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3 ASPECTOS METODOLÓGICOS

3.1 A armadilha do objeto pré-construído

O desafio metodológico da pesquisa é buscar uma objetivação objetiva frente a um objeto pelo qual sou ao mesmo tempo um produto do universo pesquisado trazendo comigo as possíveis pré-noções e adesões inconscientes acerca do objeto em questão. Nesse sentido, tecer um diálogo com Bourdieu se fez mais que necessário, por ter em suas pesquisas se colocado muitas vezes como um produto do universo pesquisado, pois, para ele, entender o objeto de estudo era, concomitantemente, conhecer a si próprio, no sentido que sua trajetória de vida se confundiu com alguns de seus objetos de estudo.

O sociólogo francês criticava o habitus acadêmico das pesquisas prontas e acabadas, em geral, focadas mais naquilo que são os resultados da pesquisa do que na importância do processo. Como ele dizia: “o homo academicus gosta do acabado” (BOURDIEU, 2011, p. 19). Defendia que o pesquisador deve expor suas dificuldades, hesitações e empecilhos que surgem ao longo do processo, retratando como a pesquisa se realizou e quais os métodos utilizados. Na construção do objeto do conhecimento, parte importante da produção científica, é preciso estar atento aos por menores dos procedimentos, trata-se para ele de um “fazer pesquisa” como um ofício que pode ser aprendido e ensinado, um trabalho muito mais prático do que teórico.

Bourdieu (2001) alerta do perigo de cairmos na armadilha do que ele chama de “objeto pré-construído”8

na medida em que há um interesse do pesquisador pelo objeto, sem conhecer as motivações para tal interesse. Segundo ele “a força do pré-construído está em que, achando-se inscrito ao mesmo tempo nas coisas e nos cérebros, ele se apresenta com as aparências da evidência, que passa despercebida porque é perfeitamente natural” (BOURDIEU, 2001, p. 49). Portanto, é preciso ter uma verdadeira conversão no olhar e, porque não dizer, do ensino da pesquisa em sociologia.

Seguindo os processos do trabalho de pesquisa, ou seja, o saber-fazer apresentado por Bourdieu (2011), o pesquisador precisa pensar de forma relacional, por exemplo, em relação à teoria e ao método. Para ele, as opções técnicas mais empíricas são inseparáveis das opções mais teóricas de construção do objeto (BOURDIEU, 2011). Le nos alerta a não tecer condenações metodológicas a uma ou outra técnica de pesquisa, no sentido que podemos combinar técnicas diferentes, relacioná-las e fazê-las coexistir, numa crítica aberta ao monoteísmo metodológico. Segundo o sociólogo, não podemos confundir rigidez, que é o contrário da inteligência e da invenção, com o rigor metodológico, que tem relação com uma extrema vigilância de utilização das técnicas e sua adequação ao problema proposto. Outro pensar relacional, segundo ele, está na percepção do objeto dentro de seu contexto e que “o objeto em questão não está isolado de um conjunto de relações de que retira o essencial das suas propriedades” (BOURDIEU, 2011, p. 27).

Em sua pedagogia de pesquisa, para fugir do que ele denominava de “ilusão da compreensão imediata” (BOURDIEU, 2011, p. 45), Bourdieu se manteve exigente enquanto sociólogo aliando a observação dos fenômenos sociais à reflexão sobre a observação desses fenômenos, no sentido de uma “objetivação participante”, segundo ele, o exercício mais difícil de investigação, porque requer ruptura com as aderências mais profundas que o pesquisador possa ter, sendo que, muitas delas, encontram-se na base do próprio interesse pelo objeto. Nesse sentido, o pesquisador não pode chegar ao objeto com uma camisa de força teórica movida pelos seus interesses e pré-noções, deixando de perceber, porventura, peculiaridades do objeto que podem demandar novas abordagens e técnicas metodológicas. Trata-se, segundo Bourdieu (2011), do exercício mais profundo de uma sociologia reflexiva e da própria configuração da sociologia enquanto profissão.

8 Bourdieu afirma que construir um objeto científico é, antes de tudo, romper com o senso comum. “O pré-construído encontra-se em toda parte. O sociólogo está literalmente cercado por ele, como o está qualquer pessoa” (BOURDIEU, 2011, p. 34).

No que tange à pesquisa, o desafio metodológico frente ao objeto encontra-se justamente nesse trabalho de objetivação, pois o fato do pesquisador ser um egresso do movimento faz com que seja necessário romper com categorias socialmente constituídas da percepção sobre o objeto, que podem estar inconscientemente na base de meu interesse pela pesquisa. Minha relação com o objeto deve ser objetiva, no sentido de se estabelecer condições mínimas de ruptura com modelos prontos para que não incorra uma visão parcial e reducionista com ares de ciência. Bourdieu (2011, p. 58) falará em objetivação participante, para ele o cume da arte sociológica:

É preciso, de certo modo, ter-se renunciado à tentação de se servir da ciência para intervir no objeto, para se estar em estado de operar uma objetivação que não seja a simples visão redutora e parcial que se pode ter, no interior do jogo, de outro jogador, mas sim a visão global que se tem de um jogo passível de ser apreendido como tal porque se saiu dele.

A tarefa de objetivar-se participantemente estabelece tanto uma relação do sujeito com seu objeto, bem como do sujeito com seu eu social e individual, pois ao inserir-se no universo social, o intelectual se qualifica à compreensão de si mesmo, ao mesmo tempo em que busca objetivar o lugar ocupado por si próprio nesse espaço social.

Para Bourdieu (2011), o grande risco que corre o pesquisador de cair na armadilha das pré-noções é não conhecer sua verdadeira motivação de interesse acerca do objeto que estuda. Nesse sentido, a relação do sociólogo com o seu objeto deve ser objetiva, consciente de suas motivações. Reconhecendo-me como produto do universo pesquisado, acredito que meu interesse em pesquisar a rede de associações do PRECE decorre de algumas motivações. Minha trajetória como estudante universitário esteve relacionado a momentos de inflexão do PRECE. Primeiramente, o fato de ter participado, ainda como estudante secundarista do então projeto educacional coração de estudante, na fase de ampliação e replicação da experiência do PRECE para outras comunidades; e, à posteriori, já como universitário, ter tido a experiência de retornar à comunidade para desenvolver projetos comunitários de apoio à escola pública e na área de controle social e governança.

Na fase de politização do movimento9, meu envolvimento com projetos na área de controle social e governança ocorreu concomitantemente a meus estudos na graduação em ciências sociais. Minha inserção no campo universitário e meu contato com um cabedal teórico sobre a teoria sociológica despertou àquela época meu interesse em pesquisar a rede

9 Fase de politização do PRECE: iniciada no ano de 2006, demarca uma mudança significativa na

forma de organização do movimento, abrindo espaço para o PRECE rever o seu papel enquanto apêndice do sistema escolar para iniciar um movimento em prol da defesa de uma escola pública de qualidade e de políticas públicas educacionais (BARBOSA, 2016).

de relações imbricadas no PRECE no sentido de um capital social comunitário10. Ter desenvolvido uma pesquisa monográfica sobre a experiência dessas entidades associativas do PRECE como foco de constituição de capital social em Pentecoste decorreu de minha ligação com o objeto de estudo. Após ter concluído o curso de bacharelado em ciências sociais, fui paulatinamente me envolvendo com projetos de educação voltados à aprendizagem cooperativa em sala de aula e me desliguei da associação estudantil do PRECE a qual fazia parte. Atualmente, sou professor de sociologia e filosofia na EEEP Alan Pinho Tabosa, em Pentecoste.

Meu retorno à universidade como estudante de licenciatura (2014) e, à posteriori, meu ingresso na pós-graduação em sociologia (2016.1), estimularam-me a retomar minhas pesquisas sobre capital social numa perspectiva mais ligada à participação política. Num contexto de descrédito com a política e insuficiente participação da juventude em espaços democráticos participativos, a ideia de que o capital social possa vir a induzir a participação política me estimulou a realizar uma pesquisa com egressos do PRECE. Minha motivação maior decorreu de avaliar se uma experiência de socialização educativa e política gera empoderamento cidadão e estimula o potencial de capital social emancipatório e, consequentemente, influencia positivamente os níveis de participação política de egressos da referida experiência.

No que tange à pesquisa, nossa intenção foi buscar o exercício de uma objetivação participante frente ao objeto, preservando uma postura de flexibilidade no decorrer da pesquisa, estando disposto a rupturas caso surja a necessidade de uma abertura para novas hipóteses, sem absolutamente fugir do rigor científico, com o devido esforço metodológico de dar mais atenção ao processo da pesquisa, sem desconsiderar novas abordagens e técnicas metodológicas por conta de um determinante interesse prévio. Foi nesse contexto que o exercício da objetivação participante possibilitou determinadas rupturas e nos fez refletir, concomitantemente, sobre a relação pesquisador-objeto e os limites da própria objetivação objetiva.