• Nenhum resultado encontrado

2. Marcos teóricos e metodológicos

2.4. A Análise Histórica Comparada (AHC) e o estudo de poucos casos

Estudos temporais com abordagem macro têm sido desenvolvidos pela irmã gêmea (mas não univitelina) do institucionalismo histórico: a análise (ou pesquisa) histórica comparativa (AHC). De fato, não existem diferenças marcantes entre as duas vertentes de pesquisa. Uma diferença pouco substancial talvez resida no fato de que o IH não esteja explicitamente engajado na comparação sistemática. Pode-se acrescentar, ainda, que enquanto o IH se encontra vinculado à ciência política, a AHC tende a ser multidisciplinar.

A AHC não constitui uma teoria ou um método específico, mas uma abordagem que tem sido utilizada por pesquisadores com variadas origens teóricas e metodológicas (MAHONEY & RUESCHEMEYER, 2003, p. 10). Seus postulados têm sido muito utilizados, de forma profícua, no estudo das políticas públicas. Segundo Amenta (2003, p. 114-120), a “elevada produtividade” da AHC decorre da conjunção de

29 Como bem argumentou Giddens (1999, p. 306-07), a forma descontínua da escrita histórica de Foucault decorre de seu reexame da natureza do sujeito, de sua descentralização. Essa forma “vale pelo impacto”, mas traz o problema de deixar os indivíduos impotentes diante de seus destinos. Assim, a “apropriação reflexiva da história”, tão necessária ao próprio historiador, não está presente nos agentes históricos. Curioso notar que essa avaliação contrasta nitidamente com a ativa militância política de Foucault.

três fatores: a existência de um relativo acordo sobre o que deve ser explicado; a disponibilidade de muitas informações sobre os temas abordados; e a sua abertura metodológica.

A AHC enfatiza o desdobramento de processos ao longo do tempo, como meio de obter explicações para “grandes questões”. Desse modo, a análise causal torna- se preocupação central da AHC, que se propõe a enfrentar o desafio epistemológico de conciliar a particularidade histórica com a busca de generalizações teóricas. Mahoney & Rueschemeyer (2003) são bastante prudentes quanto à pretensão de encontrar relações causais com alcance universalista. Para os autores, os “programas universalizantes”, do estruturalismo funcional à teoria dos jogos, “tenderam a produzir conceitos a-históricos e proposições que com frequência são muito gerais para serem aplicadas com utilidade na explicação” (p. 9) Esse aspecto, no entanto, constitui uma questão em aberto. Amenta (2003, p. 94), por exemplo, defendeu que a AHC, em seu trabalho de explicar importantes diferenças históricas, é capaz de produzir linhas teóricas ou argumentos causais aplicáveis a casos e períodos históricos distintos. No entanto, predomina entre os comparativistas o entendimento de que as explicações encontradas para alguns casos podem não ser generalizáveis para o maior número de situações (MAHONEY, 2000, p. 86).

A AHC envolve uma “abordagem sofisticada” da literatura a respeito de cada caso. Todavia, não existe a necessidade de recorrer a fontes históricas primárias, embora essa prática tenha sido adotada por vários autores. Mais fundamental é a capacidade de formular questionamentos, montar quebra-cabeças a respeito dos casos escolhidos e identificar as relações causais dos processos históricos, a partir da comparação sistemática de casos (AMENTA, 2003).

Com efeito, essa comparação sistemática, seja por similaridade ou contraste, constitui um dos fundamentos básicos da AHC. Nessa tarefa, uma das possibilidades de abordagem mais utilizadas é o estudo de reduzido número de casos, com o objetivo de aprofundar a análise. Conforme Mahoney & Rueschemeyer (2003, p. 13):

(...) uma vez que os investigadores de história comparada normalmente conhecem bem cada um de seus casos, eles podem avaliar variáveis à luz de um contexto mais amplo de cada caso particular, atingindo, dessa forma, um nível mais alto de validade conceitual do que é em geral possível quando um grande número de casos é selecionado. Essa abordagem próxima de casos particulares também permite aos pesquisadores explorar como as variáveis podem ter efeitos causais distintos entre contextos heterogêneos (...). Além disso, a questão sobre se e até que ponto diferentes casos são independentes uns dos outros pode ser sujeita ao exame acurado permitido pelo intensivo estudo de casos.

O crescimento de estudos de história comparada reavivou o debate sobre o alcance e validade das pesquisas quantitativas e qualitativas, particularmente sobre os méritos das pesquisas com poucos casos (small-N case studies). Para a linha neopositivista, essas pesquisas, baseadas na seleção pela variável dependente, padeceriam de fragilidade em testar suas hipóteses e seriam pobres (em uma visão mais radical, até inúteis) na formulação de generalizações. As críticas comumente formuladas aos métodos de história comparada com o uso de poucos casos – ou apenas de um – podem ser agrupadas em quatro principais linhas argumentativas.

A primeira alega que as proposições explicativas deveriam ter um raio de aplicação maior do que o fenômeno explicado. A procura de evidências em um pequeno número de casos, ou em apenas um, com um grande número de variáveis (fatores causais), levaria à falta de significância estatística, com o surgimento de um equivalente do problema estatístico de “degrees of freedom”. Dessa forma, a validade de estabelecer inferências causais dos estudos comparativos de poucos casos seria bastante limitada.

Contudo, essa crítica transfere para o método qualitativo um problema que pode afligir os estudos de natureza estatística, dado o seu escopo de oferecer explicações com base em grandes números. É preciso considerar que as evidências têm importâncias distintas e o que vale, no estudo de poucos casos, não é a quantidade de evidências, mas sua contribuição para a tarefa explicativa diante de hipóteses alternativas (BENNET, 2010, p. 209). Ademais, a limitação efetivamente ocasionada pelos estudos de poucos casos na produção de generalizações pode ser contrabalançada pelo aumento da validade conceitual decorrente do aprofundamento dos casos particulares (MAHONEY, 2000, p. 86).

Rueschemeyer (2003, p. 313 ss.) ressaltou que não se deve sobrestimar a distinção entre o trabalho histórico analítico voltado para a explicação de um fenômeno específico e as pesquisas em ciências sociais dirigidas para a construção de proposições aplicáveis em vários contextos, pois ambos se dedicam essencialmente à tarefa de desenvolver e validar hipóteses explicativas causais. O ceticismo em relação ao primeiro reside na equivocada identificação entre um único caso e uma única observação. Na verdade, o estudo de um único caso ou de poucos casos tende a permitir um confronto mais detido entre as proposições explicativas e as evidências empíricas. Assim, ele se apresenta mais equipado para lidar com a complexidade causal. A obra clássica de E. P. Thompson sobre as origens da classe trabalhadora foi adequadamente apresentada por Rueschemeyer (2003) como um exemplo feliz de estudo de caso, que

permitiu um “close attention” para a complexidade de um desenvolvimento histórico e envolveu um habilidoso diálogo entre conceito e evidência. Portanto, fez mais do que apenas gerar e comprovar hipóteses iniciais.

A segunda crítica consiste no enviesamento das amostras quando da seleção dos casos. Dado que a escolha se faz pela variável dependente, o poder da avaliação causal, em perspectiva comparada, ficaria comprometido. Para Geddes (1990), os estudos de casos com base na variável dependente são válidos para o detalhamento do processo de desenvolvimento de determinado fenômeno e podem, inclusive, identificar variáveis causais plausíveis, além de permitir a descoberta de anomalias que outras teorias não conseguem explicar. Contudo, não são adequados na política comparada, pois são incapazes de testar as teorias que propõem, uma vez que “a amostra de casos a examinar precisa ser selecionada de forma a assegurar que os critérios de escolha não tenham correlação com o arranjo de casos na dependente variável” (p. 134-35).

Essa crítica não leva em conta a diferença entre causa (ou condição) necessária e suficiente (DION, 2011). A primeira consiste em uma causa cuja presença é requerida para a ocorrência de um fenômeno. No caso de sua ausência, o fenômeno não se dá de forma alguma. Já a suficiente é aquela cuja presença produz inevitavelmente o fenômeno. A relevância do estudo de poucos casos torna-se evidente quando a seleção repousa na busca de causas necessárias, sendo, de fato, de menor utilidade no caso de causa suficiente. Além disso, conforme argumentou Mahoney (2003), deve-se estar atento para que os casos selecionados sejam representativos no conjunto daqueles disponíveis.

A terceira crítica repousa exatamente na desqualificação do emprego de causas necessárias e causas suficientes de um fenômeno (MAHONEY, 2003). No caso das causas necessárias, haveria um contingente potencialmente infinito delas para determinado fenômeno, na maior parte de nenhuma importância. Numerosas causas suficientes, por sua vez, seriam óbvias ou tautológicas. A esse respeito, Mahoney (2003) lembrou serem desprezíveis na literatura os exemplos de pesquisas comparadas de poucos casos em que são usadas causas triviais necessárias ou causas tautológicas suficientes. De todo modo, o critério empírico denunciaria equívocos dessa natureza.

A quarta crítica, por sua vez, diz respeito ao uso de métodos causais determinísticos nos estudos comparativos de poucos casos. Mais especificamente, trata- se do emprego dos métodos da concordância e da diferença de John Stuart Mill. No primeiro caso, comparam-se casos positivos: a presença de uma condição relevante

comum no fenômeno sob investigação sinaliza seu fator causal. No da diferença, tomam-se os casos negativos, em que ocorre e não ocorre o fenômeno em foco. A eventual exceção em uma condição comum indica o fator causal.

A combinação desses métodos foi utilizada por Theda Skocpol, em States

and Social Revolution. Além de constituir um marco na análise das revoluções, a obra tornou-se uma referência para os estudos macroestruturais comparativos. Contudo, desde sua publicação, a obra tem sido objeto de numerosas críticas. Skocpol analisou profundamente as grandes revoluções francesa, russa e chinesa, comparando suas semelhanças (sem ignorar suas especificidades) e contrastando-as aos fenômenos históricos da Inglaterra no século XVII, da Prússia no início do século XIX, da Alemanha, em 1848, do Japão, na década de 1860 e da Rússia, em 1905. Nos três primeiros casos, a revolução social30 de fato ocorreu, pois houve uma mudança no campo político e no socioeconômico (casos positivos). Já nos três últimos, não ocorreu uma revolução social (casos negativos), mas fenômenos de outras naturezas. Em declarado desafio à interpretação marxista (ou interpretações marxistas) de revolução, Skocpol defendeu a adoção de “três principais princípios de análise” das revoluções sociais: em primeiro lugar, “uma perspectiva não voluntarista e estrutural sobre suas causas e processos”; em segundo lugar, a “referência sistemática à estrutura internacional e aos desenvolvimentos históricos mundiais”; em terceiro, uma concepção dos Estados “como organizações administrativas e coercitivas potencialmente dotadas de autonomia em relação a interesses e estruturas socioeconômicas (embora por eles condicionadas)” (SKOCPOL, 1979 p. 14). A autora, então, buscou as origens do processo revolucionário em um espectro amplo de transformações sociais capitaneadas pela crise do Estado e pelos conflitos de classe.

Para críticos como Mulhall & Moraes (1998), análises no estilo da feita por Skocpol transformam a história em espécies de laboratórios nos quais fatos semelhantes se repetem constantemente, permitindo ao pesquisador isolar relacionamentos causais mediante a comparação de casos. O grande problema dessa “abordagem nomotética”, argumentam os autores, consiste em desconsiderar a pluralidade de causas presentes na complexidade histórica. O desejo de construir generalizações que permitam a explicação sociológica levaria o analista a estabelecer uma causalidade limitada a

30 Segundo a definição de Skocpol (1979, p. 4 e p. 33), as revoluções sociais, acontecimentos raros, “são transformações rápidas e básicas da natureza e da estrutura de classes de uma sociedade; e são acompanhadas e em parte levadas a efeito por revoltas das classes inferiores”.

poucas variáveis. Especificamente sobre a referida obra de Skocpol, os autores questionaram sua pretensão de explicar importantes acontecimentos históricos com base em duas causas básicas: crise de governo e rebelião camponesa.31

Skocpol (1979, p. 38-39) reconheceu duas dificuldades de seu método. Uma delas é encontrar casos apropriados para “a lógica de uma comparação”. Mesmo quando esse achado se dá, argumenta a autora, os “controles perfeitos de todas as variáveis potencialmente relevantes nunca podem ser conseguidos”. Assim, sempre vão ocorrer aspectos contextuais relativos às causas dos fenômenos em foco que não serão examinados. Outro problema reside na apresentação dos casos em análise como contextualmente independentes uns dos outros. No entanto, embora essa ficção tenda a ser mantida pelo método comparativo, torna-se inevitável reconhecer as conexões entre os casos.

Conforme sustentou Mahoney (2003, p. 352), o uso de métodos dessa natureza pressupõe a habilidade do pesquisador em avaliar corretamente suas variáveis, inclusive de evitar a omissão de uma variável que poderia comprometer as relações causais estabelecidas em um modelo explicativo. Referindo-se à obra de Skocpol, Mahoney (p. 352) assinalou:

Se pesquisadores de história comparada como Skocpol avaliam uma variável incorretamente, ainda que em um caso, é provável que outros especialistas na matéria ou estudiosos de história comparativa identifiquem o erro, dado que boa parte do debate nesse tipo de pesquisa envolve argumentações sobre avaliação de variáveis particulares para casos específicos.

Goldstone (2003) encontra-se entre os autores que contestaram vários aspectos das análises de Skocpol, mediante o estudo de outros movimentos revolucionários não estudados pela autora (o caso da revolução iraniana é o mais destoante). Em sua defesa da consequente necessidade de modificação da teoria sobre a matéria, Goldstone ressaltou que as revoluções “diferem profundamente em suas causas concretas, seus modelos de desenvolvimento e seus resultados” (p. 84). Dada a complexidade desses eventos, o autor defendeu a análise comparativa como um “método essencial” para expandir a visão sobre a dinâmica revolucionária, em um processo de conhecimento cumulativo, a partir de novas evidências empíricas e

31 Outra crítica comum a Skocpol é a de conferir papel de pequeno relevo aos agentes históricos e suas ideias, sufocados sob o peso das estruturas e instituições. Himmelstein & Kimmel (1981, p. 1.154) ressaltaram o quanto isso é problemático, por exemplo, na explicação do papel dos bolcheviques na Revolução Russa. Mulhall & Moraes (1998, p. 27) também censuraram em Skocpol a desconsideração em debater as tradições da escolha racional e da sociologia histórica interpretativa, que conferem ampla atenção aos agentes sociais.

reformulações teóricas. Tilly (1984, p. 105-15), por sua vez, criticou Skocpol por não conferir a atenção devida às diferenças entre os casos positivos, apesar de seu detalhamento das revoluções analisadas conter, de forma geral, os elementos para tanto. Teria sido mais produtivo, ressalta Tilly, optar pela comparação das variações de determinados fenômenos entre diferentes casos ou por uma comparação de semelhanças e diferenças entre exemplos em decorrência dos efeitos de suas relações com um sistema.

De todo modo, se a comparação de poucos casos apresenta o evidente limite para a produção de generalizações, seu processo sistemático de análises permite maior riqueza nas observações e na busca dos mecanismos causais de cada fenômeno histórico em foco, o que lhe confere vantagem em contraposição aos estudos estatísticos (HALL, 2003, p. 397). Comparando os métodos qualitativos e os quantitativos, Brady, Collier e Seawright (2010, p. 22) argumentaram não ser fácil fazer inferências causais a partir de dados estatísticos quando se estudam processos complexos:

Atrás da aparente precisão dos achados estatísticos repousam muitos problemas potenciais a respeito de equivalência de casos, conceituação e medida, proposições sobre os dados e escolhas sobre a especificação dos modelos como quais variáveis incluir.

Assim, os autores argumentaram que “a força das observações sobre processos causais repousa não na amplitude da cobertura, mas na profundidade da análise” (p. 22). Contudo, de forma alguma eles defendem ser um método melhor do que o outro. O que se apresenta como necessário é que cada pesquisador reconheça os limites do método escolhido e esteja aberto para as contribuições ao conhecimento feitas a partir de estudos que utilizam metodologias diferentes. No fim, “todos os instrumentos de pesquisa, sejam qualitativos ou quantitativos, devem sujeitar-se à avaliação crítica” (p. 21).