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2. Marcos teóricos e metodológicos

2.7. O modelo de múltiplos fluxos

Segundo o modelo dos múltiplos fluxos (“multiple streams”), concebido por Kingdon (2003), a mudança da agenda governamental ocorre nas ocasiões em que fluxos de três naturezas convergem, abrindo as “policy windows”. O primeiro fluxo diz respeito à identificação de problemas. Indicadores, acontecimentos e crises desencadeiam a percepção social de que é preciso fazer algo e os formuladores de políticas públicas são tomados pela necessidade de agir, sob o risco de aprofundamento dos problemas ou de simples perda de credibilidade. O que chama a atenção para determinada situação, conferindo a ela o status de um problema a ser resolvido, não depende necessariamente de indicadores. Muitas vezes a questão já é bastante conhecida e nem por isso despertou uma reação suficiente para que seja vista como um problema que demande uma solução. Essa percepção pode ser reforçada por algum acontecimento especial (“focusing event”), o desencadeamento de uma crise ou mesmo por alguma manifestação simbólica. Na própria implementação de programas governamentais – por exemplo, mediante a divulgação de auditorias ou a reclamação sobre seus resultados – podem surgir elementos que contribuam para alçar determinada questão à categoria de um problema que precisa ser resolvido.

Todavia, problemas e soluções são gerados aos pares. Daí advém o segundo fluxo, constituído pela disponibilidade de alternativas e soluções. A partir da existência

de um caldo primitivo de políticas, que competem entre si, surgem as alternativas para enfrentar o problema apresentado. Há condições, entretanto, para que as políticas sejam selecionadas. É preciso que elas se mostrem viáveis tecnicamente, tenham custos toleráveis e se assentem sobre valores compartilhados, ou seja, é preciso de um mínimo de aceitação pública. As alternativas surgem do trabalho de especialistas (“policy

communities”) e passam por um processo de difusão de ideias e de convencimento

(“soften up”), que não envolve necessariamente a ação de grupos de pressão, pois se baseia mais na persuasão de que são adequadas para enfrentar o problema que se quer atacar. Kingdon concebe esse fluxo como um processo de seleção nos qual uma série de ideias e de sugestões vão sendo eliminadas até se constituir um pequeno conjunto de propostas que são mais seriamente consideradas. Nesse processo, que pode ser longo, “recombinações de elementos familiares são tão importantes quanto novas ideias: não há nada novo sob o sol ao mesmo tempo em que existe mudança substancial” (KINGDON, 2003, p. 143).

Por fim, a mudança de agenda é completada pela dinâmica política. O terceiro fluxo, portanto, envolve barganha e negociação entre os atores e seu desenvolvimento “compõe-se de fatores como o humor nacional, o resultado de eleições, mudanças de governo, alterações partidárias e ideológicas no Congresso e as atividades de pressão de grupos de interesse” (p. 162).

Os fluxos não ocorrem de forma sequencial. Há, muitas vezes, simultaneidade em sua manifestação. É da convergência dos três que surgem as oportunidades de mudança na agenda governamental. Conforme assinalou Kingdon, “nenhum fator domina ou é mais relevante do que o outro. Cada um tem vida e dinâmicas próprias. A combinação desses fluxos e seus desenvolvimentos específicos é que constitui a chave para se entender a mudança de agenda” (p. 179). Os atores responsáveis pelo desencadeamento e condução desse processo são variados e podem ser “visíveis” ou “invisíveis”. No primeiro caso, encontram-se aqueles que são mais facilmente percebidos pelo público e pela mídia. Já o segundo grupo é representado pelas comunidades que produzem as ideias e as fazem circular. Os atores também podem ser identificados dentro e fora do governo. Ademais, há aqueles que atuam de forma a produzir novas políticas públicas, enquanto outros podem trabalhar de forma a impedir ou restringir mudanças na agenda.

Nesse processo, os mais destacados “policy entrepreneurs” podem ter origens variadas e sua identificação deve ser buscada em cada caso. O modelo,

concebido na realidade norte-americana, destaca o papel do presidente, não apenas pelos recursos institucionais de que dispõe, como também pela atenção que naturalmente desperta no público em geral. Contudo, embora possa eventualmente definir a agenda, as escolhas presidenciais dependem dos especialistas e do processo de seleção de soluções, por um lado, e do jogo de forças do sistema político, do outro. Em relação à mídia, Kingdon a destaca mais como veículo importante na circulação de ideias e no destaque de aspectos já presentes na agenda governamental do que como ator relevante para a sua formulação – visão, naturalmente, sujeita a controvérsias.

Kingdon, com foco no contexto norte-americano, destacou a influência do Poder Legislativo na definição da agenda governamental e na produção de alternativas. Além de seus poderes institucionais e do interesse em dar satisfação aos respectivos eleitorados, o Legislativo é instado a agir devido à sua exposição aos grupos de pressão e à cobertura da mídia. Contudo, a falta de consenso social sobre temas controvertidos constituem um importante fator para a indecisão congressual. Outra característica importante ressaltada por Kingdon repousa no caráter mais generalista das informações à disposição dos parlamentares, em comparação com a burocracia dos órgãos do Poder Executivo e com o meio acadêmico.39 Já a estabilidade que o autor identifica na vida parlamentar norte-americana, em comparação com outros setores da alta burocracia, parece menos presente na realidade dos países em foco neste estudo.

Decerto, diante da complexidade da vida real esse modelo parece demasiadamente linear. Os problemas são percebidos de formas diferentes pelos atores envolvidos no processo e há, naturalmente, discordâncias a respeito das soluções possíveis. Frequentemente, é impossível a obtenção de consenso. De todo modo, o modelo é útil por sua tentativa de estabelecer uma racionalidade em meio a um processo que envolve tantas facetas.

Assim, são feitas referências ao modelo nos capítulos 7 a 9, dedicados ao estudo das reformas educacionais, sob a perspectiva das relações entre os Poderes Legislativo e Executivo. Entretanto, dado esse enfoque, que privilegia a abordagem de várias políticas públicas no campo educacional, mostrou-se recomendável evitar o aprofundamento da análise do processo que levou ao aparecimento de cada uma delas. O capítulo 8 apresenta um panorama que sugere o aumento da percepção social sobre a

39 De todo modo, cabe lembrar que, no Brasil, os parlamentares das duas casas do Congresso dispõem de consultorias técnicas para diversas áreas. Nos parlamentos do México e na Argentina, há especialistas ligados às comissões permanentes.

questão educacional como um conjunto de problema a ser enfrentado, demandando a adoção de políticas públicas mais efetivas no setor. As soluções para enfrentar os problemas são abordadas na perspectiva de seu surgimento e circulação no meio parlamentar e ao longo do processo legislativo. Portanto, não se explorou o processo de maturação que envolveu o aparecimento das novas políticas, particularmente a sua gênese e circulação na sociedade e na burocracia do Poder Executivo. O modelo se completa com a abordagem do contexto social e político que envolveu o processo legislativo, sem explorar sistematicamente, no entanto, o jogo de interesses que envolveu a atuação do conjunto de atores extraparlamentares, igualmente para não perder o foco nas relações entre os dois poderes.