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3.1 Bruna e o amor impiedoso

3.1.3 O início da história de adoção

Em 2011, Alice e Fernando receberam o telefonema da psicóloga da Vara da Infância indicando a possibilidade de adoção de duas meninas. Foram, então, conhecê-las e se apaixonaram.

Porém, o início da aproximação no abrigo, que durou quatro meses, foi repleto de altos e baixos. Contaram que a primeira conversa com as crianças, quando revelaram a intenção de serem seus pais, foi uma decepção. A pequena Júlia lhes disse: chega de conversa, e pediu para ir ao banheiro; já Bruna falou que ia pensar e foi atrás da irmã. Alice e Fernando, pais ansiosos, ficaram perdidos, com o coração apertado e vontade de chorar: que decepção!, lembrou Alice, pois pensaram que as duas os abraçariam sorrindo e diriam: “é claro que sim”, mas não aconteceu dessa forma. Ficaram sem entender e refletiram que a decisão teria de partir das meninas; mas a mãe não estava encontrando forças

para suportar mais um fracasso: Eu só queria ser mãe, que coisa difícil... senti raiva por elas terem me rejeitado.

Perto do Natal, foram então buscá-las no abrigo para que passassem um período com eles. Alice estava ansiosa para tê-las ao seu lado. Sentia saudades das meninas, mas, ao mesmo tempo, estava assustada com o resultado de toda aquela experiência:

No dia vinte e seis de dezembro, fomos para um chalé no interior. E resolvi começar a chamá-las de filhas e me referir à minha pessoa como mãe. Elas começaram a chamar-me de mãe e a meu marido de painho. Às vezes, saíam tio e tia. Ainda em dezembro, em um passeio, perguntei se a mãe que elas me chamavam era mãe mesmo ou só brincadeira. Elas começaram a cochichar e me disseram: “a gente vai dar uma resposta na descida do morro”. E eu: “que resposta?”. Bruna foi incisiva: “se a gente quer ser sua filha ou não. Mas posso perguntar uma coisa? Se a gente disser sim, vocês vão adotar a gente? O juiz já deixou?”. Eu disse que sim, que nós moraríamos juntos para sempre e seríamos uma família muito feliz. Bruna disse: “a gente vai morar com você até quando a gente ficar do seu tamanho? E se a gente tiver um filho, você vai ser avó dele?”. Era isso mesmo. Uma família para sempre... “Então nossa resposta é SIM!”. Emocionados, nos abraçamos. O que dizer de duas meninas maravilhosas nesse momento? Começou o novo ano cheio de felicidade.

Nas férias de janeiro, Alice e Fernando compraram camas, colchões, roupas, brinquedos e, ansiosos, fizeram as matrículas de Bruna e Júlia na escola. Transbordavam de felicidade: Ser mãe cansa, mas estava e estou cada vez mais apaixonada por minhas filhas.

Fim de janeiro, as meninas saíram do abrigo e foram para a casa do casal, para o estágio de convivência: Os meses foram passando e ocorriam estresses normais de uma rotina familiar: broncas, birras, respostas atravessadas, mãe brava e, por outro lado, muito beijo, historinhas, um ajudando o outro, lição de casa.

No abrigo, as meninas estudavam em escola pública, e a mudança para uma escola particular não foi fácil. Bruna tinha vergonha, sentia-se diferente das outras crianças, mas, aos poucos, foi progredindo na escola, pois é uma menina muito inteligente. Começou a ler um livro por semana, tinha muita dificuldade em História, mas sempre foi muito esforçada.

Bruna e Júlia diziam que queriam abrir um buraquinho no umbigo da mãe para entrar na barriga dela. Júlia ajeitava-se em posição fetal no seu colo e, aninhada, queria tocar nos seus seios, dizendo a todo momento que era um bebê e que não queria crescer.

Mas Bruna sempre foi mais “obcecada” pela barriga da mãe. Fazia birras e simulava rituais de nascimento ao entrar embaixo do casaco de Alice e se jogar no chão. Ela queria uma mãe só para ela, a barriga só para ela, que só a chamasse de filha, e não de Bruna. Desconhecendo a importância que a menina dava a isso, às vezes a mãe usava uma blusa mais curta, e, se sua barriga aparecia, Bruna entrava em crise, não querendo que ela a mostrasse a ninguém! Ou, se Alice a chamava pelo nome, ela não aceitava: Minha filha estava construindo seu papel de filha e eu não estava correspondendo. Sempre terminamos esses momentos estressantes com colo, abraços, palavras de amor e confiança.

Preocupados, os pais decidiram, então, procurar tratamento psicológico, pois entendiam que Bruna precisava se fortalecer, aceitando-se como era, e não ser tão ciumenta. Segundo eles, não podiam chegar perto um do outro que a filha se transfigurava, ficava com rosto contrariado, “bufava”, às vezes chorava, gerando sofrimento para todos.

Os pais relataram também muitas preocupações quanto à sexualidade de Bruna; ela parecia confusa, às vezes erotizada, usando muitas gírias: Tentamos mostrar para ela outras opções culturais, como Palavra Cantada, mas ela gosta de dançar funk, canta escondido porque não permitimos (Alice).

Certa vez, em um momento descontraído de conversas e brincadeiras, Bruna revelou aos pais a história da dura experiência de abuso sexual vivida no abrigo, lembrando que um adolescente havia tocado em seu corpo: Para um pai foi muito duro, os detalhes da descrição comprovaram a injustiça pela qual passou... Meu Deus, por que isso acontece com esses inocentes? Que dor ouvir sobre essa violência na voz da minha filha, que encerrou a dolorosa narrativa com um profundo suspiro e a frase: “sabe, mãe, eu já tive uma vida cruel” (Fernando).

Conversamos sobre a importância de Bruna mostrar confiança neles ao revelar algo tão delicado e difícil. Os pais contaram que abraçaram a filha e disseram que ela não teve culpa, que a amavam e que a protegeriam sempre.

Nesse atendimento dos pais, resgatamos o que eles sabiam da história familiar das meninas, a rotina delas no abrigo, uma narrativa que ajudou o casal a refletir sobre as situações vividas. Ressalto que sugeri ao casal procurar a Vara da Infância e ler o processo judicial das crianças, o que é permitido após a

autorização do juiz. A mãe, que já tinha este interesse, parece que precisou de um respaldo para tomar a iniciativa. O pai disse que não estava preparado.

Com sofrimento, Alice foi adiante na empreitada e, em 2013, ficou por horas sentada em uma cadeira no Fórum lendo a história das meninas. Foi nessa leitura que ela e o marido ficaram sabendo dos demais irmãos de suas filhas: na ocasião, tinham uma irmã de 7 anos de idade, que já havia sido adotada, e um irmão de 3 anos, adotado ainda bebê. Em outras palavras, trata-se de um grupo de irmãos adotados por três famílias diferentes.

Entre choros, indignação e raiva, Alice sofria ao recuperar as origens das filhas – ao mesmo tempo que conhecer a história era uma necessidade, saber a verdade era, também, uma ameaça.

Fernando parecia evitar falar dessa história anterior à adoção – uma das questões, entre muitas, que Alice parecia enfrentar com mais força que o marido. De fato, trata-se de um momento delicado para as mães e os pais adotivos.

Após alguns meses de psicoterapia, em um dos atendimentos com os pais, eles contaram que tinham vivido uma situação bem difícil naquela semana. Ao se prepararem para um passeio no parque, Bruna não aceitou quando eles se abraçaram e se beijaram. Fez cenas, com muitos gritos, ataques de objetos no chão, batidas de portas, recusando-se a sair para passear. O pai perdeu o controle e vociferou frases, Não quero mais você como filha... vou entregar você para o juiz..., mas, posteriormente, se arrependeu. A mãe chorou muito, lembrando-se das coisas terríveis que disseram e, após longas conversas e pedidos de perdão entre eles, ficaram mais tranquilos.

Acolhi os pais, que choraram e disseram se sentiam uns monstros, pois pensaram em devolvê-la. Disse a eles que Bruna expressava todo seu medo de

ser abandonada novamente, de se sentir excluída da relação dos dois, mas percebia que eram pais amorosos e, juntos, poderiam suportar essa situação. Eu estaria ali para ajudá-los.

A seguir, trazemos recortes de algumas sessões com Bruna.