• Nenhum resultado encontrado

Secção II – Argumentação e educação em ciência

2.10 A reflexão no desenvolvimento pessoal e profissional docente

O termo ‘reflexão’ ou as expressões ‘professor reflexivo’ e ‘prático reflexivo’ têm sido recorrentemente usadas em contextos de investigação relacionados com a formação e o desenvolvimento profissional de professores. Como afirma Alarcão (1996a), “Na arena educativa emergem de vez em quando, ideias novas – ou renovadas – que catalisam, contagiam e… quase se transformam em slogans alienadores” (p. 7, itálico no original). O papel da reflexão no contexto da formação de professores adquiriu relevância, fundamentalmente, após a publicação de duas obras centrais na análise da problemática da formação de profissionais, escritas por Donald Schön – The reflective practitioner: How professionals think in action, de 1983 e Educating the reflective practitioner: Toward a new design for teaching and learning, de 1987. Contudo, o conceito de reflexão no contexto pedagógico já tinha sido abordado, anteriormente, por John Dewey, no início do século XX (Lalanda, & Abrantes, 1996), considerando este autor que o pensamento reflexivo é a melhor maneira de pensar.

Nas citadas obras, Schön critica o paradigma de educação e formação profissional, vigente há várias décadas, que designa de racionalidade técnica. Segundo esse paradigma,

“a atividade profissional consiste na resolução de problemas instrumentais feita rigorosa pela aplicação da teoria científica e da técnica” (Schön, 1983, p. 21). A racionalidade técnica, segundo o autor, privilegia o conhecimento declarativo, teórico e proposicional, separando-o da prática e pressupõe que os problemas que vão surgindo ao longo do desempenho profissional podem ser resolvidos, caso a caso, com recurso a técnicas específicas, que se adequam a cada situação. Com fundamento epistemológico num paradigma de cariz positivista, no referido modelo de formação “considera-se que a verdade é objetiva, única, reside nos factos e dispensa a interpretação pessoal que destes fazem os sujeitos” (Alarcão, 1996a, p. 22) nas situações problemáticas, menosprezando o conhecimento que se produz durante a prática profissional. Segundo Alarcão (1996a), este modelo de formação tem predominado no ensino universitário, no qual a ênfase no paradigma da ciência aplicada se tem destacado. Ainda que a autora tenha manifestado esta posição antes da introdução do Processo de Bolonha, na atualidade continua a predominar uma visão atomista do conhecimento, ao invés de se atender a uma visão mais holística dos saberes e a um modelo de ensino e aprendizagem problematizador do conhecimento e promotor de uma aprendizagem ao longo da vida.

Com a prevalência do modelo de racionalidade técnica na educação e formação profissional foram-se gerando correntes epistemológicas da prática que geraram um

movimento internacional, que se desenvolveu no ensino e na formação de professores sob a bandeira da reflexão, [e que] pode ser considerado uma reação contra o facto de os professores serem vistos como técnicos que se limitam a cumprir o que outros lhe ditam de fora da sala de aula (Zeichner, 1993, p. 16).

Para Schön (1983, 1987), os problemas que o profissional tem de enfrentar em contexto real não encontram solução num modelo de racionalidade técnica uma vez que, devido à sua singularidade e complexidade, apenas podem ser resolvidos através de uma mobilização de competências várias que não se cingem a um elenco de técnicas a aplicar. Este posicionamento é, também, defendido por Nóvoa (1992), em relação à prática profissional docente, ao referir que as problemáticas vivenciadas no seio da profissão não são de natureza meramente instrumental, pois o terreno em que elas se geram leva a decisões de grande complexidade, incerteza, singularidade e conflito de valores. Efetivamente, os professores são profissionais multifacetados cuja prática implica a resolução de situações problemáticas que exigem o assumir de competências em diversos

Em oposição ao modelo de racionalidade técnica, Schön (1983, 1987) valoriza uma epistemologia da prática, defendendo que a reflexão a partir da ação é uma fonte de conhecimento válido. Como refere Alarcão (1996a), a componente reflexiva é “a via possível para um profissional se sentir capaz de enfrentar as situações sempre novas e diferentes com que se vai deparar na vida real e de tomar as decisões apropriadas nas zonas de indefinição que a caracterizam” (p.11).

Tendo por referência a importância da reflexão no modelo epistemológico da prática, Schön (1983, 1987) propõe uma tipificação de várias componentes que contribuem de forma decisiva para o conhecimento e desenvolvimento profissional. Segundo o autor, os profissionais têm um ‘conhecimento na ação’, isto é, um conhecimento tácito, interiorizado e espontâneo que se revela no saber-fazer técnico- prático. Este tipo de conhecimento que se manifesta na prática, deve ser alvo de reflexão. Assim, para além do ‘conhecimento na ação’, Schön (1983, 1987) considera como dispositivos cognitivos característicos dos profissionais competentes: a ‘reflexão na ação’, a ‘reflexão sobre a ação’ e a ‘reflexão sobre a reflexão na ação’. Através da reflexão a partir da ação, o profissional pode estabelecer conexões entre teoria e prática e pode ir reformulando e melhorando o seu próprio desempenho.

A ‘reflexão na ação’ corresponde, como a própria designação pressupõe, a uma reflexão que ocorre durante a prática, sem que esta seja interrompida, podendo levar eventualmente à reformulação da ação enquanto ela se desenrola. Neste caso, durante a sua prática, o professor pode ter momentos de reflexão sobre os acontecimentos que estão a ocorrer, podendo efetuar ajustamentos ao planificado. Já a ‘reflexão sobre a ação’ é posterior aos acontecimentos, o que exige uma reconstrução mental da ação, uma vez que a análise ocorre retrospetivamente. Este momento reflexivo espoleta uma consciência do ‘conhecimento na ação’ e contribui para reformular o pensamento e tomar consciência do conhecimento tácito e da discrepância entre as intenções da ação e a própria ação. Pode ainda surgir um momento em que o profissional tenha um olhar retrospetivo não apenas sobre ação em que esteve envolvido mas também sobre a reflexão na ação, procurando compreender, interpretar e atribuir significado a esse momento, componente que Schön designa de ´reflexão sobre a reflexão na ação’. Segundo Alarcão (1996a) esta última componente do pensamento reflexivo contribui para compreender problemas

futuros e descobrir novas soluções. Todas estas dimensões de reflexividade favorecem o desenvolvimento profissional, como é afirmado por Mellado (2003):

O desenvolvimento profissional realiza-se através de processos sucessivos de autorregulação metacognitiva do professor baseados em reflexão, na compreensão e no controlo do que pensa, do que sente e do que faz na aula e na escola e das próprias mudanças que realiza (p. 353).

Esta condição de ser reflexivo contribui, assim, para uma aprendizagem ao longo da vida, característica de uma profissão, como a docente, em que há necessidade de uma atualização permanente do conhecimento. Segundo Roldão (2007a), a componente analítica associada à capacidade reflexiva sobre a ação desenvolvida é uma das características do saber específico docente, a par do CPC, defendendo a investigadora que ela está “no centro das valências que importa acentuar na formação de professores para garantir a melhoria da sua qualidade e a afirmação de uma profissionalidade mais sólida dos atuais e futuros professores” (pp. 42-43). Aquela autora associa a expressão ‘prática reflexiva’ a uma conceção de professor investigador pelo que considera preferível o uso da expressão ‘profissional de ensino analítico e investigativo da prática’, considerando, ainda, que a problematização da prática profissional deve ser considerada o eixo estruturante da formação de qualquer profissional. Desta forma, os docentes podem afirmar-se enquanto grupo profissional que constrói os seus saberes através de uma prática reflexiva que requer um conjunto de condições como: (1) conhecimento teórico e prático; (2) teorização problematizadora da prática e (3) produção de conhecimento suscetível de ser comunicado e mobilizado noutras situações (Roldão, 2007b). Todas estas condições nos parecem relevantes para a prática reflexiva, que se deve fundamentar no questionamento e na crítica. O processo reflexivo não pode limitar-se à descrição, tendo que avançar para um nível de interpretação crítica, em que a ação seja analisada segundo perspetivas diferenciadas e informadas teoricamente. E é nesse avanço, na passagem do descritivo ao interpretativo, que as perguntas são importantes (Alarcão, 1996b) e fazem progredir o conhecimento.

Neste contexto de questionamento, o trabalho entre professores pode tornar-se uma mais-valia para o desenvolvimento da reflexão crítica (Zeichner, 1993), e potenciar a construção de conhecimento profissional no caminho da mudança da prática, como refere Alarcão (1996b):

Só após a descrição do que penso e do que faço me será possível encontrar as razões para os meus conceitos e para a minha atuação, isto é, interpretar e abrir-me ao pensamento e à experiência dos outros para, no confronto com eles e comigo próprio, ver como altero – e se altero, a minha praxis educativa (p. 182, itálico no original).

É este processo crítico-reflexivo que garante uma rutura com as discussões estéreis e com as trocas de opinião não fundamentadas que tornam improdutiva uma melhoria das práticas (Roldão, 2007b). O intercâmbio de experiências ligadas à prática que se pode gerar durante o trabalho colaborativo entre professores é promotor do pensamento reflexivo e, portanto, do questionamento e da resolução de problemas, elementos que podem contribuir para a mudança da cultura profissional. Para Alarcão (1996b), são as perguntas feitas pelo outro que orientam o pensamento para um nível interpretativo e não, meramente, descritivo, pelo que emergem como uma das estratégias que se devem privilegiar no desenvolvimento profissional docente. Contudo, segundo Zeichner (1993) são necessárias três atitudes para a ação reflexiva: abertura de espírito, responsabilidade e sinceridade. A abertura de espírito permite, segundo o autor, examinar as fundamentações lógicas que estão na base do que é correto, favorecendo o autoquestionamento do professor. A responsabilidade leva os professores a perguntarem- se porque estão a fazer o que fazem, levando-os a pensar sobre as consequências pessoais (os efeitos do seu ensino nos autoconceitos dos alunos), académicas (efeitos do seu ensino no desenvolvimento intelectual dos alunos) e sociopolíticas (efeitos do seu ensino na vida dos alunos). Por fim, a terceira atitude – sinceridade – leva os professores a tornarem-se responsáveis pela sua própria aprendizagem.

A constituição de redes coletivas de trabalho (Comissão Europeia, 2007; Nóvoa, 1992; Zeichner, 1993) ou de comunidades de prática (Wenger, 1998; Wenger, McDermott, & Snyder, 2002) pode desempenhar um papel significativo neste mesmo processo de aprendizagem e de desenvolvimento pessoal, uma vez que envolve os seus membros na partilha de conhecimentos e são propícias ao desenvolvimento da reflexão crítica, surgindo como “um fator decisivo de socialização profissional e de afirmação de valores próprios da profissão docente” (Nóvoa, 1992, p. 23). Diversos autores (Braund, & Campbell, 2010; Duschl & Osborne, 2002; Fulton, & Britton, 2011; Jorge, 2012; McLaughlin, & Talbert, 2006) consideram as comunidades de prática como fonte de desenvolvimento profissional dos professores. Zeichner (1993) alerta para a natureza social da prática reflexiva, “através da qual grupos de professores podem apoiar e

sustentar o crescimento uns dos outros” (p. 23). Uma comunidade de prática enquanto grupo de indivíduos que se envolvem num processo coletivo de aprendizagem acerca de um dado domínio do conhecimento (Wenger, McDermott, & Snyder, 2002) propicia processos de inovação e de colaboração reflexiva.

Podemos considerar que a implementação de práticas argumentativas representa um desafio em termos de inovação no ensino das ciências (Simon, Erduran, & Osborne, 2006; Sampson, & Blanchard, 2012) e do desenvolvimento profissional dos professores. Através da construção de um conhecimento coletivo que envolva a troca de informação, de conhecimentos, de experiências, práticas, recursos, materiais pedagógicos, numa comunidade de prática (Jorge, 2012), os professores poderão sentir-se mais apoiados para implementar práticas de argumentação científica. As comunidades de prática podem ser, nomeadamente, uma forma de promover o trabalho colaborativo na cultura profissional que, habitualmente, está associada ao isolamento profissional do professor (Brouwer, Brekelmans, Nieuwenhuis, & Simons, 2012; Hargreaves, 1992; Jorge, 2012). Mesmo em circunstâncias de trabalho conjunto, raramente os professores desenvolvem trabalho colaborativo, pois limitam-se a conversar informalmente acerca das suas preocupações ou até mesmo a uma ‘partilha de experiências’, mas não aprofundando as problemáticas associadas à sua prática para a qual é necessário mobilizar, na sua resolução, conhecimento profissional (Roldão, 2006, 2007b). Tal pode ficar a dever-se, segundo Roldão (2007a) ao facto do conhecimento profissional dos professores se constituir como o elo mais fraco da profissão docente. As comunidades de prática ou as redes coletivas de trabalho podem ser formas de apoiar os professores na melhoria do seu desempenho profissional e valorizar o conhecimento na ação, se se fundarem em práticas reflexivas informadas, conforme defendido por Schön (1983, 1987).

No seu trabalho de investigação, Jorge (2012) conclui que os professores consideraram que as comunidades de prática são “um contexto rico de colaboração, de construção de conhecimento e de reflexão profissional, de melhora das práticas, de rentabilização do trabalho individual” (p. 2211). Essas comunidades de prática ou redes coletivas de trabalho devem construir-se com base na confiança mútua e numa liderança organizacional escolar que fomente esse tipo de práticas de desenvolvimento profissional (McLaughlin, & Talbert, 2006; Wenger, McDermott, & Snyder, 2002). É na mesma linha de pensamento que Nóvoa (1992) e Zeichner (1993) sustentam que o papel dos diretores

escolares enquanto facilitadores de comunidades de prática é fundamental neste processo de evolução profissional que apoia a implementação de práticas pedagógicas inovadoras. Nóvoa (1992) chega mesmo a referir uma necessidade de melhoria da organização das escolas pois o modelo que ainda hoje prevalece e que poucas mudanças tem sofrido nos últimos anos, desencoraja um conhecimento profissional partilhado dos professores e dificulta o investimento das experiências significativas nos percursos de formação. Para aquele investigador, se queremos professores profissionalmente emancipados que assumam o seu próprio desenvolvimento profissional e que participem como protagonistas na implementação de políticas educativas, devemos apostar numa formação,

concebida como uma das componentes da mudança, em conexão estreita com outros setores e áreas de intervenção, e não como uma espécie de condição prévia da mudança. A formação não se faz antes da mudança, faz-se durante a mudança, produz-se nesse esforço de inovação e de procura dos melhores percursos para a transformação da escola (p. 23).

Neste contexto de mudança e de autonomia profissional, a reflexão desempenha um papel insubstituível, podendo contribuir para, num contexto de ensino e aprendizagem da argumentação científica, ultrapassar as “dificuldades enfrentadas pelo professor quando adota abordagens pedagógicas que entram em conflito com crenças existentes acerca do ensino e do que significa aprender ciência” (Simon, Richardson, Howell-Richardson, Christodoulou, & Osborne, 2009).

CAPÍTULO 3.