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Secção II – Argumentação e educação em ciência

2.4 A argumentação na promoção da literacia científica

Ao longo das últimas cinco décadas, muito se tem discutido e dissertado acerca do conceito de literacia científica, sem que se consiga encontrar uma definição consensual ou universal. Há quem lhe atribua um papel orientador na educação, imputando-lhe a função

de “slogan utilizado pelos educadores para orientar o desenvolvimento curricular e a prática na sala de aula” (Aikenhead, 2009, p. 19), sem, contudo, menosprezar a sua relevância e papel na orientação a nível do desenho de currículos e nas práticas pedagógicas.

Recentemente, Roberts (2007, 2011) avançou com uma proposta acerca do conceito de literacia científica, atribuindo-lhe duas conotações concorrentes que designou de Visão I e Visão II. Estas visões corporizam um dos focos de conflito ou tensão entre fações que procuram, por um lado, centrar a educação em ciência nos seus aspetos disciplinares internos e outros que defendem uma compreensão do empreendimento científico mais holística, enfatizando as inter-relações entre ciência, tecnologia e sociedade, contribuindo para o desenvolvimento de uma conceção de ciência nos alunos, enquanto empreendimento humano influenciado pelo meio exterior.

A Visão I é conotada com uma conceção ortodoxa de ciência, sendo considerados literatos os cidadãos que possuam conhecimentos dos produtos, dos processos e que saibam identificar características do empreendimento científico. Esta visão dá prioridade à dimensão substantiva e processual da ciência, nela se valorizando, essencialmente, o conhecimento científico canónico. Segundo Roberts (2011), esta visão acerca da literacia científica, que o autor denomina de ‘literacia em ciência’, pretende desenvolver nos indivíduos um conjunto de aptidões ou capacidades que assentam em quatro pilares: (1) estrutura da ciência, acerca de como ela funciona enquanto empreendimento intelectual; (2) desenvolvimento de capacidades científicas, em que se dá ênfase às capacidades processuais da ciência; (3) explicações corretas, acentuando-se os produtos da ciência e as suas qualidades cumulativas e de autocorreção e (4) alicerces sólidos, com a finalidade de permitir novas e mais complexas aprendizagens ao longo do percurso académico.

A Visão II distingue-se da anterior pela dimensão externalista que atribui à ciência. Um cidadão cientificamente literato, nesta visão, é capaz de refletir, negociar, tomar decisões de forma consciente, responsável e fundamentada sobre assuntos ou questões que, para além de conhecimento científico, envolvem outras dimensões (moral, ética, política, social, religiosa). Segundo esta visão, a formação científica permitirá que os indivíduos se apercebam da complexidade dos assuntos científicos, semelhantes aos problemas com que se defrontarão enquanto cidadãos e cuja resolução não está meramente dependente da apropriação prévia de conhecimento substantivo ou

processual. Assumindo esta visão uma perspetiva de cidadania ativa e responsável, outra expressão tem surgido na tentativa de vincar uma atitude mais proactiva e de ação no domínio das políticas públicas e sociais de ciência, por parte dos cidadãos literatos: “envolvimento público com a ciência” (Osborne, 2004). Aikenhead (2009) leva-nos a refletir sobre esta visão de literacia científica, questionando o seguinte:

Até que ponto é que os estudantes portugueses funcionarão bem na sua própria sociedade caracterizada por avanços científicos e tecnológicos, tais como os de organismos geneticamente modificados, a procura global da energia, o projeto do genoma humano, a produção de órgãos, Ritalin para os jovens, Viagra para os velhos e Prozac para todos? Por outras palavras, como se pode capacitar (empower) os estudantes para obterem um controlo responsável sobre os seus próprios destinos e lidarem com os aspetos científicos e tecnológicos da sua sociedade? (pp. 19-20).

Assim, de acordo com a Visão II, os alunos devem ser preparados para viver numa sociedade democrática, pelo que precisam de contactar com questões cuja resolução exige a análise e discussão de várias perspetivas sobre as quais é necessário argumentar para, em seguida, deliberar. Para os investigadores que defendem esta conceção de literacia científica, em que nos revemos, não basta que os alunos aprendam conhecimentos substantivos e desenvolvam competências ou atitudes consistentes com a compreensão pública de ciência. É necessário que os alunos percebam a relevância das aprendizagens realizadas e que lhes atribuam significado, como refere Aikenhead (2009), “A literacia científica apela a um currículo científico relevante, do ponto de vista dos cidadãos” (p. 27). Este autor, publicou recentemente um trabalho em colaboração com outros dois investigadores – Orpwood e Fensham – no qual valoriza o conhecimento enquanto ação social contextualizada, isto é, considera que o conhecimento apropriado pelos alunos deve sê-lo com a finalidade de promover uma literacia em ação (literacy-in- action). Esta necessidade imperiosa de alterar os currículos de ciências e os processos de ensino necessários para fomentar uma ação científica informada e interventiva decorre, segundo os mesmos autores, de vivermos numa economia baseada no conhecimento (knowledge-based-economy). Assim, numa sociedade do conhecimento, o significado fundamental de literacia científica dever ser o de literacia em ação:

A literacia científica numa Sociedade do Conhecimento é necessariamente literacia em ação – literacia em ação oral, escrita e digital. Consequentemente, a literacia científica como uma finalidade educacional assume uma conotação mais ativa do que passiva. A literacia científica não é sobre ‘Quanto é que sabemos?’, mas antes ‘O que se pode aprender quando surge a necessidade?’ e ‘Como efetivamente se

tecnologia relacionadas com o mundo do trabalho ou com o mundo quotidiano dos cidadãos?’. A mudança no resultado – de ‘saber que’ para ‘saber como aprender e usar este conteúdo relevante’ – representará uma mudança radical nas políticas curriculares da ciência escolar (Aikenhead, Orpwood, & Fensham, 2011, p.31).

Neste sentido, torna-se evidente que estes autores apoiam tendencialmente a Visão II, de literacia científica, ao sugerirem que a ciência escolar se deve afastar da perspetiva científica tradicional sustentada pela Visão I. Esta não pressupõe todas as oportunidades de aprendizagem que se preveem na Visão II (Roberts, 2011), por se limitar a uma conceção mais restrita do conhecimento substantivo e processual. Já a Visão II oferece uma combinação de conhecimentos teóricos, tecnológicos e práticos e uma perspetiva externalista na análise de situações relacionadas com a ciência e a tecnologia, mais propiciadora de uma formação científica relevante para o exercício pleno de uma cidadania ativa e crítica. Nesta conceção, parece ressaltar a posição da ‘educação pela ciência’ como a que mais se adequa ao desenvolvimento de uma literacia científica que capacite os alunos para argumentarem na defesa de determinadas posições, de forma fundamentada, quando colocados perante problemas complexos, como os de natureza sociocientífica. Daí que o recurso a uma abordagem problemática dos assuntos nos pareça apropriada para a finalidade pretendida.

Para além de fomentarem o envolvimento dos alunos na co-construção dos conhecimentos, a utilização de problemas ou questões atuais ou relevantes “suscita o interesse e a participação ativa dos alunos, no desenvolvimento das competências necessárias à resolução dessas situações problemáticas, e promove a construção de uma ideia mais humana dos empreendimentos científico e tecnológico” (Galvão, & Reis, 2008, p. 131). As ideias em torno desta dimensão humanista da ciência são, segundo alguns autores (Aikenhead, 2009; Zeidler, Osborne, Erduran, Simon, & Monk, 2003), contributos fundamentais para que cidadãos cientificamente literatos se sintam legitimados a participar em processos de tomada de decisão (Lave, & Wenger, 1991). A abordagem de problemáticas societais em sala de aula tem sido defendida como adequada aos propósitos antes referidos (Reis, & Galvão, 2008, 2009; Zeidler et al., 2003). Na procura de uma solução para os problemas sociocientíficos, os indivíduos são levados a mobilizar discursos dialógicos, de natureza deliberativa, nos quais têm de raciocinar, criticar e justificar, ou seja, têm de argumentar (Zeidler et al., 2003) e de construir explicações.

Efetivamente, a sociedade humana enfrenta situações, por vezes, dilemáticas que envolvem questões sociocientíficas (Simmoneaux, 2008; Reis, 2008). Podemos considerar, neste âmbito, questões relacionadas com a exploração da energia nuclear, da queima de resíduos por coincineração, da ocupação de terrenos agrícolas para o cultivo de produtos geneticamente modificados, da reprodução medicamente assistida, controlo de epidemias, entre outros. Quando confrontados com este tipo de problemáticas, os cidadãos nem sempre estão à altura de responder aos desafios que lhes são colocados, nomeadamente de as analisar de um ponto de vista crítico e cientificamente fundamentado, de forma a poderem exercer os seus direitos, que simultaneamente podemos considerar como deveres, de participar de forma ativa e responsável na sociedade democrática que integram. Parece-nos que, nestas e em outras circunstâncias, a mobilização de competências de argumentação se torna fundamental.

Para a tomada de decisões, particularmente em situações (socio)científicas controversas, é necessária uma avaliação crítica e fundamentada das opções que se nos oferecem, pelo que perceber o porquê das posições assumidas e saber avaliá-las é essencial. Assim, a discussão ou debate de diferentes perspetivas, com apresentação de argumentos e contra-argumentos, deve assumir um papel de grande relevância, tal como referem Solbes, Ruiz e Furió (2010),

Muitas das questões ambientais, médicas ou económicas que as sociedades enfrentam implicam relações CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade) (Aikenhead, 1994; Solbes, 2003) e requerem dos cidadãos a análise de diferentes argumentos e a tomada de decisões em função da racionalidade de diferentes opções que se apresentam (Sadler e outros, 2005). A aquisição de capacidades argumentativas é ainda mais necessária no caso em que existam posturas controversas sobre um tema que implique diferentes valorizações éticas (Solbes, 2009), quer dizer, no caso de temas controversos na sociedade atual (pp. 65-66).

Paralelamente à consciencialização da necessidade de aprender a argumentar ou de argumentar para aprender a lidar com aquele tipo de situações, foi-se constatando que os alunos (e os professores) possuíam visões deformadas sobre a ciência e a sua natureza (Fernández, Gil, Carrascosa, Cachapuz, & Praia, 2002), que se podem constituir como obstáculos a uma aprendizagem efetiva dos alunos e a uma alfabetização científica e tecnológica dos cidadãos.

A abordagem à argumentação em aulas de ciências, pode assumir não só a vertente de pendor sociocientífico mas, também, com um carácter meramente científico, com

exploração de diferentes possibilidades de explicação de um dado fenómeno ou de controvérsia em torno de teorias, como já abordámos anteriormente e é salientado neste excerto, por Caamaño (2010):

É útil diferenciar estes dois tipos de argumentação na escola, a que poderíamos chamar a argumentação para a educação científica, peça fundamental do processo de compreensão dos conceitos e teorias e da natureza da ciência, e a que poderíamos chamar argumentação para a educação cidadã, quer dizer, a argumentação sobre temas sociocientíficos, ambientais, de saúde ou éticos, de carácter mais transversal e interdisciplinar (p. 6, itálicos no original).

É hoje inegável, a importância da argumentação no ensino das ciências, ainda que com dois ângulos diferenciados e processos de legitimação diferentes (Tiberghien, 2008). O despoletar de questões societais que exigem dos cidadãos, tomadas de decisão responsáveis e cientificamente fundamentadas, uma das finalidades da literacia científica (Cachapuz, Praia e Jorge, 2002), veio reforçar a necessidade do desenvolvimento da argumentação, no âmbito da ciência escolar. Paralelamente, surge também a necessidade de adequar as conceções dos alunos acerca da ciência, valorizando o papel das provas na avaliação de modelos, teorias ou hipóteses na construção do conhecimento e a consciencialização de que em ciência não há verdades absolutas e que mais do que a experimentação ou a observação, é, também, no campo da argumentação que a empresa científica se edifica. Ambas as vertentes nos parecem fundamentais para uma reconceptualização, por parte dos alunos, da importância da aprendizagem das ciências: uma reforçando a perspetiva de cidadania crítica, responsável e emancipadora (argumentação para a educação cidadã); a outra, contribuindo para desmistificar a natureza do conhecimento científico e os seus processos de produção (argumentação para a educação científica). No fundo, podemos afirmar que a argumentação em aulas de ciências contribui de forma ativa para o desenvolvimento da literacia científica dos alunos, favorecendo o desenvolvimento de competências científicas. Esta deve ser uma das razões pelas quais alguns programas de avaliação da literacia científica dos alunos têm vindo a apontar a argumentação como uma das valências a analisar no domínio das competências científicas desenvolvidas pelos alunos.

O programa PISA é um projeto desenvolvido pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), desde 1997, que tem por objetivo avaliar a literacia, em diferentes domínios – leitura, matemática e ciências - dos alunos de 15 anos,

de países de diferentes partes do mundo (mínimo de 41 países participantes, em 2003 e um máximo de 65 países participantes, em 2009 e 2012). O programa pretende “medir até que ponto os alunos de 15 anos, que se encontram próximos do final da escolaridade obrigatória, estão preparados para enfrentar os desafios das sociedades de conhecimento atuais” (OECD, 2005, p.20). No ano de 2006, foram constituídos quatro domínios da literacia científica, a avaliar: o contexto, o conhecimento, as competências e as atitudes (Pinto-Ferreira, Serrão, & Padinha, 2007). No primeiro destes domínios, pretendeu-se perceber se os alunos reconheciam situações do quotidiano que se relacionassem com a ciência e a tecnologia; no domínio do conhecimento, pretendeu-se perceber se os alunos tinham apropriado conhecimentos substantivos (conhecimento da ciência) e processuais (conhecimento acerca da ciência); no domínio das competências, a avaliação relacionou-se com a identificação de questões científicas, da explicação de fenómenos científicos e com a elaboração de conclusões a partir de dados; por fim, no último daqueles domínios, pretendeu-se analisar se os alunos apresentavam atitudes positivas face à ciência e se revelavam responsabilidade face, por exemplo, aos recursos naturais e ao ambiente.

A argumentação relaciona-se com as três competências científicas avaliadas através dos testes PISA. Desta forma, consideramos que os testes PISA valorizam este tipo de competências, considerando-as como essenciais na formação de cidadãos literatos, uma vez que avalia o uso de provas na avaliação de enunciados científicos.

Os resultados dos testes PISA, realizados em 2006, ano em que se destacou a avaliação da literacia no domínio da ciência, mostraram que os alunos portugueses atingiram melhores níveis de desempenho nas tarefas propostas, quando comparados com os das avaliações anteriores. Apesar disso, Portugal continua, de acordo com os resultados de 2012 (Ministério da Educação e Ciência, 2013) a apresentar resultados que se situam abaixo do desempenho médio dos alunos dos países participantes, o que pode ser indiciador de que há ainda um longo trajeto a efetuar em relação à qualidade do ensino das ciências, no nosso país. Quando se analisam os resultados referentes a cada uma das competências científicas consideradas no projeto PISA, constata-se que, os alunos portugueses conseguiram atingir os melhores níveis de desempenho, na competência “identificação de assuntos científicos”, que “abrange o reconhecimento de questões passíveis de serem investigadas cientificamente, em situações concretas, e a identificação de palavras-chave na procura de informação científica” (Pinto-Ferreira, Serrão, & Padinha,

2007, p. 35). No entanto, foi na ‘utilização de evidência científica’ que os alunos portugueses obtiveram os piores resultados, em relação à avaliação das três competências, o que nos dá autoridade para inferir que será uma das menos desenvolvidas pelos alunos, nas aulas de ciências, reforçando a noção de que o ensino e as aprendizagens científicas se baseiam numa retórica de conclusões.

Em síntese, ainda que o contexto da presente investigação se centre no ensino e aprendizagem das ciências no ensino secundário, orientado para o prosseguimento dos estudos e, desta forma, com currículos mais tendencialmente preocupados com as aprendizagens de conhecimento substantivo, continuamos a defender que a visão II de literacia científica deveria ser o cerne do desenvolvimento curricular para aquele nível de ensino. Efetivamente, a visão II contempla uma noção de ciência humanista, externalista, na qual ressaltam os contextos de justificação e de comunicação na produção da ciência, o que permite, por um lado, desenvolver nos alunos uma imagem mais adequada acerca da natureza da ciência, na qual a argumentação desempenha um papel supremo na determinação da validade do conhecimento científico e, por outro, não descurar o ensino e aprendizagem dos conhecimentos substantivos, bem como o desenvolvimento de competências científicas (Pedrinaci, 2012). Esta perspetiva holística de literacia científica possibilitará, de forma mais vincada, o desenvolvimento da argumentação para a educação científica e da argumentação para a educação cidadã (Caamaño, 2010), não nos parecendo que estas duas dimensões da argumentação escolar sejam mutuamente exclusivas. Como refere Osborne (2012), a educação científica tem a responsabilidade de promover ideias acerca do trabalho científico, ou seja, de favorecer a construção de ideias sobre os processos de produção do conhecimento e de contribuir para a apropriação de conhecimento substantivo, elemento essencial para que os futuros cidadãos possam emitir juízos sobre novas descobertas e aplicações científicas. A avaliação no âmbito do programa PISA tem dado relevo às competências de argumentação científica. Os resultados, relativamente a Portugal, têm revelado alunos com desempenhos fracos quanto ao uso de provas para sustentar conclusões, indiciando que o ensino das ciências continua muito centrado na transmissão do produto da ciência e afastado da problematização, discussão e argumentação sobre assuntos científicos.

2.5 A importância da argumentação no contexto do ensino e