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Secção I – Ciência e argumentação

2.2 Argumentação

2.2.1 Apontamento histórico sobre argumentação e retórica

Desde quando praticam os humanos a argumentação? Esta é uma das questões formuladas por Breton (1998), no seu livro ‘A argumentação na comunicação’, à qual o autor responde, afirmando que a argumentação nasce com a comunicação, com a partilha de crenças, valores e opiniões. Assim, a resposta mais óbvia para Breton (1998), é “desde sempre, na medida em que o Homem se identifica, ao contrário do animal, com uma palavra, com um ponto de vista próprio sobre o mundo em que vive” (p. 21). Ainda assim, o autor admite que os estudos estruturados sobre argumentação são recentes, na história da humanidade.

A importância social e educacional da argumentação tem sofrido flutuações ao longo do tempo. A isso, não serão alheios fatores sociológicos e políticos. Tal como referem Breton e Gauthier (2001), os sistemas totalitários são avessos à argumentação, por assumirem uma perspetiva de poder absoluto, avessa à crítica. A valorização da argumentação constituir-se-ia como um contrassenso num sistema político daquela natureza, ao não reconhecerem e legitimarem a capacidade dos cidadãos tomarem decisões, em assuntos de interesse social ou de outra índole. Assim, aqueles autores

referem que “é numa sociedade laica, democrática e pacífica, mas também numa sociedade desconfiada, que são maiores as probabilidades de se assistir ao desenvolvimento de um grande interesse pela argumentação” (p.13).

No mundo ocidental, as primeiras teorias de argumentação surgiram no âmbito da civilização grega, por volta de 450-440 a.C., na Sicília grega. Nesta fase, a argumentação surge ligada aos processos de retórica (techné rhétoriké), enquanto ‘arte de convencer’ (Breton, 1998; Breton, & Gauthier, 2001). A Ágora, enquanto espaço social da Pólis, era o local de ação da democracia, onde decorriam discussões políticas ou onde se apresentavam os júris populares dos tribunais, que estavam sujeitos à ação persuasiva dos respetivos oradores (queixoso e acusados), assumindo a ‘palavra’ um lugar central enquanto instrumento de poder.

Segundo Breton e Gauthier (2001), existem quatro grandes períodos de desenvolvimento das teorias de argumentação: um período fundador, com início em meados do século V a.C. até meados do século IV a.C., correspondente aos primeiros manuais de retórica, contemporâneo do ensino dos sofistas e do reforço da democracia grega; um período de maturidade, correspondente ao apogeu aristotélico, nomeadamente devido à publicação da sua obra “Retórica”, que contribuirá para a sistematização, codificação e vulgarização das normas do discurso persuasivo; um período de declínio, que se estende desde o final do Império Romano até meados do século XX, em que a dimensão argumentativa se demarca da retórica, estando a primeira mais relacionada com processos racionais de demonstração, aliados à valorização da evidência científica; e um período da renovação que surge com as teorias de argumentação de Chaim Perelman e Olbrechts- Tyteca e de Stephen Toulmin, no final da década de 50, do século XX e que se prolonga até à atualidade.

A retórica foi sendo apropriada por diferentes grupos de intelectuais, na Grécia antiga: inicialmente foi ‘inventada’ por Corax, considerado um dos primeiros professores de retórica, tendo ele publicado uma obra, na qual propunha um conjunto de técnicas, nomeadamente referentes à organização do discurso, que aumentavam a eficácia da argumentação, em contextos jurídicos. Segundo Corax, um discurso deveria conter quatro partes, de forma a tornar-se convincente: exórdio, que tinha como função captar a atenção do auditório; a apresentação dos factos, na qual o orador deveria expor a sua tese; a discussão, em que se deveriam fornecer argumentos que apoiassem a tese e, a

peroração, fase final do discurso, em que se deveria efetuar uma síntese dos diferentes aspetos constituintes das fases anteriores do discurso (Breton, & Gauthier, 2001). Estas fases, “Ainda hoje são, grosso modo, uma norma do discurso oral ou do texto escrito que visam defender uma opinião” (idem, 2001, p. 23, itálico no original).

Os sofistas eram um grupo de mestres que percorriam cidades e que realizavam discursos públicos, centrados em estratégias de argumentação. Um dos aspetos que ensinavam aos seus ouvintes era o poder do contra-argumento, sendo o seu método conhecido como a antilogia ou controvérsia. Desta forma, é-lhes reconhecido o papel relevante que tiveram ao implementar técnicas que permitiam o desenvolvimento do espírito crítico, para além da importância que atribuíram à linguagem nos processos argumentativos, enquanto instrumento de poder persuasivo.

Aristóteles (384 a.C – 322 a.C.) traz uma nova conceção de retórica, destacando-se de todas as anteriores. Com o seu mestre Platão (428/427 a.C. – 348/347 a.C.), a retórica tinha-se aliado à moral e à procura da verdade. Posteriormente, Aristóteles vem separar a retórica da moral (e, da verdade), concebendo-a como um instrumento que pode ser colocado ao serviço do bem ou do mal, do justo ou do injusto. Pelo contrário, a argumentação aponta para uma ‘retórica do raciocínio’, isto é, está relacionada com o que depende da evidência ou da demonstração científica. Assim, a retórica, enquanto produto da dialética, ‘instrumento do conhecimento provável’ e, desta forma, não dependente da demonstração científica, não se relaciona com a procura da verdade. Para Aristóteles, a retórica situa-se próxima da dialética, uma vez que trata assuntos comuns, que não dependem da ‘ciência’, referindo-se aquela como ‘instrumento do conhecimento provável’. Diferencia-se da retórica, pois esta tem por finalidade convencer, não produzindo conhecimentos como a dialética.

Com o Império Romano, os recursos estilísticos da linguagem que contribuíam para ornamentar os discursos, adquiriram uma grande importância, passando a existir uma ‘fusão’ da retórica com a poética (Barthes, 1970), relegando-se a dimensão argumentativa para segundo plano, e sobrevalorizando-se a estética discursiva (Breton, & Gauthier, 2001). Na Idade Média, o conhecimento é organizado em dois ramos: o trívio (gramática, retórica e lógica) e o quadrívio (música, aritmética, geometria e astronomia). O primeiro, onde inicialmente a retórica ganha lugar de destaque, surge por oposição às ‘ciências exatas’ (Breton, & Gauthier, 2001). No entanto, a lógica, em particular, a lógica formal, vai-

se impondo, substituindo o interesse que antes se dedicava ao estudo das técnicas oratórias, associadas ao campo da retórica. Mais tarde, durante o Renascimento, e com a redescoberta da retórica de Aristóteles, a argumentação reemerge como dimensão de interesse.

A retórica constituiu-se como uma metalinguagem que perdurou no Ocidente desde o século V a.C até ao séc. XIX, ainda que a sua importância tenha variado, durante este longo período de tempo. Os conteúdos de ensino passaram a centrar-se mais na retórica do que nas teorias argumentativas, apesar da prevalência daquela ter sido quebrada com Descartes (1596 – 1650), ao publicar a sua obra ‘Discurso do Método’, na qual propõe um processo metódico para conduzir o pensamento humano na procura da verdade (ainda que se possa considerar que este texto apresenta uma componente retórica na exposição dos seus argumentos). Assim, a argumentação passou a ser substituída pela demonstração racional, característica do método cartesiano, que valoriza o papel da evidência na sustentação do raciocínio hipotético-dedutivo.

No século XIX, emerge uma indiferença crescente pela retórica, que arrastou consigo o interesse pelas teorias de argumentação, correspondendo ao culminar do seu declínio (Breton, 1998). A retórica foi, também, nesta altura, eliminada dos programas escolares e universitários, sendo que “Nem no liceu, nem na universidade voltará a haver um ensino que vise a teoria da argumentação, e muito menos a sua prática. As aulas de retórica desaparecem da organização escolar em França, a partir de 1902, ao mesmo tempo que os programas são expurgados de quaisquer referências à retórica” (Breton, & Gauthier, 2001, p. 48). Segundo Barthes (1970), este declínio deve-se à emergência de um valor novo – “a evidência (dos factos, das ideias e dos sentimentos) que se basta a si mesma e passa sem a linguagem (ou crê poder passar), ou pelo menos finge já se servir dela apenas como de um instrumento, de uma mediação, de uma expressão” (p. 192, itálico no original). Assim, durante o século XIX e parte significativa do século XX, o culto da evidência fomentado pelo cientismo e positivismo devota ao descrédito a ‘cultura da argumentação’, que se preocupava meramente com a estética do discurso (Breton, 1998).

Após a II Grande Guerra, o contexto ideológico sofre transformações. Nesta sequência, “A emergência dos estudos de argumentação podem ser interpretados como reflexo da crescente atenção dada à racionalidade do discurso” (Jiménez-Aleixandre, & Erduran, 2008, p.13). Outros fatores de natureza política influenciaram, também, o

renascer do interesse social pela argumentação com a perspetiva “da construção de um discurso racional democrático, rejeitando o totalitarismo nazi ou os discursos estalinistas” (Plantin, 2005, p.15, citado em Jiménez-Aleixandre, & Erduran, 2008).

Assim, já no final da década de 1950, assiste-se à publicação de duas obras: The uses of argument, de Stephen Toulmin e Traité de l’argumentation: la nouvelle rhétorique, de Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca. Segundo Breton (1998), é no início dos anos 60, do século XX, que “se começa a tomar consciência da importância e do poder das técnicas de influência e de persuasão aperfeiçoadas ao longo do século” (p. 17). Este renascer do interesse pelas teorias da argumentação procura a legitimação de um campo do conhecimento que tinha sido votado ao descrédito pela sua associação à retórica, concebida como arte de bem falar mas, simultaneamente, relacionada com discursos vazios de conteúdo e com intenção, claramente, manipulativa de opiniões e afastada do racionalismo demonstrativo e científico.

Na década de 70, do século XX, Hambling publica a obra Fallacies, onde apresenta, desde Aristóteles, a primeira história sistemática e crítica da noção de argumento falacioso (Plantin, 2010). Nela se propõe, ainda, “retomar o estudo da argumentação como um estudo dialético, tendo por objeto os diálogos realizados de acordo com um sistema de regras preestabelecidas, explícitas, respeitadas e suscetíveis de um estudo formal” (idem, p. 12). Contudo, a perspetiva formal sugerida está ligada à análise de aspetos discursivos do quotidiano (lógica informal ou não formal) e não a raciocínios demonstrativos, como se vinha defendendo desde a implantação de conceções positivistas de ciência. Na atualidade, os estudos de argumentação, enquadram-se nesta perspetiva de lógica informal no âmbito da pragmática, enquanto “disciplina que estuda os usos dos enunciados tendo em conta o seu contexto” (Plantin, 2010, p. 13).