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A aplicação dos postulados normativos da proporcionalidade e da ponderação

DESTINATÁRIO, O VALOR E A EXECUÇÃO.

5.1 O Estado como destinatário do crédito decorrente da astreinte

5.1.6 A aplicação dos postulados normativos da proporcionalidade e da ponderação

Como já visto, o postulado normativo da proporcionalidade implica a análise da relação entre meios e fins, submetendo-a a três testes sucessivos, quais sejam, o da adequação, o da necessidade e o da proporcionalidade em sentido estrito, sendo este último nada mais do que a aplicação do postulado normativo da ponderação.

Impõe-se, assim, inicialmente, a definição do fim a ser atingido e os meios disponíveis para tanto.

O fim a ser atingido pela multa coercitiva é a obtenção da tutela jurisdicional efetiva da obrigação de fazer, não fazer ou entregar coisa diversa de dinheiro. Por tutela jurisdicional efetiva, deve-se entender uma tutela jurisdicional constitucionalmente adequada.

Os meios disponíveis para tanto, tendo em conta o crédito gerado pela eventual incidência da multa coercitiva, são a atribuição do valor ao próprio autor da execução ou ao Estado.

Antes de continuar, urge ressaltar que se adota, nesse ponto, uma premissa que pode parecer conflitante com o que já foi defendido até agora. Trata-se de admissão de que o meio consubstanciado na atribuição do valor da multa coercitiva ao autor representa um certo ganho em termos de celeridade processual. Essa afirmação, como visto em momento anterior, não pode ser tomada como correta porque carece de uma base empírica confiável, realiza um corte parcial da realidade e representa um desvio de perspectiva no adequado tratamento da questão. Urge, todavia, na análise aqui empreendida, tomá-la como correta, ainda que por suposição, pois somente assim torna-se viável o exame da proporcionalidade em todas as suas faces.

adequado quanto promove, ainda que minimamente, o fim almejado. O meio somente não será adequado quando for patente que ele não contribui para a realização do fim.

Nesses termos, parece não ser possível vislumbrar muita dificuldade em concluir que a única medida que seria reprovada no teste da adequação seria a atribuição do crédito da multa coercitiva ao próprio executado, destinatário da ordem judicial.

Tanto a destinação do crédito tanto ao autor como ao Estado são medidas adequadas, pois não é possível vislumbrar como essas medidas representariam um embaraço incontornável à prestação da tutela jurisdicional executiva.

A verificação da adequação da destinação do valor do crédito ao Estado ganharia um pouco de complexidade se se defendesse que a atribuição do crédito da multa ao autor representaria a nulificação da eficácia do instituto. Guilherme Rizzo do Amaral, por exemplo (2010, p. 243), claramente assenta que a atribuição do crédito da multa ao Estado “lhe retira a eficácia”.

Ocorre, porém, que a destinação do crédito da multa ao Estado somente não seria medida adequada se representasse embaraço incontornável à efetividade da tutela executiva. Para tanto, ter-se-ia que admitir que a execução dos créditos de titularidade estatal possuem grau de eficácia zero, ou algo próximo, fato esse notoriamente falso. Aliás, quem defende que a atribuição do crédito da multa ao Estado não é medida adequada, não chega a defender que esse crédito nunca seria executado, mas sim que haveria problemas na celeridade dessa atividade. Logo, o crédito da multa coercitiva, atribuído ao Estado, será executado, ainda que em tese de maneira menos rápida do que com a atribuição a outrem, que não o próprio executado, obviamente. Assim, a atribuição do crédito da astreinte ao Estado também se apresenta como medida adequada.

O teste da necessidade implica a comparação das medidas de mesma eficácia, de modo a aferir aquela mais restritiva a direitos fundamentais, afastando-a. Esse teste pode parecer simples num primeiro momento, pois basta reputar que a atribuição da multa ao Estado e ao autor representariam a mesma eficácia na consecução do objetivo escolhido, qual seja, a prestação da tutela jurisdicional efetiva, constitucionalmente adequada.

Assim, o exame da necessidade seria deslocado para a análise da restrição do grau de afetação dos direitos fundamentais envolvidos. Nesse caso, a atribuição da multa ao Estado, e não ao autor, representaria uma restrição ao direito fundamental a um processo célere, enquanto a atribuição do valor ou autor, não ao Estado, não implicaria qualquer ofensa a direito fundamental. Logo, a medida representada pela destinação do crédito da multa coercitiva ao Estado seria mais restritiva ao direito fundamental do autor à celeridade processual, motivo pelo qual se mostraria desnecessária.

Ocorre, porém, que o primeiro equívoco do teste na forma acima delineada é não deixar claro o motivo pelo qual haveria de se reputar que a destinação do crédito da astreinte ao Estado e ao autor são medidas de igual eficácia na consecução do direito fundamental a uma tutela jurisdicional constitucionalmente adequada, o que impõe a realização de uma análise preliminar do que há de ser entendido por eficácia, aferindo se, efetivamente, essas duas medidas são equivalentes para esse fim.

Por eficácia deve-se entender a capacidade de promoção do fim. Nesses termos, como bem pontua Humberto Ávila (2009a, p. 171), a dificuldade se apresenta quando se tem em conta que a promoção do fim por um meio pode-se dar de formas as mais diversas, ou seja, um meio pode promover um fim de forma qualitativamente, quantitativamente ou probabilisticamente melhor que o outro. A combinação desses fatores, inclusive, pode-se dar das mais diferentes maneiras e a implementação ótima de cada um pode se dar em meios diferentes. Assim, se um meio promove quantitativamente melhor o fim, pode ser que o outro meio, em comparação, promova qualitativamente melhor o fim.

É possível, assim, ver que o exame da necessidade mostra-se complexo no presente caso, já que é possível assentar que a destinação do crédito da astreinte ao Estado é medida qualitativamente superior na consecução da tutela jurisdicional efetiva, constitucionalmente adequada, pois não incorre na vedação ao enriquecimento sem causa, enquanto a destinação ao autor é medida quantitativamente superior na promoção do mesmo fim, já que implicaria ganho de celeridade, mas qualitativamente inferior, ao permitir a ocorrência do enriquecimento sem causa.

Tendo em conta a dificuldade que surge nesse tipo de comparação, que opõe diversos critérios entre si, Humberto Ávila (2009a, p. 171) acertadamente conclui que somente se pode reputar desnecessário um meio “quando ele for manifestamente menos adequado que outro”.

No presente caso, parece não ser possível afirmar que a atribuição do crédito da multa coercitiva ao Estado é medida manifestamente inadequada na consecução da tutela jurisdicional efetiva, constitucionalmente adequada, em comparação com a destinação do mesmo valor ao autor.

Em verdade, aqui, tem-se o conflito entre os graus de promoção do fim pelas medidas – uma medida promove melhor, enquanto outra promove mais o fim almejado – e entre estes e o grau de restrição provocado ao direito fundamental envolvido. A solução para esse impasse não é dado pelo teste da necessidade, mas sim pelo último dos testes da proporcionalidade, qual seja, a proporcionalidade em sentido estrito, equivalente ao postulado da ponderação, que vai ter por objeto, no caso, os critérios relacionados à promoção do fim (qualitativo e quantitativo) e o grau de restrição provocada ao direito fundamental.

Passando, então, à ponderação exigida pela proporcionalidade em sentido estrito, verifica-se que os objetos a serem ponderados, no caso, são a promoção qualitativa do fim propiciada pela medida consubstanciada na entrega do valor da multa coercitiva ao Estado e a promoção quantitativa do fim propiciada pela entrega desse mesmo valor ao autor da demanda.

Não são esses dois únicos elementos que devem ser objeto de ponderação, contudo. Devem ser objeto de ponderação todas as normas envolvidas e respectivos interesses protegidos.

Nesse passo, é preciso fazer uma distinção entre os interesses ligados à aplicação da multa coercitiva em si, como meio de execução indireta, e os interesses envolvidos na destinação do crédito decorrente de sua aplicação, quando a coerção objetivada não se traduziu no cumprimento da decisão.

No primeiro caso – interesse na aplicação da multa coercitiva em si –, já ficou claro que é o interesse público de prestação efetiva de tutela jurisdicional o interesse diretamente protegido pelo instituto, e não o interesse material do credor.

função jurisdicional do Estado, que, apesar de instrumental, é autônoma em relação ao direito material em execução59.

Considerando, assim, que a multa cominatória é instituto primordialmente destinado ao resguardo do interesse público, é incoerente defender que um aspecto secundário seu – o crédito decorrente de sua incidência – seja desafetado do regime jurídico de direito público exclusivamente para contemplar o interesse privado do autor da demanda.

No segundo caso – interesses relacionados especificamente ao crédito decorrente da incidência da multa –, calha destacar que os interesses públicos dividem-se, segundo doutrina amplamente aceita no Brasil, em interesses públicos primários e interesses públicos secundários60.

Os interesses públicos primários correspondem aos interesses fundamentais da sociedade, que cabe ao Estado proteger e fomentar, tais como a segurança pública, a saúde e a educação, enquanto os interesses públicos secundários são os interesses que o Estado titulariza enquanto parte de uma dada relação jurídica, correspondendo, grosso modo, à minimização de despesas e maximização de receitas. É importante destacar que alguns interesses individuais correspondem a interesses públicos primários, como aqueles constitucionalizados sob a forma de direitos fundamentais, a exemplo do direito de propriedade (art. 5º, caput e inc. XXI).

Faz-se imperioso, contudo, advertir, ao contrário do que faz, ainda que implicitamente, alguma doutrina, que não se pode afirmar que os interesses individuais gozem de primazia sobre os interesses públicos secundários.

Os interesses públicos secundários são importantes, e devem ser contemplados em pé de igualdade com os interesses individuais. Sobre a importância dos interesses públicos secundários, Luis Roberto Barroso (2009, p. 70) ensina:

59 O instrumentalismo não nega a autonomia do direito processual em face do direito material. Ele apenas defende a correção dos excessos decorrentes da autonomia quase absoluta apregoada pelo conceptualismo, que o precedeu. José Roberto dos Santos Bedaque (2006, p. 20) assevera que “não se trata de regresso a fases já superadas do estudo do processo. Reconhece-se e defende-se a autonomia do direito processual. Não se aceita, todavia, seu isolamento, mormente por se tratar de ciência instrumental. São estéreis as construções processuais que não proporcionam real contribuição para o escopo do processo”.

60 Essa distinção, cunhada na doutrina italiana, foi difundida no Brasil principalmente graças ao trabalho de Celso Antônio Bandeira de Mello (2005, pp. 55-58).

O interesse público secundário, não é, obviamente, desimportante. Observe-se o exemplo do erário. Os recursos financeiros provêem os meios para a realização do interesse primário, e não é possível prescindir deles. Sem recursos adequados, o Estado não tem capacidade de promover investimentos sociais nem de prestar de maneira adequada os serviços públicos que lhe tocam. Mas, naturalmente, em nenhuma hipótese será legítimo sacrificar o interesse público primário com o objetivo de satisfazer o secundário. A inversão da prioridade seria patente, e nenhuma lógica razoável poderia sustentá-la.

Nesse contexto, observa-se que a destinação do crédito da astreinte ao Estado atende, de forma direta, o interesse público secundário de aumento das receitas e fomenta, no mínimo indiretamente, o interesses público primário de incremento do serviço de prestação da Justiça, já que os valores arrecadados podem ser afetados ao próprio Poder Judiciário. Não há, por outro lado, qualquer prejuízo aos interesses individuais do autor da demanda.

Por outro lado, a destinação do crédito da multa cominatória ao autor da demanda atende seu interesse exclusivamente individual de aumento patrimonial e mais nada. Nesse caso, não há atendimento ao interesse individual constitucionalizado no direito fundamental de propriedade, já que o art. 461, § 2º do CPC já garante a ampla reparabilidade das perdas e danos independentemente das astreintes. Nessas circunstâncias, nos casos de litigância contra o Estado, e admitindo a possibilidade de aplicação da multa cominatória contra a própria pessoa jurídica de direito público, há sério gravame ao interesse público secundário de diminuição de despesas e incremento de receita, com sérios riscos de comprometimento dos interesses públicos primários que poderiam ser melhor atendidos com os recursos utilizados no pagamento da astreinte.

Fazendo uma síntese, é possível vislumbrar, como vantagem da atribuição do valor das astreintes ao Estado o, atendimento à norma constitucional que veda o enriquecimento sem causa e o incremento da arrecadação, que pode ver revertido para melhoria da prestação do serviço jurisdicional como um todo, e como desvantagem um certa restrição ao direito do autor à celeridade processual. Como vantagem da atribuição da astreinte ao autor, pode-se assentar o incremento da celeridade processual, tendo como desvantagem o acréscimo patrimonial do autor não amparado pelo direito fundamental à propriedade e concomitantemente ofensivo à vedação constitucional ao enriquecimento sem causa com a impossibilidade de incremento da arrecadação e possível efeito positivo no interesse público primário

de melhoria do serviço jurisdicional como um todo.

Vê-se, assim, que a atribuição do crédito da multa coercitiva ao Estado gera desvantagem (certa perda de rapidez) menor que aquelas verificadas quando se destina o mesmo valor ao autor (violação à vedação constitucional do enriquecimento sem causa e impossibilidade de fomento dos interesses públicos), sendo a vantagem da destinação do crédito ao autor (certo ganho em rapidez) débil frente à vantagem da destinação ao Estado (observância à vedação ao enriquecimento sem causa conjugado com o incrementos dos interesses públicos).

O postulado da ponderação ainda exige uma reconstrução do raciocínio de molde a aferir a validade das regras que estabeleceram a precedência para além do caso concreto, o que pode ser feito, aqui, mediante a conclusão de que o incremento quantitativo (celeridade) de um aspecto de um direito fundamental (direito fundamental à efetividade), em detrimento de uma norma constitucional (vedação ao enriquecimento sem causa), não se justifica diante de medida alternativa que, não nulificando, ou não restringindo gravemente, o aspecto do direito fundamental incrementado pela medida diversa (celeridade), ainda dá guarida à norma constitucional violada (vedação ao enriquecimento sem causa) e abre a possibilidade de incremento de interesses públicos secundários (incremento da arrecadação) e primários (prestação do serviço jurisdicional) de relevância constitucional.

Verifica-se, assim, que a atribuição do crédito da multa coercitiva ao autor não passa no teste da proporcionalidade em sentido estrito/postulado normativo da ponderação, razão pela qual ela é medida juridicamente equivocada, enquanto a atribuição do mesmo crédito ao Estado é medida aprovada pelo mesmo teste.

5.1.7 A analogia com a multa coercitiva prevista no processo coletivo

A analogia, meio que “consiste em aplicar, a um caso não contemplado de modo direto ou específico por uma norma jurídica, uma norma prevista para uma hipótese distinta, mas semelhante ao caso não contemplado” (DINIZ, 2007, p. 116), reforça a conclusão pela destinação do crédito da multa coercitiva ao Estado, e não ao autor da demanda.

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