• Nenhum resultado encontrado

A vedação constitucional ao enriquecimento sem causa

DESTINATÁRIO, O VALOR E A EXECUÇÃO.

5.1 O Estado como destinatário do crédito decorrente da astreinte

5.1.5 A vedação constitucional ao enriquecimento sem causa

O enriquecimento sem causa é definido como o acréscimo patrimonial destituído de causa lógico-jurídica idônea. Para Luiz Edson Fachin (2003, p. 296):

O enriquecimento sem causa, ligado à noção de atribuição patrimonial, ocupa espaço cada vez mais relevante no estudo dos contratos. A atribuição patrimonial corresponde ao ingresso em uma esfera jurídica de um montante ou de um bem com valor pecuniário, ou mesmo de um interesse conversível em pecúnia. Essa atribuição deve possuir uma causa, uma base na qual se assenta. Quando essa base de equilíbrio originário desaparece, há o chamado enriquecimento sem causa.

Como se pode ver, a maior parte dos estudos sobre a vedação ao enriquecimento sem causa parte do Direito Civil, mormente do campo das obrigações e dos contratos. Isso se dá, em boa parte, porque a matéria é 56 Ensinam Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart (2011, v. 3, p. 86): "O art. 461, § 6º, do CPC, ao permitir que o juiz reduza ou aumente o valor da multa fixada na sentença transitada em julgado, deseja evidenciar que a parte da sentença que fixa o valor da multa não fica imunizada pela coisa julgada material. A intenção desta norma é permitir que o juiz altere o valor ou a periodicidade da multa, segundo as necessidades de cada caso concreto, independentemente da alteração da situação fática sobre a qual recaiu a sentença e a multa que nela foi fixada."

expressamente regulada nos arts. 884 a 886 do Código Civil.

Em verdade, a vedação ao enriquecimento sem causa vai muito além do Direito Civil.

Silvio de Salvo Venosa (2004, v. 2, p. 203) consigna que o enriquecimento sem causa é “injusto, imoral e, invariavelmente, contrário ao direito, ainda que somente sob o aspecto da equidade ou dos princípios gerais de direito”.

Celso Antônio Bandeira de Mello (2006, pp. 4-5), debruçando-se sobre a proibição do enriquecimento sem causa no Direito Administrativo, qualifica-o como um princípio geral do direito, e, portanto, aplicável indistintamente tanto ao direito privado como ao direito público.

A categoria que recebe o nome de princípios gerais de direito corresponde no mais das vezes a um conjunto de termos e definições que descrevem o conteúdo do direito. Ela corresponde a um instrumento técnico a cargo dos juristas para lhes facilitar a comunicação. No dizer de Eros Roberto Grau (2006, p. 143), “os princípios gerais do direito pertencem à linguagem dos juristas. São proposições descritivas (e não normativas) através das quais os juristas referem, de maneira sintética, o conteúdo e as grandes tendências do direito positivo”.

Ao se referir à vedação ao enriquecimento sem causa, não temos em mente uma proposição que descreve um fenômeno, mas sim uma norma de direito que qualifica como proibida as condutas que configurem enriquecimento de alguém sem a existência de uma causa lógico-jurídica idônea. Desse modo, a vedação ao enriquecimento ilícito não é um princípio geral do direito, mas sim uma norma de direito positivo, sendo necessário extrair-lhe uma base normativa que vá além dos já mencionados dispositivos do Código Civil.

Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barboza e Maria Celina Bodin de Moraes (2006, v. 2, p. 751) dão notícia de que o STF já julgou no sentido de ser a proibição ao enriquecimento sem causa uma garantia constitucional implícita.

De fato, no AI 182458 AgR, o Ministro relator, Marco Aurélio, tendo sido seguido à unanimidade, no âmbito da 2ª Turma do STF, apreciando questão envolvendo a atualização monetária de créditos do ICMS – matéria tributária, de direito público –, qualificou a vedação ao enriquecimento sem causa como garantia constitucional implícita. Fê-lo, todavia, sem qualquer análise mais acurada, tendo se

limitado a sustentar essa qualificação singelamente.

Em verdade, há duas perspectivas pelas quais é possível encontrar um fundamento constitucional para a vedação ao enriquecimento sem causa.

A primeira, diz com o fato de o enriquecimento destituído de causa lógico- jurídica idônea não representar nada mais do que a especificação do já analisado princípio da razoabilidade.

Já foi visto que a razoabilidade exige uma relação de congruência entre a realidade dos fatos e aquela projetada pela norma (congruência externa). Assim, o enriquecimento sem causa, que pressupõe a ausência dessa congruência, denominada “causa lógico-jurídica idônea”, não passa de uma especificação da razoabilidade, forjada no campo do direito privado, mas aplicável a todo o Direito.

Desse modo, o fundamento constitucional para a vedação ao enriquecimento sem causa pode ser vislumbrado no mesmo fundamento constitucional da razoabilidade, quais sejam, o art. 1º, caput (Estado Democrático de Direito), o art. 5º, caput (isonomia) e inciso LV (devido processo legal) da CF/88.

Outra perspectiva pela qual se pode vislumbrar o fundamento constitucional da vedação ao enriquecimento sem causa é a partir da leitura do direito à propriedade, do qual o enriquecimento é um fenômeno logicamente correlato, e a solidariedade constitucional, em especial a função social da propriedade. Trata-se de conjugar a leitura do art. 5º, XXII (direito de propriedade) com o inciso XXIII (função social da propriedade) do mesmo artigo e o inciso I do art. 3º (sociedade solidária como objetivo constitucional), todos da CF/88, de modo a concluir que o enriquecimento (direito de propriedade) tem que atender a uma causa (razão) socialmente idônea (solidariedade constitucional e função social da propriedade) para que possa receber proteção jurídica.

Importante frisar, nesse passo, que a solidariedade constitucional e a função social da propriedade apresentam-se como elementos que conformam o próprio direito à propriedade, não apenas como meros limites. Elas são elementos essenciais para a racionalização da propriedade enquanto direito. Nesse sentido, Pietro Perlingieri (2002, p. 226), tendo em vista o ordenamento italiano, mas em lições inteiramente aplicáveis ao ordenamento brasileiro, até mesmo em virtude da correspondência entre textos normativos, ensina que:

Em um sistema inspirado na solidariedade política, econômica e social e ao pleno desenvolvimento da pessoa (art. 2º Const. [da Itália, no Brasil, arts. 1º e 3º]) o conteúdo da função social assume um papel de tipo promocional, no sentido de que a disciplina das formas de propriedade e suas interpretações deveriam ser atuadas para garantir e para promover os valores sobre os quais se funda o ordenamento. E isso não se realiza somente finalizando a disciplina dos limites à função social. Esta deve ser entendida não como uma intervenção “em ódio” à propriedade privada, mas torna-se “a própria razão pela qual o direito de propriedade foi atribuído a determinado sujeito”, um critério de ação para o legislador, e um critério de individuação da normativa a ser aplicada para o intérprete chamado a avaliar as situações conexas à realização de atos e de atividades do titular.

Feita essa breve digressão, é possível vislumbrar que a destinação do crédito da multa coercitiva ao autor da demanda, e não ao Estado, representa claro enriquecimento sem causa.

O patrimônio do autor está amplamente resguardado pelas perdas e danos, que, em virtude do princípio da ampla reparabilidade (art. 944 do Código Civil), englobam tanto os danos decorridos do inadimplemento da obrigação como aqueles decorrentes do processo. Até mesmo a compensação pela demora no inadimplemento, independentemente da comprovação do dano, que obviamente engloba o período corresponde à marcha processual, está resguardada pelos juros de mora, que são contáveis não só para as obrigações de pagar quantia, mas também para as obrigações de fazer, não fazer e entrar coisa diversa de dinheiro (art. 407 do Código Civil)57.

Desse modo, atribuir ao credor uma quantia a mais, em decorrência do inadimplemento da obrigação consignada na decisão judicial, sem que tal quantia tenha justificativa na reparação do dano por ele sofrido ou da demora no adimplemento da obrigação, representa enriquecimento destituído de causa lógico- jurídica idônea.

É interessante constatar que a questão do enriquecimento sem causa é considerada tanto no direito francês58 como no direito brasileiro.

Aqui, Luís Guilherme Marinoni (2006, p. 222), por exemplo, é preciso ao

57 Segundo Mário Luiz Delgado Régis (2012, p. 977): “Do art. 407 decorrem dois princípios: 1º) Os juros de mora são devidos, independentemente da alegação do prejuízo, já que este será sempre decorrente da demora culposa do devedor em cumprir ou do credor em receber a prestação. 2º) Os juros de mora são devidos, independentemente da natureza da prestação”. 58 As posições de Pierre Hébraud, Pierre Raynaud, André Tunc e Jean Carbonier são noticiadas

por Luis Guilherme Marinoni (2006, pp. 222-223), enquanto Marcelo Lima Guerra (1998, pp. 123-124) dá conta da posição de Perrot e Boyer, todas no sentido de que há um indevido enriquecimento do autor com a reversão para si do crédito das astreintes.

identificar as razões pelas quais ocorre enriquecimento sem causa na espécie: […] A multa, ainda que mediatamente tenha por fim tutelar o direito do autor, visa, precipuamente, a garantir a efetividade das decisões do juiz. Sem a multa não seria possível ao Estado exercer plenamente a atividade jurisdicional, até porque a sentença mandamental se constituiria em mera recomendação, a refletir a falta de capacidade do Estado para tutelar efetivamente os direitos. É ela, portanto, instrumento indispensável para o Estado exercer seu poder. Prova disso está no fato de o Código de Processo Civil admitir ao juiz impor a multa de ofício na tutela antecipatória, na sentença, e ainda na fase executiva (art. 461, § 4º e 6º). (…)

A cumulação das perdas e danos com a multa não espelha o direito do

autor. O autor, no caso de direito patrimonial, deve ser indenizado por

perdas e danos; por outro lado, no caso de direito não patrimonial, não é o valor da multa que será capaz de remediar alguma coisa, já que, se a indenização é insuficiente para a tutela desses direitos, não será o valor da multa que compensará adequadamente o autor pela lesão sofrida.

A multa, mesmo quando postulado pelo autor, serve apenas para pressionar o réu a adimplir a ordem do juiz, motivo pelo qual não parece racional a ideia de que ela deva reverter para o patrimônio do autor, como se tivesse algum fim indenizatório. A multa não se destina a dar ao autor um plus indenizatório ou algo parecido com isso; seu único objetivo é garantir a efetividade da tutela jurisdicional.

Apesar dessas razões, o autor aduz que “o legislador brasileiro, contudo, ainda poderá deixar claro que a multa não reverte em benefício do autor, mas sim em proveito do Estado” (idem, p. 223), aderindo, com isso, à interpretação, que já foi visto ser equivocada, de que o art. 461, § 2º do CPC garantiria a reversão do valor da multa ao autor.

Joaquim Felipe Spadoni (2007, pp. 196-197) também destaca, na mesma linha de razões, que a atribuição do valor do crédito da astreinte ao autor gera enriquecimento sem causa:

Com efeito, ao se reconhecer na imposição da multa cominatória uma medida de direito público, de caráter processual, destinada a assegurar a efetividade das ordens judiciais e a autoridade dos órgãos judicantes, não se consegue vislumbrar justificação lógica para ter o autor da ação direito a receber a importância decorrente da aplicação da multa. Mais coerente seria que o produto da multa fosse revertido ao Estado, em razão da natureza da obrigação violada.

(…)

Realmente, tal solução possui o grave incoveniente de atribuir ao autor da demanda o direito de receber uma quantia em dinheiro que não deriva da relação jurídica que possui com a parte ré, e que não é aquela correspondente às perdas e danos a que eventualmente pode fazer jus. É dada uma vantagem pecuniária ao autor, em detrimento do réu, sem que para isso se tenha um respaldo lógico-jurídico suficientemente justificador.

Também aqui o autor abandona essas razões para concluir que a solução pela atribuição do valor da multa ao autor “é a que melhor dá eficácia ao instrumento coercitivo disponibilizado, sendo justificada por razões pragmáticas” (idem, p. 197), que já foram enfrentadas e devidamente refutadas.

Marcelo Guerra (1998, p. 206) pontua que a adoção, no Brasil, da solução francesa, tem sido feita sem levar em consideração as críticas que lá se faz com relação à configuração do enriquecimento sem causa na atribuição do crédito da multa coercitiva ao autor. Porém, após destacar que o direito alemão, destinando o valor integral do crédito ao Estado, é o que oferece a melhor solução, conclui, levando em conta os argumentos já analisados relacionados à dificuldade de execução pela Fazenda e uma tortuosa analogia com o art. 601 do CPC, que a solução do direito francês é a que deve ser adotada no Brasil, por ser “menos problemática e a única para a qual se pode encontrar um fundamento jurídico” (idem, pp. 207-210).

Guilherme Rizzo do Amaral (2010, pp. 232-243) chega a pôr em confronto todas essas razões, mas, também movido pelos argumentos de ordem programática, conclui que a solução pela reversão do valor da multa ao autor é a mais acertada. Ele consigna que

reconhecendo não haver fórmula perfeita para a sistemática das astreintes, visto que, retirando seu crédito do autor, se lhe retira a eficácia, e deixando- o com o autor, permite-se em determinadas situações seu enriquecimento injusto, é de ser mantida a sistamática atual (idem, p. 243).

Para amenizar essa conclusão, todavia, o autor sugere que o juiz, aplicando a multa, dose-a de modo a minimizar seus efeitos coletarias, inclusive com a possibilidade de suprimi-la quando houver utilização abusiva:

Note-se, entretanto, que, por consistir em técnica de tutela a serviço do juiz, na busca da obtenção da tutela específica do autor, àquele assiste o poder de coibir abusos, de dosar as astreintes de forma a minimizar seus efeitos colaterais, dentre eles o enriquecimento injusto do demandante. Essa dosagem manifesta-se na possibilidade de redução do valor da multa e até mesmo na supressão do crédito dela resultante. (Ibidem, p. 243)

É possível vislumbrar, assim, que a maior parte da doutrina faz uma ponderação, muitas vezes de modo implícito, outras vezes de modo tímido e metodologicamente desorientado, para concluir pela prevalência da efetividade conferida pela atribuição do valor da astreinte ao autor sobre o enriquecimento sem causa que essa situação gera.

Urge, portanto, que seja realizada um ponderação dentro de balizas metodológicas mais precisas, o que implica se valer do postulado normativo da proporcionalidade.

5.1.6 A aplicação dos postulados normativos da proporcionalidade e da

Outline

Documentos relacionados