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4.1 Léo e sua varinha mágica: um episódio de quase devolução

4.1.2 A clínica e sua interface com a esfera jurídica

A psicóloga da Vara da Infância que fez o encaminhamento expressou sua preocupação com a intenção do casal de devolver Léo.

Diante da urgência, agendamos a triagem com uma dupla de alunos no serviço-escola da universidade; mas, como estávamos no final do semestre, perto do período de férias, apenas um atendimento foi realizado por esses estagiários, contando com minha supervisão. Depois, dei continuidade ao trabalho, recebendo a família em dois encontros, com duração de uma hora e meia cada.

No primeiro atendimento, compareceram Tânia e Léo; o pai não pôde estar presente devido ao horário de trabalho. Os estagiários pediram que a criança aguardasse na sala de espera e conversaram primeiro com a mãe. Ela trouxe o sofrimento que estavam passando devido às dificuldades na pós- adoção, inicialmente com Luca e, agora, com Léo; com a menina, tiveram alguns problemas no início, mas, segundo ela, estes já haviam sido superados. Contou que, no estágio de convivência (período de transição do abrigo à família adotiva), levaram os três para casa nos finais de semana e em viagens, e não tiveram

problemas. Foi após receberem autorização do Juiz para a guarda provisória67

que as dificuldades começaram. Luca, sempre que recebia um não, dizia que eles não eram seus pais; frequentemente, provocava o casal com o álbum que trouxera do abrigo, com fotos e cartas da mãe biológica. Chegou, inclusive, a colocar uma foto dela em um porta-retratos, que ficava ao lado de sua cama.

Na história anterior à adoção, Léo chegou ao abrigo com 6 anos, Luca com 3 e Beatriz com 1 ano, nele permanecendo por quatro anos. A mãe biológica era muito jovem, usava drogas, não cuidava dos filhos, mas prometia a eles mudanças e coisas maravilhosas, inclusive em cartas (que estavam no álbum). A adoção aconteceu poucos meses depois de a mãe ser proibida de visitá-los.

Diante do relato feito por Tânia, na triagem, nossa hipótese foi de que Léo estava assustado com a devolução do irmão e possivelmente frustrado com os pais. Luca certamente idealizava a mãe, mantendo dentro de si uma mãe boa que, um dia, voltaria para buscá-lo. É provável, então, que tenha feito de tudo para ser devolvido – inclusive, quando estava sendo levado de volta ao abrigo, disse que, agora, poderia rever sua mãe, que não demoraria para vir encontrá- lo. Mas logo veio a decepção, e, na ocasião do atendimento à família, Luca continuava no abrigo, triste e arrependido, querendo voltar para a família adotiva. A mãe ideal, com a qual tanto sonhara, na realidade nunca procurou os filhos ou tentou contestar a destituição do poder familiar.

Depois da primeira conversa com Tânia, a dupla de estagiários pediu então que ela aguardasse enquanto conheciam Léo. Na sala lúdica, Léo contou que não se sentia parte da família, sentia-se um estranho, que seu pai brigava

67 Trata-se de procedimento usual antes da adoção definitiva, quando então são trocados os

mais com ele, e não com a Bia; contou que, certa vez, enquanto discutia com a irmã, o pai lhe advertiu: “não mexa com a minha filha” – nesse momento, se deu conta de que ele não era filho do casal. Léo tinha consciência de que, logo que o irmão fora embora, passou a provocar os pais, mas não sabia dizer os motivos: não consigo fazer o que eles me pedem, não sei por que, mas não quero voltar para o abrigo, eu gosto dos meus pais. Nesse momento da sessão, sem ser solicitado, desenhou sua família: ele ao lado do pai, com roupas e cabelos idênticos aos dele, e a mãe ao lado da irmã; não desenhou o irmão Luca. Todos estavam com as mãos para trás do corpo e sem os pés.

No atendimento seguinte, compareceu somente a mãe; optei por estar presente, com os estagiários, pela delicadeza do caso, como parte da formação dos alunos e também para me apresentar à família. Tânia me pareceu deprimida, cansada, relatando diversos problemas que tiveram durante a semana e culpando Léo por todas as dificuldades enfrentadas pela família; parecia buscar, assim, uma justificativa para devolvê-lo ao Judiciário.

Procuramos, então, trabalhar as angústias da mãe, apontando o provável sofrimento, os medos e as defesas expressos pelas crianças. E nos colocamos à disposição para ajudar a todos.

Para compreender o que ocorria, procurei escutar primeiro o casal, porém, no primeiro atendimento, compareceu apenas o pai, que, abatido e entristecido, relatou todo seu sofrimento com a adoção, reclamando do Judiciário, do abrigo, dizendo se sentir traído e enganado. Disse que os três, a esposa, ele e Léo, já estavam em atendimento psicológico individual, e que, em sua primeira sessão com sua psicóloga, ela o alertou de que o menino poderia ter uma psicopatia,

indicando-lhe o livro Mentes perigosas – o psicopata mora ao lado, de Ana Beatriz Barbosa Silva. Ficou, obviamente, ainda mais assustado.

Antes de devolver Luca, havia procurado ajuda de outro profissional, psicólogo, que também, sem conhecer a criança, indicou-lhe o filme Precisamos falar sobre o Kevin68. Impactada com esses relatos, não duvidei de Roberto, pois

já atendi pais adotivos que passaram por situações semelhantes. Infelizmente, posturas preconceituosas e diagnósticos precipitados são comuns no universo da adoção, promovendo mais violência e abandonos para essas crianças.

Devido à complexidade e iminência de uma nova devolução, nos dois atendimentos que se seguiram, com o objetivo de compreender e intervir na crise, atendi toda a família.