para conseguir superar dificuldades e elaborar sentimentos, para que pudesse construir sua própria história, sua identidade e, com a minha ajuda, a “bruxinha Hermione”, encontrar um lugar de existência em sua nova família.

Interessante que, na série de livros de J. K. Rowling, Harry é um adolescente que perdeu os pais e foi adotado por seus tios “trouxas”. Como o personagem, Léo descobre um mundo no qual ele quer ser aceito e valorizado. Nesse contexto, percebe que só isso não basta para crescer; é preciso que se esforce, que faça amigos, que enfrente problemas de relacionamento com os pais, que vivencie perdas e decepções.

Logo em seguida, surgem em nossos encontros mais histórias que tratam de conflitos familiares: Você já assistiu ao filme Descendentes71, da Disney, Marcia?; respondi que não e, muito interessada, pedi para que me contasse. Léo foi então narrando a história dos filhos dos vilões que viviam na “Ilha Perdida”: um lugar horrível, Marcia, eles não sabiam que tinha um lugar melhor, não sabiam o que era o bem. Certa vez, eles foram convidados pelo príncipe Ben, filho da Bela e da Fera, que logo se tornaria rei, para estudar e viver em Auradon: Aí, eles descobrem que na verdade são bons, que eles não queriam ser o que os pais eram, muito maus, a filha da Malévola é a melhor, é a Mal e é muito legal, ela é forte, sabe?

Léo parece estar buscando quem ele é, quem quer ser. Percebe suas origens como essa “Ilha Perdida” e busca um lugar como Auradon, o amor, mas sem deixar de ser ele mesmo, sem deixar de ser forte. Minha impressão era de

71 Filme: Descendentes (Descendants, EUA), 2015: Fora da Ilha Perdida, Mal, filha de Malévola,

Evie (Sofia Carson), filha da Rainha Má, Jay, filho de Jafar, e Carlos, filho de Cruela De Vil, só ambicionam roubar a varinha mágica da fada madrinha, exposta no Museu, para alcançar a liberdade e dominar o mundo. Contudo, em Auradon, os filhos dos vilões clássicos passam a se entender melhor, sem ter a imposição de seus pais. Disponível em: http://www.resenhando.com/2015/08/resenha-critica-do-filme-descendentes.html. Acesso em: 29/09/2015.

que ser amoroso poderia indicar fragilidade, tornando-o muito exposto e sujeito a um novo abandono. Marcia, esse filme é muito parecido com a minha história... O trabalho com Léo nos mostra a busca dessa criança no complexo caminho que leva à organização psíquica, à aceitação de vivências de abandono muito radicais. Certamente, no decorrer de sua história, poderão emergir o temor de repetição de caos psíquico e as angústias impensáveis, que apontam para a experimentação de inúmeras situações traumáticas; daí, a importância da figura do terapeuta na função de acolher as angústias da criança e ajudá-la nesse longo processo elaborativo e, como expresso por Léo em uma cartinha que me entregou:

Marcia saiba que você me ajudou muito nos últimos meses... Você me ajudou nas horas em que mais precisei... Espero que continue fazendo magia com sua varinha, pois é o seu instrumento de trabalho; não que você precise, mas é sempre bom uma ajuda a mais.

4.2 Thomaz: a arte como sustentação psíquica

Segundo o relato da equipe técnica da instituição de acolhimento, Thomaz, de 12 anos de idade, um menino amoroso e comunicativo, precisava de atendimento psicológico “por apresentar certas necessidades específicas de não respeitar as regras e por se comportar como menina”. Ainda segundo a equipe, o acolhimento institucional de Thomaz e de seu irmão mais novo, Miguel, aconteceu em 2003; na ocasião, a mãe havia sido presa por tráfico de drogas e o pai, assassinado. Thomaz estava com 4 anos de idade.

Em 2011, os dois foram então direcionados para a adoção internacional72. O

casal italiano selecionado, católico e conservador, a princípio, supôs que teria problemas com Miguel, na ocasião com 9 anos de idade, que tomava remédios controlados por ter diagnóstico de TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade). Porém, antes da decisão final, durante o estágio de convivência, os irmãos fizeram vários passeios com os possíveis pais adotivos, em parques, cinemas, lojas. Logo na primeira semana, em uma loja de roupas, Miguel escolheu uma camiseta de time de futebol e uma bola, já Thomaz escolheu uma caneta com penas coloridas e pediu emprestada a bolsa daquela que seria sua futura mãe. Incomodado com esse comportamento de Thomaz, o casal logo se dirigiu à Vara da Infância para manifestar o interesse em adotar apenas Miguel, alegando que o mais velho “não havia se adaptado” à nova família.

Não ficou claro por que a justiça autorizou a adoção internacional de apenas uma criança, já que eles tinham vínculos afetivos73. Mas foi o que

72 É chamada adoção internacional de crianças/adolescentes aquela feita por estrangeiros. No

Brasil, a adoção internacional está condicionada à aprovação pelas Comissões Estaduais Judiciárias de Adoção Internacional (CEJA e CEJAI), às quais compete manter o registro centralizado de dados em que constem: candidatos estrangeiros e sua avaliação quanto à idoneidade, crianças/adolescentes disponíveis para adoção internacional e agências de adoção autorizadas ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS. Adoção passo a passo, 2008. Disponível em: https://www.amb.com.br/mudeumdestino/docs/Manual%20de%20adocao.pdf. Acesso em: 18/02/2015.

73 Cf. Lei n. 12.010/2009, art. 28, § 4º: Os grupos de irmãos serão colocados sob adoção, tutela

ou guarda da mesma família substituta, ressalvada a comprovada existência de risco de abuso ou outra situação que justifique plenamente a excepcionalidade de solução diversa, procurando- se, em qualquer caso, evitar o rompimento definitivo dos vínculos fraternais.

aconteceu: eles foram separados, e Thomaz voltou ao abrigo, sentindo muita falta do irmão, a quem era muito apegado.

Fica evidente neste episódio que estamos diante de um preconceito de gênero, também explicitado no discurso institucional, com a equipe técnica buscando ajuda para “corrigir” a suposta homossexualidade de Thomaz. São situações difíceis e delicadas, de impasses, principalmente porque, no Brasil, a adoção de crianças maiores é bastante rara, e elas acabam permanecendo em abrigos até os 18 anos, que é a idade limite, estabelecida por lei74, de amparo

institucional.

Um agravante: depois da experiência com o casal italiano, Thomaz não queria mais ser adotado fora do país...