• Nenhum resultado encontrado

3.1 Bruna e o amor impiedoso

3.1.4 Primeiras impressões

Em nosso primeiro encontro, Bruna me aguardava na sala de espera, sentada ao lado da mãe e da irmã. As duas loiras, de olhos claros, eram incrivelmente parecidas com os pais adotivos. Júlia tinha os cabelos bem mais claros que Bruna e olhos azuis, como o pai.

Percebi que Bruna estava caprichosamente vestida e penteada. Sorriu para mim e veio me dar um beijo; a irmã logo se adiantou e quis entrar na minha sala, dizendo estar curiosa: tem casinha de madeira... igual à minha psicóloga. Permiti que conhecesse o espaço com Bruna e, depois, pedi que aguardasse na sala de espera com a mãe.

Na sala com Bruna, disse que queria conhecê-la e que tínhamos aquele tempo para brincar ou fazer o que ela quisesse. Sentada diante da mesinha, ela pegou uma folha de sulfite e um lápis e disse que estava na escola, aprendendo muito, que gostava da professora e escreveu algumas contas de matemática (lembrando: Alice era professora de Matemática).

Depois, levantou-se e se interessou por outros brinquedos da sala. Pegou os fantoches que representavam membros de uma família, escolheu a boneca- menina e começou um jogo comigo. Como uma expressão de início de estabelecimento de vínculo, a boneca disse para mim: oi, tudo bem?. Perguntei então em que poderia ajudá-la, e a boneca-Bruna respondeu que não queria

mais brigar quando o pai abraçava a mãe: eu não gosto que ele abrace ela... não sei por que, não gosto. Digo que acho que sei por que ela não gosta: você não quer dividir o carinho dela...

Bruna permaneceu em silêncio, olhando para a folha de papel, e vi que algumas lágrimas começaram a rolar de seu rostinho. Assinalei que observava que estava chorando, que parecia triste. Com a voz baixa, disse: sinto ciúmes da minha mãe com ele e com qualquer pessoa. Disse-lhe que entendia e imaginava como isso era difícil, que tinha medo de perder a mãe, que neste momento sentia um amor especial por ela. Bruna olhou para mim e sorriu, dizendo que sempre sonhou em ser adotada, que ficava pensando nisto na casa grande, referindo-se ao abrigo no qual vivia.

Interessou-se então pela casa de madeira e pelos bonecos da família; tentou organizar a casa, dizendo que estava uma bagunça. Colocou os móveis no lugar, os pais no quarto, duas crianças brincando na sala, o avô tomando banho e a avó assistindo à TV. Falou várias vezes: nossa, que bagunça esta casa! Iniciei uma conversa com ela perguntando: Que bagunça é essa, Bruna? Ela respondeu que estava colocando tudo em ordem e disse: Que linda esta casinha, quero uma destas... vou pedir para a minha mãe comprar. Conversei sobre o prazer que ela mostrava em brincar com uma casa e poder organizá-la. Sorriu, tirou todos os móveis de madeira e ajeitou tudo novamente, de outra forma.

Penso que, ao tentar colocar ordem na casa, Bruna mostrou querer colocar ordem em si mesma, em seus sentimentos e pensamentos. No final da sessão, pediu para levar uma coisa minha, mas, sorrindo e olhando em direção a um pequeno caderno, disse que eu teria de adivinhar do que se tratava;

respondi que talvez fosse o caderninho e apontei seu desejo de levar algo da experiência que teve ali comigo, que o caderno representava uma forma de registrar algo em sua lembrança e que se separar parecia ser algo difícil para ela. Disse que voltaríamos a nos encontrar na próxima semana e que eu e o caderninho estaríamos ali, esperando. Bruna sorriu, me ajudou a arrumar a sala e se despediu de mim com um beijo.

O primeiro encontro com Bruna me despertou várias questões. Ela parecia sentir-se claramente a terceira excluída da relação tão afetuosa entre os pais, exigindo deles atenção e amor. Tentava afastá-los e, assim, evitar o toque, o contato físico entre eles.

Outras hipóteses me ocorreram. Pensei o quão forte era a sede de amor dessa menina – ela não podia sequer assistir a uma troca de carinhos entre os pais que já se sentia roubada de atenção e amor. Bruna parecia precisar de tudo só para si: amor, brinquedos, carinho, os objetos da minha sala.

Na experiência com a família adotiva, Bruna parecia então regredir para ressignificar e reparar as falhas ambientais. Ao receber amor da mãe, percebia a longa ausência anterior de amor e estabelecia, então, a relação de tudo desejar; sem piedade, exigia seu amor. Sua avidez parecia querer compensar todas as faltas anteriores e, talvez, também as atuais e as futuras.

Quanto à intolerância de Bruna quando diante da cena amorosa entre os pais, ligada às fantasias sexuais, perguntei-me: será que ela tinha medo de que o carinho entre eles pudesse fazê-la se lembrar de cenas da mãe biológica com homens, que havia presenciado tão precocemente? Cenas violentas para o psiquismo infantil processar, como vimos anteriormente.

O fato de interpretar a relação sexual adulta como um ato de violência levou-a a sentir uma “bagunça” entre amor e agressividade, bagunça esta que ela desejava arrumar. A teoria do coito sádico é uma hipótese freudiana para a interpretação infantil do contato físico entre os adultos. A imaginação erótica pouco desenvolvida leva a interpretar qualquer aproximação física como comportando uma ameaça de ferir o outro. Além da vida imaginária, os fatos reais na vida de Bruna levaram-na a assistir a cenas de relação sexual e de violência stricto sensu quando ainda estava sob a guarda de sua mãe. De qualquer modo, conforme Ferenczi (2011c), originalmente em 1933, a linguagem da paixão que predomina nas trocas amorosas entre os adultos se choca com a linguagem da ternura, mais compreensível para as crianças. Na verdade, Bruna intuía a necessidade de discriminar essas duas linguagens amorosas, eliminando a confusão entre elas. Por sua vez, simples abraços e beijos entre os pais deviam ser mesmo insuportáveis para ela, por não participar da experiência de contato, de carinho, da experiência de pele e relações arcaicas, ou seja, despertavam nela uma intensa inveja.

Esta primeira sessão me fez lembrar temas já abordados no item dedicado às teorias de Ferenczi (2011c), primariamente em 1933: sua noção da clivagem narcísica como defesa diante do traumático e suas propostas clínicas baseadas na elasticidade da técnica e na sinceridade analítica, na confiança e na regressão ao infantil. Como vimos, o autor também postula que, na adaptação da família à criança, o que se revela traumático se produz quando da passagem da primeira infância à civilização.

Também nos remeteu a Winnicott (1975), originalmente em 1965, com a sua noção de trauma, de agonias impensáveis, da cisão patológica entre

verdadeiro e falso self, e suas propostas clínicas baseadas na confiabilidade analítica e na regressão à dependência.

Winnicott (1994), inicialmente em 1961, ressalta que, ao nascer, o bebê se encontra diante da inevitável dependência absoluta, dirigindo àquela que dele cuida, em geral a mãe, o que o autor denomina “amor impiedoso”. Nessa relação, são dadas as condições para nascerem mundos, que são criados, inventados, descobertos. A onipotência precisa, então, ser assegurada para evitar que esses mundos não entrem em colapso. Assim, para o autor, é o ambiente que regula a intensidade das experiências, atendendo às necessidades da criança e, dessa forma, garantindo sua saúde psíquica.

Ambos os autores se interessaram pelos primórdios, pelo período pré- genital e pré-edípico, com uma disponibilidade clínica para encarar desafios bastante perturbadores, preocupando-se fortemente com as falhas ambientais, trabalhando a regressão terapêutica e buscando inovações técnicas no contexto analítico.

Retomando o caso, em um dos encontros seguintes com a menina Bruna, em que ela chegou com a mãe e a irmã, percebi que estava ansiosa para entrar na sala. Logo pegou a casinha de madeira e a família, arrumou a casa, colocou os pais na cama, as duas crianças no quarto e o bebê no berço. Perguntei sobre esses pais, o que estavam fazendo, ao que me respondeu sorrindo e dizendo não saber. Rapidamente, pegou o bebê e o levou para o quarto das meninas, pegou os bonecos pai e mãe e disse que, agora, eles passeariam com as filhas e o bebê. Voltou a colocar os pais na cama e disse que estavam namorando. Disse-lhe: Olha, essas crianças permitem que seus pais namorem!

Percebi também que Bruna estava separando os adultos em um quarto e as crianças no outro; mais um sinal de que estava arrumando a bagunça que vivera no passado. Depois de organizar onde cada um deveria dormir, indicou que os pais levariam as crianças para passear, ou seja, fariam o que os pais deveriam fazer com as crianças...

Em seguida, se levantou e pegou a bola, me convidando para jogar. Até o final deste segundo encontro, fez uma brincadeira de jogar a bola e pegá-la de volta. Então, perguntou sobre minha saúde, pois percebeu que eu estava gripada na sessão anterior: Você melhorou?... Vou pegar papel, lápis, caneta. Jogou a bola para mim e disse: dois a um. Perguntei: Quem está com dois?; Bruna respondeu: Eu. Agora está três a dois...; Como assim?, retruquei. Bruna sorriu e continuou o jogo, ignorando as regras. Aqui, ficou evidente que, mais do que seguir as regras do jogo, o importante era conseguir mais pontos do que eu, mostrando sua necessidade de sempre ganhar e o horror de perder.