• Nenhum resultado encontrado

2. Marcos teóricos e metodológicos

2.2. A conveniência da abertura teórica: o Estado como objeto de análise

Em seu esforço para explicar a realidade, as ciências sociais veem-se recorrentemente diante de questões fundamentais, entre as quais merece destaque a do relacionamento entre o particular e o geral. Na procura da melhor explicação possível, cabe ao pesquisador conferir atributos de universalidade ao comportamento humano ou os atores sociais devem ser compreendidos em sua individualidade? Quem são, afinal, os agentes sociais: os indivíduos ou os grupos? Como se posicionar no debate a respeito da ação humana e do condicionamento estrutural. Podem os agentes resistir ao peso das estruturas sociais? Representam essas estruturas obstáculos à liberdade de ação? Como explicar a mudança social? Em que medida a mudança social é produto do acaso, de necessidades estruturais ou de escolhas individuais e coletivas?

Essas questões não podem deixar de ser postas neste estudo, que tem como foco duas instituições principais, bem distintas, embora conexas: o Poder Legislativo, particularmente em suas relações com o Poder Executivo, e as políticas públicas14 educacionais. Trata-se, portanto, de duas facetas do Estado, a serem analisadas de forma conjugada.

Conforme lembrou Migdal (2009, p. 162-63), o conceito weberiano de Estado como dominação legal, jurisdição compulsória sobre um território e monopólio do uso legítimo da força parece distanciado da realidade atual de pelo menos parte das unidades estatais, diante da força das corporações privadas, de milícias e de poderosos

14 Conforme argumentou Méndez (2010, p. 120), abundam definições de política pública e não há de se esperar algum consenso a respeito dessa “batalha terminológica”. Por sua abrangência, destacamos a definição de Aguilar: “Um conjunto de ações intencionais e causais, orientadas para a elaboração de um objetivo de interesse/benefício público, cujas linhas de ação, agentes, instrumento, procedimentos e recursos se reproduzem no tempo de maneira constante e coerente” (2010, p. 29). Por certo, se, necessariamente, há intencionalidade nas ações, seus efeitos são, muito frequentemente, não intencionais. A propósito, como registrou Migdal (2009, p. 179), os efeitos não intencionais das ações humanas bem poderiam servir de mantra para as pesquisas mais recentes da ciência política. Stein et alii (2007, p. 15) destacaram que as políticas públicas são “o resultado de transações complexas entre atores políticos ao longo do tempo”.

atores locais. Ao mesmo tempo, também não se isenta de ambiguidades a face mais suave e emotiva do Estado, expressa nas ideias de solidariedade de Durkheim e da vontade geral de Rousseau. De fato, autoridade e lealdade estão associadas de diversas formas na plêiade de Estados hoje existentes e a comparação de entidades tão heterogêneas requer inúmeros cuidados.

Com efeito, o surgimento do processo a que se tem chamado de globalização vem afetando profundamente a configuração dos Estados, com o enfraquecimento da soberania e, por conseguinte, de sua função de elaborar e decidir políticas, bem como de proteger os direitos básicos dos cidadãos. Ademais, esse processo também tem representado o declínio da territorialidade e da nacionalidade como fundamentos da identidade política, com a emergência de fontes alternativas de identidade. Diante dessas mudanças, novos atores tornam-se relevantes, como os organismos transnacionais e o amplo espectro de agentes abrangido no conceito de movimentos sociais.15 Na expressão de Hobsbawn (2007, p. 56), que faz eco a julgamentos semelhantes, a globalização deu origem à “era dos Estados incapazes e, em muitos casos, à era dos Estados falidos ou fracassados”. No entanto, o mesmo Hobsbawn avalia que no cenário da política internacional, nos quais os organismos transnacionais mais visíveis apenas agem com o patrocínio das grandes potências, “os únicos atores efetivos são os Estados” (p. 58).

Apesar dessas mudanças, permanece a relevância do Estado como estrutura de poder, sistema de gestão e fonte de identidade. Desse modo, nossa perspectiva converge com a linha adotada por autores neoinstitucionalistas (cf. a próxima seção) de que o Estado é dotado de um campo autônomo de atuação, ainda que permeável, ora mais, ora menos, a um conjunto de pressões e demandas dos variados atores presentes no espaço público, no qual não apenas se manifestam oportunidades de diálogo e

15 Melucci (2001, p. 35) definiu movimento social como “a mobilização de um ator coletivo, definido por uma solidariedade específica, que luta contra um adversário para a apropriação e o controle de recursos valorizados por ambos”. Para Touraine (1994), um movimento social envolve alguns elementos essenciais: um agente coletivo, um conjunto de valores culturais e o desafio a uma relação de poder. Portanto, um movimento social não é simplesmente uma corrente de opinião, a quem faltaria organicidade. Melucci (1989, p. 10 e 61) admitiu que a forma de constituição dos atores coletivos da era moderna está desaparecendo, o que cria dificuldades para o analista, muitas vezes levado a usar categorias obsoletas para estudar fenômenos que a elas não se revelem adequados. Para o autor, não há dissolução dos movimentos sociais e dos conflitos, mas uma “mudança profunda da sua forma”, assim como sua autonomia cada vez maior em relação aos sistemas políticos. Assim, o fenômeno movimento social toma a forma de “uma rede de pequenos grupos imersos na vida cotidiana que requerem um envolvimento pessoal na experimentação e na prática da inovação cultural”. Entre suas características novas, encontram-se a associação múltipla, a militância parcial e de curta duração, o envolvimento emocional e a solidariedade afetiva.

consenso, mas, igualmente, disputas de poder. Com efeito, nunca antes os Estados tiveram tanta capacidade de vigilância e de controle da população. Não obstante os limites à sua autonomia, os Estados ainda são os responsáveis pelo estabelecimento dos marcos jurídicos que criam condições políticas e institucionais favoráveis à economia globalizada. Assim, os mais diversos atores políticos têm necessidade de recorrer ao Estado para atingir seus objetivos e interesses específicos (VILAS, 2005).

Dessa forma, importa muito a busca de explicações para a natureza das políticas públicas adotadas no âmbito de casa unidade estatal, bem como para o papel dos distintos atores, dentro e fora do Estado, na elaboração, condução e rearranjos das respectivas decisões. Afinal, o conteúdo das políticas públicas não pode ser entendido apenas a partir das preferências e escolhas do partido governante, mas também com base na competição política em curso e nas formas de compromisso que são estabelecidas (LASCOUMES, 2009, p. 477). Por sua vez, as deliberações parlamentares não devem ser analisadas apenas levando em conta os constrangimentos institucionais, mas com “referência a um mecanismo mais vasto de fabricação da decisão” (FERRIÉ et

alii, 2008, p. 796). Conforme sentenciou Rémond (1995, p. 20), “ater-se ao estudo do

Estado como se ele encontrasse em si mesmo o seu princípio e a sua razão de ser é portanto deter-se na aparência das coisas”.

No que se refere às políticas educacionais, a literatura tem identificado a existência de linhas gerais comuns nos processos de reforma adotados nos diferentes países. Barroso (2005), por exemplo, apontou, com base em pesquisa coletiva16, “um conjunto de convergências significativas na emergência de novos modos de regulação17 das políticas educativas” (p. 736). Até a década de 1980, predominou um modelo “burocrático-profissional”, com forte regulação estatal. Desde então, ele vem sendo erodido por um modelo “pós-burocrático”, organizado em torno dos eixos “Estado avaliador” e o “quase mercado”. Barroso ressaltou que as políticas adotadas não são idênticas, mas tomaram esses modelos como referência. Ademais, nos países analisados, as políticas educacionais se desenvolveram em “contextos de partida

16 Trata-se do projeto Changes in regulation modes and social production of inequalities in educational

systems: a European comparison (2001-2004), subsidiado pela Comissão Europeia, que englobou os seguintes países europeus: Bélgica (francófona), França, Hungria, Portugal e Reino Unido (Inglaterra e País de Gales).

17 Na mesma obra, Barroso chama a atenção para o uso polissêmico do termo regulação. Em sua definição, ele destaca a função precípua da regulação de assegurar o equilíbrio de um sistema, bem como de, eventualmente, promover sua transformação. Outro aspecto destacado pelo autor consiste na complexidade dos processos de regulação, que envolvem uma diversidade de ações – e não apenas a produção de regras –, e uma multiplicidade de fontes, ainda que a principal emane do Estado.

diferentes” (p. 737). Podemos acrescentar que esses pontos de partida residem nas especificidades tanto da estrutura educacional quanto do modelo político-institucional de cada país. Por certo, as decisões e impasses acerca dos novos “modos de regulação” constituíram um processo marcado por acordos e confrontos entre diversos atores políticos, que se fizeram presentes, também, nas arenas parlamentares.

A significativa complexidade do Estado, particularmente em decorrência dos processos de mudanças das últimas décadas, recomenda, em seu estudo, uma abordagem teórica e metodológica mais refinada, mas ao mesmo tempo aberta à contribuição de tradições intelectuais e procedimentos de pesquisa distintos. Tem sido essa a tendência das pesquisas na ciência política (mas também em outras ciências sociais), segundo lembra Migdal (2009), que destaca alguns aspectos desse movimento. Em primeiro lugar, como já mencionado, a ideia isomórfica de Estado é abandonada em favor do reconhecimento de sua grande diversidade. Isso teve efeito, sobretudo, na interpretação das dificuldades enfrentadas por muitos Estados de cumprir as funções deles esperadas, com base em um modelo europeu:

A percepção dos pesquisadores das diferenças desses Estados – especialmente manifesta na instabilidade de seus regimes, na ausência de capacidades básicas e em seu relacionamento com suas populações (distanciando-se muito do ideal de Estado-nação) – apenas se aprofundou à medida que fatores surgidos no fim do século XX abalaram ainda mais sua combalida soberania. (...) [Os pesquisadores] têm buscado explicações e interpretações mais amplas para a capacidade, estrutura, comportamento etc. dos Estados. Ao mesmo tempo, eles têm alargado o entendimento em políticas comparadas sobre o que um Estado é, distanciando-se de antigas visões dualistas que comumente tratavam os Estados europeus em termos do que eles não são (ou não são ainda), a saber, Estados segundo um modelo europeu (2009, p. 176-77).

Ainda com base na argumentação de Migdal, as pesquisas sobre o Estado passaram a buscar alguma forma de ecletismo, em vez da vinculação a um único “paradigma”, seja racionalista, estruturalista ou culturalista18. Na comparação entre os

Estados, a visão estática cedeu a vez a uma abordagem com muita riqueza histórica e preocupação tanto com a dimensão de continuidade quanto com os momentos críticos de mudança. Desse modo, a análise causal linear foi substituída pela pesquisa interessada em processo, complexidade e multiplicidade de níveis. Por fim, tem havido

18Aquilo a que o autor denomina “paradigma estruturalista” engloba as linhas de pensamento de forte conotação histórica, como o institucionalismo histórico, a ser tratado na próxima seção. A noção de estrutura, nessa perspectiva, pode ser encontrada em Lloyd (1985) e, igualmente, será apresentada na seção seguinte.

um esforço para integrar os estudos de caso com tratamentos quantitativos nas comparações entre os Estados (essa questão será retomada adiante).

No que concerne às comparações de políticas sociais, cabe lembrar, seguindo Amenta (2003), os dois principais argumentos teóricos que as sustentam. De um lado, a linha político-organizacional vê na variedade da mobilização de grupos políticos o processo mais significativo na natureza dos rumos tomados pelas políticas sociais. Nesse sentido, a ação dos movimentos sociais assume papel de destaque. Do outro lado, para a abordagem institucional, a adoção de políticas sociais foi principalmente encorajada por instituições políticas centralizadas e pela ação do Estado, a partir da ampliação de sua capacidade financeira e da constituição de uma crescente burocracia. Aqui também se tem operado um esforço de síntese para combinar tanto o papel institucional e centrado no Estado quanto na ação de grupos políticos organizados fora da alçada estatal.

Essa busca de integração teórica será mais bem delineada nas seções seguintes.