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A analogia com a multa coercitiva prevista no processo coletivo

DESTINATÁRIO, O VALOR E A EXECUÇÃO.

5.1 O Estado como destinatário do crédito decorrente da astreinte

5.1.7 A analogia com a multa coercitiva prevista no processo coletivo

Vê-se, assim, que a atribuição do crédito da multa coercitiva ao Estado gera desvantagem (certa perda de rapidez) menor que aquelas verificadas quando se destina o mesmo valor ao autor (violação à vedação constitucional do enriquecimento sem causa e impossibilidade de fomento dos interesses públicos), sendo a vantagem da destinação do crédito ao autor (certo ganho em rapidez) débil frente à vantagem da destinação ao Estado (observância à vedação ao enriquecimento sem causa conjugado com o incrementos dos interesses públicos).

O postulado da ponderação ainda exige uma reconstrução do raciocínio de molde a aferir a validade das regras que estabeleceram a precedência para além do caso concreto, o que pode ser feito, aqui, mediante a conclusão de que o incremento quantitativo (celeridade) de um aspecto de um direito fundamental (direito fundamental à efetividade), em detrimento de uma norma constitucional (vedação ao enriquecimento sem causa), não se justifica diante de medida alternativa que, não nulificando, ou não restringindo gravemente, o aspecto do direito fundamental incrementado pela medida diversa (celeridade), ainda dá guarida à norma constitucional violada (vedação ao enriquecimento sem causa) e abre a possibilidade de incremento de interesses públicos secundários (incremento da arrecadação) e primários (prestação do serviço jurisdicional) de relevância constitucional.

Verifica-se, assim, que a atribuição do crédito da multa coercitiva ao autor não passa no teste da proporcionalidade em sentido estrito/postulado normativo da ponderação, razão pela qual ela é medida juridicamente equivocada, enquanto a atribuição do mesmo crédito ao Estado é medida aprovada pelo mesmo teste.

5.1.7 A analogia com a multa coercitiva prevista no processo coletivo

A analogia, meio que “consiste em aplicar, a um caso não contemplado de modo direto ou específico por uma norma jurídica, uma norma prevista para uma hipótese distinta, mas semelhante ao caso não contemplado” (DINIZ, 2007, p. 116), reforça a conclusão pela destinação do crédito da multa coercitiva ao Estado, e não ao autor da demanda.

O argumento analógico, no caso, é de forte persuasão não em função de uma eventual hierarquia estabelecida pelos arts. 4º da LINDB e 126 do CPC. Ele oferece uma forte razão para a solução da questão fundamentalmente porque apresenta uma forte racionalidade intrínseca e funciona como elemento de concretização de três princípios jurídicos fundamentais, quais sejam, a isonomia, a segurança jurídica e a separação de poderes.

A aplicação da analogia dá guarida ao princípio da isonomia pois permite o tratamento igualitário de situações que, apesar de não serem idênticas, guardam semelhança em aspectos essenciais. Como bem frisado por Maria Helena Diniz (2007, p. 117), “o fundamento da analogia encontra-se na igualdade jurídica, já que o processo analógico constitui um raciocínio baseado em razões relevantes de similitude”.

A segurança jurídica é fomentada pela analogia a partir do momento em que, para uma situação não expressamente regulada, prefere-se a aplicação de uma solução já prevista para um caso semelhante no lugar de se construir uma solução completamente nova. O prestígio a uma solução já existente contribui indubitavelmente para estabilidade e, principalmente, previsibilidade do direito, na medida em que os envolvidos podem trabalhar com as expectativas normativas decorrentes da situação já prevista, ainda que aplicáveis por similitude, enquanto a formulação de uma solução completamente nova é incapaz de fundamentar qualquer expectativa normativa.

Importa destacar, ainda, que a aplicação da analogia é instrumento que valoriza sobremodo o princípio da separação dos poderes, expressamente consignado no art. 2º da CF/88. Obviamente, a separação dos poderes nunca deve ser entendida como uma rígida e estanque divisão, mas sim como um mecanismo dinâmico de controles recíprocos. O texto constitucional, inclusive, não utiliza o termo “separação”, mas sim independência (“independentes”) e harmonia (“harmônicos”), denotando assim a necessidade de um constante equilíbrio nas influências recíprocas. Tal é o ensinamento de José Horácio Meirelles Teixeira (2011, p. 541), para quem

[…] o princípio da separação não deve absolutamente ser entendido como

separação rígida, isolamento dos órgãos do Estado, no exercício das

respectivas funções, mas sim no de coordenação, cooperação num jogo de

o equilíbrio político, a limitação do poder estatal e, daí, a efetiva proteção da liberdade e a melhor realização do Bem Comum.

Esse ponto de equilíbrio deve ser buscado sem olvidar que cada Poder possui uma esfera própria de atribuições, constitucionalmente traçada, que deve ser objeto de deferência pelos demais Poderes. José Horácio Meirelles Teixeira (idem, p. 543) também destaca esse elemento:

Dentro desse esquema de distribuição de poderes (funções e competências), traçados pela Constituição, devem os diferentes órgãos do Estado (Poderes), respeitando-o, respeitar a esfera de atuação constitucionalmente assinalada e assegurada aos demais, e justamente nesse respeito mútuo pela competência de cada um à sua independência e à harmonia de sua atuação conjunta.

O princípio da separação dos poderes, no campo da interpretação/aplicação do direito, é a base para o princípio hermenêutico da correção funcional, pelo qual, segundo Konrade Hesse (2009, pp. 115):

Se a Constituição regula, de certa maneira, a competência dos agentes das funções estatais, o órgão de interpretação deve manter-se no marco das funções que lhe são atribuídas; esse órgão não deverá modificar a distribuição das funções pela forma e resultado dessa interpretação.

Assim, é de se ver que a analogia impõe ao intérprete/aplicador, em especial o autêntico, ou seja, o juiz, o prestígio da solução dada pelo legislador em hipótese que guarde semelhança essencial, pois dá primazia à solução já construída por aquele que detém a competência constitucional para criar o direito genuinamente novo.

Em resumo, é de se ver que a analogia deve ser prestigiada fundamentalmente porque representa um limite à liberdade ao poder conformador do juiz, na sua atividade de aplicação/intepretação do direito, na medida em que o mantém preso ao direito positivo, como bem destaca Paulo Nader (1994, p. 211):

[…] ainda aqui o juiz, ou o simples intérprete, se mantém cativo ao Direito Positivo, pois não poderá agir com liberdade na escolha da norma jurídica aplicável. A sua função será a de localizar, no sistema jurídico vigente, a hipótese prevista pelo legislador e que apresente semelhança fundamental, não apenas acidental, com o caso concreto.

Para a aplicação da analogia, o principal desafio é que identificar entre o caso não-regulamentado e o caso regulamentado não qualquer tipo de semelhança, mas uma semelhança fundamental. Noberto Bobbio (1999, p. 153) adverte que:

Para que se possa tirar a conclusão, quer dizer, para fazer a atribuição ao caso não-regulamentado das mesmas consequências jurídicas atribuídas

ao caso regulamentado semelhante, é preciso que entre os dois casos exista não uma semelhança qualquer, mas uma semelhança relevante, é preciso ascender dos dois casos uma qualidade comum a ambos, que seja ao mesmo tempo a razão suficiente pela qual ao caso regulamentado foram atribuídas aquelas e não outras consequências.

Carlos Maximiliano (2006, p. 173), de forma mais analítica, também destaca os requisitos necessários à aplicação da analogia:

“Pressupõe [a analogia]: 1º) uma hipótese não prevista, senão se trataria apenas de interpretação extensiva; 2º) a relação contemplada no texto, embora diversa da que se examina, deve ser semelhante, ter com ela um elemento de identidade; 3º) este elemento não pode ser qualquer, e, sim,

essencial, fundamental, isto é, o fato jurídico que deu origem ao dispositivo.

Não bastam afinidades aparentes, semelhança formal; exige-se a real, verdadeira igualdade sob um ou mais aspectos, consistente no fato de se encontrar, num e noutro caso, o mesmo princípio básico e de ser uma só a idéia geradora tanto da regra existente como da que se busca. A hipótese nova e a que compara com ela, precisam assemelhar-se na essência e nos efeitos; é mister existir entre ambas a mesma razão de decidir. Evitem-se as semelhanças aparentes, sobre pontos secundários. O processo é perfeito, em sua relatividade, quando a frase jurídica existente e a que da mesma se infere deparam como entrosadas as mesmas idéias fundamentais.

Fixadas essas premissas, deve-se identificar as multas que possuem previsão normativa quanto ao destinatário de seu crédito e fazer a devida comparação com a astreinte prevista no CPC, de modo a averiguar a existência, ou não, de semelhança fundamental.

No próprio CPC, encontramos as multas previstas no parágrafo único do art. 14e no conjunto normativo formado pelos arts. 600 e 601. O crédito da multa prevista na primeira hipótese reverte para o Estado, enquanto, na segunda hipótese, é destinado ao exequente.

Nenhumas dessa multas, porém, guarda semelhança fundamental com a astreinte, já que ambas possuem natureza eminentemente punitiva, enquanto a multa cominatória é medida primordialmente coercitiva, cuja natureza punitiva, apesar de existente, é apenas secundária. A analogia com qualquer dessas figuras, portanto, mostra-se incabível.

Equivocada, portanto, a analogia empregada por Marcelo Lima Guerra (1998, p. 210) com o art. 601 do CPC, defendida nos seguintes termos:

[…] ambas tem um ponto de semelhança bastante significativo, que justifica a aplicação analógica do regime de uma a outra. Também a multa do art. 601 dá origem a um crédito sem nenhuma relação com o direito material tutelado no processo, em razão do que inexiste qualquer fundamento

lógico-jurídico a justificar que o credor da execução tenha direito a essa importância. Tendo a lei, nesse caso, determinado que o valor da multa

beneficiasse o credor da execução, mesmo não tendo ele direito a tanto, é razoável pensar que a mesma solução seja dada à multa diária.

O raciocínio esgrimido, em verdade, é perverso. Se a norma do art. 601 do CPC não possui fundamento lógico-jurídico, ela é irrazoável (ofensa ao postulado normativo da razoabilidade enquanto exigência de congruência) e, consequentemente, inconstitucional. Assim, ela não poderia jamais ser utilizada como parâmetro de qualquer aplicação analógica, já que é dever do aplicador do direito, no caso, reconhecer a inconstitucionalidade e privar a norma de seus efeitos. Na legislação extravagante, por sua vez, encontramos a multa prevista na Lei da Ação Civil Pública (LACP), no Estatuto de Criança e do Adolescente (ECA) e no Estatuto do Idoso (EI) (arts. 13, 214 e 84, respectivamente), cujo crédito é expressamente destinado a um fundo público, ou seja, ao Estado.

Entre a astreinte prevista no CPC e as multas previstas dos citados dispositivos da LACP, do ECA e do EI há mais do que semelhança em aspectos fundamentais. Trata-se, na verdade, do mesmo instituto, pois todas constituem meio executivo destinado a pressionar o devedor a cumprir voluntariamente a ordem judicial mediante ameaça de desfalque patrimonial que cresce, sem prévia limitação, à medida que o inadimplemento se protrai no tempo.

A única diferença entre essas multas é sua topografia normativa: uma está prevista no CPC, norma processual de cunho geral, enquanto as outras estão previstas em diplomas extravagantes, componentes do microssistema do processo civil coletivo. Tal diferença, contudo, longe de constituir elemento que aconselhe o afastamento das figuras, deve ser encarada como uma forte razão para sua aproximação.

Os institutos do processo civil coletivo, que, segundo Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. (2009, p. 34), são motivados pela busca de uma tutela jurisdicional mais célere e efetiva, mediante a redução dos custos da prestação jurisdicional e a uniformização dos julgamentos, com o consequente incremento da segurança jurídica e da credibilidade do Judiciário como instituição republicana, devem ser cada vez mais utilizados como paradigmas na interpretação/aplicação/integração dos institutos do processo individual, de modo que haja um incremento qualitativo do processo civil como um todo.

do EI, é imperioso concluir que a multa prevista no CPC deve ter como beneficiário não o autor da demanda, mas sim o Estado61.

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