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Secção I – Ciência e argumentação

2.1.4 Conceções de professores sobre ciência

têm revelado um carácter dinâmico no interior da própria comunidade de investigadores das disciplinas científicas e metacientíficas (história, filosofia e sociologia da ciência). Sendo o ensino das ciências uma das formas de veicular o património cultural científico construído ao longo de milhares de anos, é importante conhecer que conceções e compreensão possuem os professores acerca do empreendimento científico, pois as suas práticas poderão ser influenciadas por elas (Lederman, 2007; McComas, Clough, & Almazroa, 2000; Shah, 2009).

A natureza da ciência, enquanto área de metaconhecimento multidisciplinar (Vázquez-Alonso, Manassero-Mas, Acevedo-Díaz, & Acevedo-Romero, 2008), tem sido um dos territórios de investigação alvo de atenção por parte de cientistas e educadores em ciência, ao longo das últimas décadas (Lederman, 2007; McComas, 2000). De acordo com McComas, Clough e Almazroa (2000), a natureza da ciência é uma área do conhecimento híbrida para a qual confluem diversos campos do saber das ciências sociais e humanas, com destaque para as disciplinas metacientíficas focadas, para além da psicologia, e que tem por finalidade obter respostas para questões como ‘o que é a ciência?’, ‘como funciona?’, ‘como atuam os cientistas, enquanto grupo social?’ e ‘como é que a sociedade reage e direciona o empreendimento científico?’, procurando identificar critérios de cientificidade. As respostas a estas questões são complexas e muitas vezes estão longe de serem unânimes. Há muitas divergências no campo da epistemologia da ciência, como vimos, ainda que também haja…

um grau relativamente alto de concordância sobre alguns aspetos de uma visão adequada sobre a natureza da ciência. Isso não significa dizer que exista uma visão sobre a natureza da ciência única ou mesmo um consenso a respeito de alguma imagem ‘correta’ da atividade científica. (…) Trata-se de assumir que é possível derivar alguns pontos de concordância entre teorias sobre as ciências que discordam em muitos outros pontos, de modo a que possamos ter uma noção mais clara sobre o que constituiria uma visão aceitável da prática científica (El-Hani, 2006, p. 6).

Num nível mais geral, Lederman (2007) refere algumas das características da natureza da ciência, sobre as quais considera existirem poucos desacordos, como sejam: (1) o conhecimento científico é provisório, isto é, sujeito a mudanças, (2) é de base empírica, uma vez que se fundamenta em observações do mundo natural, (3) subjetivo, no sentido em que é orientado por conceções teóricas prévias, pelo que as observações não são neutras; (4) envolve obrigatoriamente a realização de inferências e apela à imaginação e criatividade dos cientistas na sua produção, no momento de elaborar explicações; (5) e é

uma construção sociocultural, uma vez que depende dos contextos sociais, históricos e culturais da época em que é produzido.

Também McComas, Clough e Almazroa (2000) apresentam um conjunto de características da ciência como sendo pouco discutíveis, de que destacamos (a) a importância da observação, das evidências experimentais, dos argumentos racionais e de uma atitude cética no processo de construção do conhecimento científico; (b) a existência de um pluralismo metodológico, afastando a ideia de um método científico único, fixo e algorítmico, que se deve cumprir, passo a passo, de forma rígida, para encontrar a verdade; (c) o papel diferencial das leis e das teorias na ciência; (d) a multiculturalidade como característica da comunidade científica; (e) a crítica constante das evidências, teorias e argumentos se constituir como forma de progresso do conhecimento científico, bem como a essencialidade de replicação de estudos; (f) a ciência ser construída num determinado meio social e cultural, influenciando-o e sendo influenciado por ele.

Apesar da consensualidade em níveis diversificados em torno daquelas ou doutras características (Acevedo-Díaz, Vázquez-Alonso, Manassero-Mas, & Acevedo-Romero, 2007; Marín, Benarroch, & Niaz, 2013; McComas, Clough & Almazroa, 2000; Vázquez– Alonso et al., 2008), investigações efetuadas, ao longo de várias décadas, têm contribuído para afirmar que os professores de ciências possuem conceções acerca da natureza da ciência (e da tecnologia) que se afastam da forma como são construídos e produzidos os conhecimentos (Fernández et al., 2005; García-Carmona, Vázquez, & Manassero, 2011; Lederman, & Abd-El-Khalick, 2000; McComas, Clough, & Almazroa, 2000).

Um dos primeiros estudos que incluía uma vertente acerca das ideias de ciência de professores foi publicado em 1950, na revista Science Education, com o título The teachers of science in a representative sampling of Minnesota schools. Neste artigo, o seu autor – Kenneth Anderson – conclui que os professores de Biologia e de Química, que constituem a amostra, possuem conceções erróneas graves acerca da ciência (Lederman, 2007). Após este estudo, muitos outros se lhe seguiram, com algumas conclusões a apontarem o défice de conhecimentos dos professores nas áreas da história e filosofia da ciência, como uma das razões para a construção de uma epistemologia espontânea (Fernández, Gil, Carrascosa, Cachapuz, & Praia, 2002), próxima da do senso comum (Lederman, 2007). Essa mesma visão de ciência, intitulada de ‘ingénua’ (Fernández et al., 2005; Vázquez, Acevedo, & Manassero, 2005), devido à falta de reflexão crítica e por corresponder à imagem

socialmente aceite, de orientação empiro-positivista (Bonito, 2008) pode também constituir um entrave à implementação de um ensino renovado, que poderia proporcionar uma melhor qualidade das aprendizagens científicas dos alunos. A visão ‘ingénua’ ou ‘popular’ está, habitualmente, associada a características de ciência, próximas das da conceção herdada (Cachapuz, Gil-Perez, Carvalho, Praia, & Vilches, 2005; Fernández et al., 2002; Fernández, Gil-Pérez, Valdés, & Vilches, 2005; Gil-Pérez, Fernández, Carrascosa, Cachapuz, & Praia, 2001; Settlage, & Southerland, 2007), que são, também designadas por mitos da ciência (McComas, 2000; Hodson, 2008): (1) uma conceção descontextualizada e socialmente neutra da ciência, que ignora os impactes sociais, tecnológicos e ambientais da ciência, bem como as relações que a sociedade e a tecnologia estabelecem com a ciência; (2) uma conceção individualista e elitista, desvalorizando (ou até, ignorando) a ciência, enquanto empreendimento coletivo e cooperativo, tendendo a atribuir as descobertas científicas a cientistas isolados e concebendo o trabalho científico como estando reservado a génios ou minorias particularmente dotadas de um elevado desenvolvimento cognitivo; (3) uma conceção empiro-positivista e ateórica, defendendo a neutralidade do observador e ignorando o papel das teorias e das hipóteses como orientadoras das observações e da experimentação; (4) uma visão rígida, algorítmica e infalível, apresentando o método científico como um conjunto de passos a seguir de forma mecânica, desprezando o papel da criatividade e da dúvida; (5) uma visão aproblemática e ahistórica, em que se ignoram os problemas que estiveram na origem dos conhecimentos e sem se abordar, muitas vezes, a perspetiva histórica que conduziu ao conhecimento atual; (6) uma visão exclusivamente analítica, em que se destaca a parcelização inicial dos estudos, sem que, no entanto, se proporcione, posteriormente, uma visão mais abrangente e holística do conhecimento e (7) uma visão acumulativa, de crescimento linear, dos conhecimentos científicos, em que se ignoram os períodos de revolução científica como se, em toda a história da ciência, os cientistas tivessem sempre trabalhado segundo um mesmo paradigma. Estas perspetivas deformadas acerca da natureza da ciência constituem um todo coerente, apoiando-se mutuamente na construção da ideia de ciência enquanto empreendimento de natureza empiro-positivista. Diversas destas conceções, também designadas de visões alternativas (Sampson, & Clark, 2006) são perpetuadas pelas metodologias de ensino, implementadas pelos professores. Como referem Fernández e colaboradores (2002),

dado que a educação científica – incluindo a universitária – se reduziu basicamente à apresentação de conhecimentos já elaborados, sem dar oportunidade aos alunos de se aproximarem das atividades características da atividade científica, é esperado que essa imagem popular de ciência, em que abundam os tópicos deformantes (como a imagem dos cientistas associada a “sábios distraídos” que trabalham solitários e isolados do mundo), persista inclusivamente entre os professores, influenciando negativamente o nosso ensino (p. 478).

Estudos recentes (Bonito, 2008), realizados em Portugal, têm revelado que os professores não apresentam uma perspetiva única acerca da imagem da ciência. De acordo com a investigação realizada por aquele autor, que envolveu 665 professores das regiões algarvia e alentejana, coexistem no mesmo indivíduo conceções epistemológicas de ordem diversa:

Apesar de em determinados momentos, os professores parecerem assumir, claramente posições no interior de um realismo ou de um relativismo epistemológico, em outras ocasiões, optam por defender conceções baseadas na crença de que a observação da realidade permite obter, por indução, o conhecimento verdadeiro (Bonito, 2008, p. 1788).

O autor conclui referindo que os resultados se podem constituir como uma tendência de mudança nas conceções dos professores acerca das imagens de ciência, o que pode ser facilitador do desenvolvimento de uma epistemologia construtivista ou de uma visão consistente da empresa científica (Sampson, & Clark, 2006).

Contudo, se queremos que os professores se tornem agentes epistemologicamente reflexivos, críticos e conscientes, torna-se fundamental que lhes sejam dadas oportunidades de atualizar os seus conhecimentos na área da natureza da ciência, através de processos explícitos de formação reflexiva sobre esta área metacientífica do conhecimento (Abd-El-Khalick, 2012) ou envolvendo-os em contextos reais de investigação e de reflexão sobre o trabalho realizado (García-Carmona, Vázquez, & Manassero, 2011). Só assim, se tornará viável a implementação de metodologias e estratégias de ensino que sejam coerentes com as atuais perspetivas acerca da construção do conhecimento científico, valorizando não apenas o contexto de justificação da ciência, mas também os conhecimentos epistemológicos (Fernández et al., 2005) e os processos associados ao contexto de descoberta. Consideramos, ainda, que a formação reflexiva sobre o papel da argumentação na construção da ciência pode contribuir para o desenvolvimento pessoal e profissional dos docentes naquela área do saber (Erduran, & Yan, 2010).