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Secção I – Ciência e argumentação

2.2 Argumentação

2.2.2 Correntes epistemológicas sobre argumentação

2.2.2.3 Perspetivas contemporâneas – breve referência

As teorias que emergiram nas últimas décadas do século XX transmitem uma visão mais dinâmica do processo argumentativo face a algumas críticas às teses que foram descritas anteriormente (Jiménez-Aleixandre, & Erduran, 2008). Fruto da nova perspetiva retórica, aliada a estudos de pragmática, vários investigadores foram construindo as suas propostas teóricas que se alicerçam em pressupostos comuns: (1) o carácter dialógico da argumentação e (2) a importância dos movimentos discursivos na elaboração dos argumentos. Em seguida iremos descrever, ainda que de forma sintética, alguns dos princípios de duas teorias argumentativas contemporâneas.

A – Teoria crítica de Walton

Walton é professor de Filosofia da Universidade de Winnipeg, no Canadá, sendo conhecido por ter elaborado a teoria crítica da argumentação. Produziu, até ao momento, vasta obra dedicada ao estudo da lógica informal e sua relação com a argumentação, sendo duas das mais conhecidas, Informal logic: A pragmatic approach, de 1989, e Argumentation schemes for presumptive reasoning, de 1996. É, aliás, nesta última obra que Walton concretiza as suas ideias em torno dos modelos argumentativos. Seguindo a linha apresentada por Perelman e Olbrechts-Tyteca (2006) em relação à identificação de várias técnicas argumentativas, Walton e seus colaboradores reconheceram um conjunto de 60 esquemas argumentativos que são, frequentemente, utilizados na construção de argumentos no contexto do raciocínio presumido (presumptive reasoning).

Segundo Walton (2006), a correção estrutural de um argumento pode ser avaliada de acordo com três princípios racionais: dedutivo, indutivo e presuntivo. Num argumento dedutivamente válido, a duas premissas verdadeiras corresponde, necessariamente, uma conclusão verdadeira. Os silogismos são formas estruturais e lógicas de apresentação dos argumentos dedutivos. Nos argumentos fortemente indutivos, se as premissas forem verdadeiras, é, então, indutivamente provável que a conclusão, também, seja verdadeira. Este tipo de argumentos é baseado na probabilidade e estatística. Por fim, Walton refere um terceiro tipo de argumentos, menos fiável que os anteriores, mas bastante comum no quotidiano. No dia-a-dia, torna-se imperioso, por vezes, chegar a conclusões ou tomar decisões, ainda que elas se fundamentem em premissas sobre as quais o grau de plausibilidade é indefinido, por não termos na nossa posse todas as provas que as

permitam sustentar. Assim, torna-se fundamental efetuar uma análise crítica da validade desse tipo de argumentos. Nas palavras do filósofo:

Num argumento plausível, se as premissas são verdadeiras, então, o peso da plausibilidade é deslocado para a conclusão. Dizer que uma afirmação é plausível significa que parece ser verdadeira, baseada nos dados conhecidos e observados, até então, numa situação normal com a qual estamos familiarizados (Walton, 2006, p. 83).

Assim, este raciocínio está fundado na ideia de que a verdade ou a razoabilidade das premissas e, posteriormente, da conclusão, não segue um padrão dedutivo ou indutivo, mas, antes, uma aceitação presumível, em determinadas circunstâncias, e sujeita a retratação, em caso de alteração dessas circunstâncias (Duschl, 2008a; Walton, 2006).

Para Walton (2006), um argumento é formado por uma razão ou conjunto de razões que sustentam ou criticam uma dada afirmação questionável ou aberta à dúvida. Como já foi referido, para o filósofo, um argumento deve ser apresentado sob a forma de um conjunto de premissas (razões) e de uma conclusão. Já o processo de conectar a apresentação de argumentos, através de uma cadeia de intervenções, que surgem sob a forma de diálogo, corresponde, segundo o autor, à argumentação: “O termo ‘argumentação’ denota este processo dinâmico de conectar argumentos conjuntamente, com algum propósito, durante um diálogo” (Walton, 2006, p. 1). O autor clarifica, ainda, a sua conceção de diálogo:

um tipo de conversa objetivamente direcionado, no qual dois intervenientes (no mínimo) participam por turnos. Em cada movimento uma parte responde ao movimento anterior, da outra parte. Assim, cada diálogo é uma sequência conexa de movimentos (atos discursivos) que têm um fluxo direcional. (…) Os diálogos não contêm somente argumentos. Eles podem incluir explicações, instruções sobre como fazer algo, etc. Mas, frequentemente, eles contêm argumentação (Walton, 2006, p. 2).

Os argumentos podem ser considerados segundo duas perspetivas: uma local e outra global (Walton, 2006). Na primeira, um argumento é constituído por um conjunto de premissas e uma conclusão; na segunda, um argumento corresponde a um processo de troca de turnos de fala numa situação de diálogo, que o autor designa de argumentação em cadeia, com a finalidade de resolver uma questão central. Esta perspetiva global de argumento e argumentação revela uma necessidade do autor de ultrapassar as visões monológicas características das teorias anteriores, propondo que a argumentação seja considerada “num contexto de intercâmbio de um diálogo interativo” (Breton, & Gauthier, 2001, p. 108).

A maioria dos argumentos que emerge destes processos dialógicos assume um carácter eminentemente presuntivo e revogável (Walton, & Reed, 2002). Sendo de natureza presuntiva, deverão existir razões a favor e outras, contra a conclusão. As formas de inferência destes argumentos constituem os esquemas argumentativos de Walton, que representam tipos de argumentação comuns no contexto jurídico e científico. Neste caso, podem ser usados para fundamentar hipóteses a partir de provas ou no raciocínio tipo causa-efeito (Ibraim, Mendonça, & Justi, 2013). Diversos destes raciocínios argumentativos de tipo presuntivo foram, durante muitos anos, classificados como falácias pelos autores mais clássicos da lógica formal, por os associarem à subjetividade (Ibraim, Mendonça, & Justi, 2013).

Às estruturas de inferência que constituem os esquemas argumentativos, Walton associou um conjunto de questões críticas, que têm como função avaliar argumentos particulares, na relação com o contexto de diálogo em que eles surgem (Nussbaum, Sinatra, & Owens, 2012; Walton, 2006; Walton, & Reed, 2002). A fim de se compreender um pouco melhor esta inter-relação entre esquema argumentativo e questões críticas, vamos exemplificar com uma descrição de uma situação apresentada por Walton e Reed (2002). Suponhamos que alguém (indivíduo ‘a’), perdido numa cidade, pretende saber onde se localiza a estação central dos transportes. Para tal, dirige-se a uma pessoa (indivíduo ‘b’), que encontra na mesma cidade, e questiona-a. Se o indivíduo ‘b’ responder, referindo a localização pretendida, que razões tem o indivíduo ‘a’ para crer que a localização fornecida é correta? Este argumento pode apresentar a seguinte estrutura geral:

(1) Premissa maior: O indivíduo ‘b’ está em posição de saber acerca de coisas sobre um assunto ‘S’ contendo a proposição ‘A’.

(2) Premissa menor: O indivíduo ‘b’ assegura que ‘A’ (no assunto ‘S’) é verdadeiro (ou falso).

(3) Conclusão: ‘A’ é verdadeiro (ou falso).

Segundo Walton e Reed (2002), se as premissas forem plausivelmente verdadeiras, então é provável que a conclusão também o seja. Contudo, há possibilidade de tal não se verificar pelo que sugerem três questões críticas que se aplicam a esquemas argumentativos deste tipo, que designam de ‘argumentos da posição ao conhecimento’ (arguments from position to know):

QC1: Está ‘b’ na posição de saber se ‘A’ é verdadeiro (ou falso)? QC2: É ‘b’ uma fonte respeitável (fiável, segura)?

QC3: ‘b’ declarou que ‘A’ é verdadeiro (ou falso)?

Se a resposta a uma ou mais destas questões críticas for afirmativa, isso faz aumentar a plausibilidade do argumento produzido. Contudo, se alguma delas for negativa, a conclusão do argumento é colocada em causa. Alguns autores como Blair (2012) têm criticado a falta de relação entre os esquemas argumentativos e as questões críticas, por considerar que não é compreensível o que motivou a sua elaboração e que critérios permitem afirmar se a lista de questões está, ou não, completa (Ibraim, Mendonça, & Justi, 2013).

A teoria dos argumentos presuntivos de Walton não tem sido muito utilizada em investigações no campo da educação em ciência, particularmente, no contexto europeu (Erduran, & Jiménez, Aleixandre, 2012). Porém, alguns estudos (Duschl, 2008; Gray, & Kang, 2014; Ibraim, Mendonça, & Justo, 2013), nos últimos anos, têm utilizado a categorização de Walton dos esquemas argumentativos, em que estes funcionam como complemento do PAT, enquanto ferramenta metodológica para analisar os argumentos (Erduran, 2008). Se, por um lado, o PAT permite o estudo da estrutura dos argumentos, por outro, os esquemas argumentativos contribuem para a análise do seu conteúdo. Os resultados desses estudos têm revelado as potencialidades do uso de esquemas argumentativos na investigação, uma vez que o raciocínio presuntivo reflete o que tipicamente ocorre na sala de aula em termos discursivos (Duschl, & Osborne, 2002).

B – A teoria pragma-dialética

A teoria pragma-dialética teve a sua origem nos anos 80, do seculo XX. Foi, inicialmente, proposta por dois académicos linguistas da Escola de Amesterdão – van Eemeren e Grootendorst – e é considerada como a mais precisa e completa de entre as várias teorias de argumentação propostas (Breton, & Gauthier, 2001). A teoria foi inicialmente apresentada no livro Speech act in argumentative discussion, de 1984 e, em 2004, foi alvo de uma sistematização do estado da arte, incluída na obra A systematic theory of argumentation, que serviu de base bibliográfica para esta síntese.

Na pragma-dialética encontramos pontos de contacto com a teoria de Walton, através do racionalismo crítico, em que a argumentação surge como processo de

justificação do conhecimento, e com as teses de Perelman e Olbrechts-Tyteca acerca da relevância da persuasão enquanto processo retórico de convencimento de um auditório (Jiménez-Aleixandre, & Erduran, 2008). A teoria argumentativa de van Eemeren e Grootendorst é designada por teoria pragma-dialética pois contém, por um lado, uma perspetiva pragmática que considera os processos de comunicação inerentes à argumentação e, por outro, pressupõe uma dimensão dialética em torno de diferenças de opinião, num intercâmbio racional metódico de atos de fala (Breton, & Gauthier, 2001).

Van Eemeren e Grootendorst (2004), definem argumentação como “uma atividade verbal, social e racional visando convencer um crítico racional acerca da aceitabilidade de um ponto de vista, apresentando uma constelação de proposições, que justificam ou refutam a proposição expressa no ponto de vista” (p. 1). Para os autores, a argumentação é uma atividade verbal, uma vez que ocorre através da utilização da linguagem; é uma atividade social, pois é dirigida a outras pessoas; é uma atividade racional, por se fundamentar em considerações intelectuais. Para além destas características, os referidos autores defendem, ainda, que no processo de argumentação há sempre um referente veiculado através de um determinado ponto de vista sobre um assunto que está em discussão. A finalidade da argumentação é convencer o ouvinte ou o leitor acerca da aceitabilidade de uma dada perspetiva. A constelação de proposições incluída na definição apresentada refere-se a uma ou mais expressões cuja função é a de justificar ou de refutar a posição expressa no ponto de vista. Um ponto de vista corresponde a um enunciado que expressa uma conceção materializada por uma tomada de posição dentro da disputa. Breton e Gauthier (2001) sintetizam estas ideias em torno da teoria, ao afirmarem que “A argumentação é um processo de resolver uma divergência de opiniões no quadro de uma discussão crítica” (p. 122).

Segundo a perspetiva de argumentação expressa, van Eemeren e Grootendorst rejeitam que as deliberações pessoais, internas, possam ser consideradas processos argumentativos. Assim, segundo os autores, a deliberação consigo próprio é somente um processo de pensamento reflexivo, não argumentativo, por não envolver as características de externalização e de socialização que caracterizam a argumentação. Contudo, não concordamos com esta perspetiva por considerarmos que as deliberações internas, também, exigem tomadas de decisão nas quais, frequentemente, está envolvida a análise e reflexão em torno de posições diferentes, pelo que podem ter um carácter

argumentativo. Esta posição é apoiada por autores como Jiménez-Aleixandre e Erduran (2008) e Garcia-Mila e Anderson (2008), que a designam como argumentação intrapsicológica.

E, no contexto desta teoria, o que entendem os autores, por argumento? As expressões verbais não são, por natureza, argumentos ou pontos de vista. Elas apenas se tornam argumentos no contexto próprio da discussão “onde cumprem uma função específica no processo de comunicação” (van Eemeren, & Grootendorst, 2004, p. 3). Assim, uma expressão oral ou escrita apenas se pode considerar um ponto de vista ou argumento se exprimir um posicionamento positivo ou negativo em relação a uma proposição. Um conjunto de argumentos que contribua para justificar ou refutar uma proposição constitui, segundo os autores, uma argumentação. Pode-se, desta forma, considerar que no contexto da pragma-dialética, um argumento é um enunciado em que o orador ou proponente procura defender o próprio ponto de vista e que se pode apresentar de formas distintas (pergunta, afirmação, ordem …), de acordo com a situação comunicativa.

A teoria pragma-dialética propõe a classificação de argumentos em três classes: analítica, dialética e retórica. Os argumentos analíticos estão fundamentados na lógica formal, em que há uma relação, indutiva ou dedutiva, de concordância entre as premissas e a conclusão, neles se podendo incluir implicações materiais, silogismos e falácias. Estes são os argumentos mais raros na prática do quotidiano. Os argumentos dialéticos, a nosso ver, aproximam-se dos argumentos plausíveis de Walton pois, segundo van Eemeren e Grotendoorst, são os que, seguindo uma lógica informal, surgem durante discussões ou debates que implicam raciocínio com premissas que presumivelmente serão verdadeiras. Por fim, os argumentos retóricos, de natureza oratória, são representados por técnicas discursivas que têm a finalidade de persuadir uma audiência. As provas têm um papel, particularmente, relevante nos dois primeiros tipos de argumentos referidos. Assim, são os mais adequados em processos de argumentação científica, ainda que todos eles sejam úteis em diferentes momentos do processo de construção do conhecimento científico (Duschl, 2008a). Tal como em relação à teoria de Walton, a pragma-dialética não tem sido uma ferramenta metodológica explorada, de forma sistemática, em estudos sobre argumentação científica em contexto de sala de aula, ainda que existam algumas

investigações que a ela tenham recorrido como a realizada por Bortoletto e Carvalho (2009).

Em síntese, para além das várias conceções em torno de argumentação e argumento que foram surgindo ao longo da segunda metade do século XX, parece-nos ser de destacar a tendência de dialogicidade que foi sendo vincada pelas teorias mais recentes. O PAT tem tido uma enorme repercussão nos estudos de argumentação no contexto de educação em ciência. As dificuldades da sua utilização prendem-se, essencialmente, com a aplicação de um enquadramento analítico que foi construído na proximidade de uma conceção monológica da argumentação (Plantin, 2005). Talvez por isso, por vezes, considera-se que a teoria de Toulmin não é uma teoria da argumentação mas sim uma teoria do argumento (como é, de resto, salientado no título da obra ‘Os usos do argumento’). A adoção de uma das teorias argumentativas descritas (ou de outras que não foram exploradas neste trabalho) como orientadora de um determinado estudo estará essencialmente relacionada com o contexto, as questões e os objetivos da investigação. Contudo, parece-nos que há uma tendência recente que leva à adoção de ferramentas metodológicas oriundas de várias correntes teóricas com a finalidade de colmatar as dificuldades encontradas no campo da investigação da argumentação na educação em ciência.