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3.2 Clara: curando feridas

3.2.5 A importância do brincar

Melanie Klein contribuiu para a psicanálise desenvolvendo a técnica do brincar. As concepções proto-kleinianas levaram à ideia de que a criança sofre frequentemente de angústia, o que seria um motivador para a análise, que, se iniciada precocemente, daria a ela a possibilidade de desenvolver-se bem.

Em seus estudos do caso Rita, Klein (1996b), primariamente em 1923, descreve a atitude da criança diante de uma interpretação profunda: de início, mostra-se distraída e desatenta, passando para outro assunto; até que, no momento seguinte, uma brincadeira ou um desenho mostra que a interpretação foi aceita. Foi assim com Clara, quando retomei as situações de jogo que minha paciente propôs: quando brincava com a mãe de “Chapeuzinho Vermelho” e, ao entrarmos na sala, perguntei do lobo, Clara respondeu que ela era o lobo. Permiti, então, que seu lado “lobo” aparecesse na sessão.

Depois, iniciou seu jogo de cuidar das feridas do bebê; ao passar algodão molhado em meu rosto, perguntei por que o bebê estava com febre – ela então me revelou, baixinho: ele escutou barulhos, gritos... viveu com gente ruim... ficou ruim – ruim como um lobo feroz. Por meio dessa imagem de lobo, Clara me

revelava suas fantasias, de que não fora um bebê bom; oscilava entre a médica boazinha, que cuida, e a má, que acreditava ter dentro dela.

Minha paciente se referia, aqui, às angústias mais arcaicas, de experiências de contato, de carinho, de pele e relações violentas com outros adultos do passado. Diante do silêncio, da negação do abuso ou da desautorização das impressões infantis, a criança não pode, com seus precários recursos psíquicos, construir uma significação para a experiência vivida. Sem a ajuda de um terceiro que possa reconhecer o sofrimento e a perplexidade infantis, que possa mediar para que o ocorrido tenha algum sentido e seja metabolizado psiquicamente, a criança fica abandonada às suas próprias forças.

Parece que, neste caso, a subsequente relação estabelecida entre criança e pais adotivos pôde lhe proporcionar estabelecer novos vínculos afetivos, reparadores. Eliana e Pedro, embora angustiados, eram, de fato, pais dispostos a suportar as projeções e manifestações de angústias de separação, os traumas e desamparos de Clara, expressos quando ela, ao ser contrariada, quando queria alguma coisa e não recebia de imediato, jogava objetos ou os xingava de malditos, velho feio. Nesses momentos, os pais seguravam o choro e tentavam, com firmeza e de forma afetuosa, colocar limites, buscar um diálogo que levasse a pensar e a uma confiança maior no amor.

O brincar criativo de Clara, como coloca Winnicott, tem como posição o espaço potencial existente entre ela e a mãe adotiva: “(...) o amor da mãe, ou do terapeuta, não significaria apenas um atendimento às necessidades da dependência, mas vem a significar a concessão de oportunidade que permita ao bebê, ou ao paciente, passar da dependência para a autonomia” (WINNICOTT, 1975: 150).

E, com a ajuda da análise, essa garotinha foi conseguindo fazer ligações entre diversos fragmentos presentes em sua memória e curar suas feridas mais profundas.

Os casos de Bruna e de Clara nos levam a pensar que, na adoção, no ambiente facilitador, com o holding, a criança, aos poucos, terá no perder e encontrar, no brincar, na sobrevivência do objeto, a confiança necessária no objeto bom introjetado e nas relações interpessoais.

4 AS INTERFACES DA CLÍNICA

No contexto atual, o que se espera e procura é que a psicanálise, retomada incessantemente e reinventada a cada dia, volte e venha a ser a novidade que não envelhece apesar do tempo.

Luís Cláudio Figueiredo64

Os casos de Bruna e Clara, apresentados no capítulo anterior, trouxeram questões sobre o desafio da construção da filiação e da parentalidade, temas ainda pouco estudados na área da adoção. As narrativas também suscitam reflexões a respeito do trabalho clínico psicanalítico em suas interfaces.

Já há algum tempo, venho atendendo crianças, adolescentes e famílias, tanto no consultório como na universidade, seguindo a proposta winnicottiana de atendimento sob demanda. Isso significa reduzir o número de sessões por semana, em relação ao trabalho mais tradicional, incluindo, em alguns momentos, os pais no atendimento, além de, se necessário, conversas com o psicólogo da Vara da Infância.

Trata-se da psychanalyse hors mur, ou clínica ampliada, que tem como proposta responder aos novos limites, externos e internos, da chamada “clínica- padrão”, posicionando-se diante das demandas sociais e buscando novas formas de teorizar e praticar psicanálise, indo além do consultório. Conforme

64 In: As diversas faces do cuidar: novos ensaios de psicanálise contemporânea. São Paulo:

Figueiredo (2009), o psicanalista muitas vezes é chamado a exercer seu trabalho fora dos enquadres tradicionais.

De fato, a clínica com crianças e adolescentes adotivos traz novas demandas teóricas, que envolvem uma rediscussão do método, de suas metas e de seus objetivos. Isso porque se entrelaça com histórias de rupturas, de situações de violência e institucionalização, levando-nos à necessidade de dialogar com outros profissionais, como assistentes sociais, juízes, psicólogos, educadores dos abrigos, entre outros. Muitas vezes, somos chamados, inclusive, a participar de audiências para decisão judicial sobre o destino da criança, quando temos de nos posicionar com cautela e com clareza quanto aos limites e à importância de nosso papel como analistas.

Essas variações das modalidades técnicas e de escuta ainda são objetos de intenso debate. A esse respeito, afirma Figueiredo: “é diante de novos desafios e destas novas demandas que se manifestam as exigências teóricas para as quais os psicanalistas pós-escolares – inter ou trans-escolares – tiveram de prestar atenção, sentindo-se então obrigados a se libertarem das amarras escolásticas e dogmáticas” (2009: 20). Penso que, de fato, quando a psicanálise permanece fechada diante da realidade social de nosso país, em especial nos casos de adoção, tema desta tese, deixa de dialogar com instâncias que certamente contribuem para o entendimento dos casos dessas crianças, obstruindo a formação de uma rede de cuidados necessária, até mesmo para o andamento do processo judicial de adoção.

Eventuais modificações na nossa posição como analistas, no que se refere à ética e a nossas funções de cuidado, são necessárias à prática da psicanálise na atualidade. A esse respeito, destaca Benilton Bezerra Jr. que o

que há de mais instigante em torno da elasticidade é que a “(...) cada impasse surgido no campo da clínica surge a possibilidade de responder a desafios impostos à psicanálise em suas três dimensões essenciais – enquanto uma teoria do psiquismo, um método de pesquisa acerca das vicissitudes da vida subjetiva, e uma modalidade de intervenção sobre o sofrimento” (2013: 327).

Apresentamos a seguir reflexões psicanalíticas a respeito desta clínica contemporânea, que expandem e enriquecem o nosso pensar.

Iniciamos com a narrativa do caso Léo (nome fictício), que foi atendido por alguns meses no programa de extensão em adoção, um “Laboratório de Pesquisas e Práticas”65 na área de família e adoção da universidade em que

trabalho; depois, passei a recebê-lo em meu consultório, durante mais de dois anos, uma vez por semana. O segundo caso é do garoto Thomaz, também atendido na serviço-escola , no início por mim e, depois, por uma aluna, que supervisionei e acompanhei nas discussões com a equipe do abrigo e do Judiciário.