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A ARQUITETURA INSTITUCIONAL PARA TRATAR AS ABORDAGENS

CAPÍTULO 3. AS REGRAS DO JOGO E A ARQUITETURA INSTITUCIONAL

3.2. A ARQUITETURA INSTITUCIONAL PARA TRATAR AS ABORDAGENS

Nos trabalhos consultados29, as abordagens policiais com resultado morte não apareceram como objeto autônomo de apreciação da Assembleia Nacional Constituinte de 1987, tampouco das Propostas de Emenda à Constituição que foram incorporadas após a promulgação do texto constitucional. O mais próximo que o tema chegou foi relacionado à “segurança pública” e à “violência policial”, através de diferentes proponentes. O tema mais amplo da (i) “segurança pública” inserido pela primeira vez numa carta constitucional brasileira, havia ficado a cargo da Subcomissão de “Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança (Subcomissão IVb), ligada à Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições (IV)” a qual, segundo Fontoura, Rivero e Rodrigues (2009) constituíra a primeira vitória das Forças Armadas no processo constituinte, já que em princípio o tema da segurança pública deveria caber à Comissão de Organização dos Poderes e Sistema de Governo. Os referidos autores seguem explorando o tema e indicam, através dos relatos de Hélio

29 As buscas referentes ao tema foram realizadas entre janeiro e fevereiro de 2019, na plataforma de pesquisa:

scholar.google.com.br, através das palavras-chave “abordagens policiais com resultado morte e Assembleia Nacional constituinte”, “violência policial e Assembleia Nacional constituinte”, “segurança pública e Assembleia Nacional constituinte”, “letalidade policial e Assembleia Nacional constituinte”, “homicídios praticados por policiais e Assembleia Nacional constituinte”.

53 Contreiras (1998), que houve uma proposta de unificação das polícias como resposta à excessiva violência decorrente do modelo de policiamento até então adotada pelo Brasil,

o coronel do Exército Sebastião Ferreira Chaves afirma ter ido conversar com o deputado Ulysses Guimarães, presidente da ANC, porque percebera, quando era secretário de segurança pública de São Paulo (SP), que o desenho das polícias gerava muita violência dos dois lados: Polícia Militar muito violenta nas ruas e Polícia Civil também violenta nas delegacias. A resposta que ele teria ouvido é que já havia acordo com o general Leônidas, Ministro do Exército, para que não se alterasse o modelo de Polícias Militares/Polícias Civis e das primeiras como forças auxiliares do Exército (CONTREIRAS, 1998 apud FONTOURA, RIVERO E RODRIGUES, 2009, p. 140),

concluindo que os movimentos e articulações contra majoritários encontravam forte resistência não só do lobby das Forças Armadas, mas também dos policiais militares e dos delegados de polícia, “estas três corporações atuaram de maneira muito ativa na Constituinte no sentido de preservarem suas atribuições e garantias” (FONTOURA, RIVERO E RODRIGUES, 2009, p. 141).

O tema mais restrito da (ii) violência policial apareceu com bastante ênfase nas propostas oferecidas por pessoas e organizações (institucionalizadas ou não) do Movimento Negro Unificado (MNU), importante ator do processo de elaboração da Constituição de 1988. A participação do MNU na defesa de direitos de civis, econômicos e culturais da população negra durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte se traduziu em inúmeras propostas, conforme evidenciado na pesquisa de Natália Santos (2015). A referida autora afirma que, em março de 1987, uma proposta do Conselho Estadual da Condição Feminina do Governo do Estado de São Paulo/Comissão para Assuntos da Mulher Negra foi enviada na forma de sugestão à ANC. Segundo Santos (2015), o “Dossiê Mulheres Negras”, documento no qual continham as sugestões, revelou diversas dimensões do racismo, dentre essas, aquelas que agiam “no controle dos corpos negros pelo Estado por meio de mecanismos e políticas de extermínio como o controle de natalidade e violência policial” (SANTOS, 2015, p. 143), para o enfrentamento do problema a sugestão consistia na unificação das Policias Civil e Militar, além da implementação de cursos de reciclagem e alteração dos critérios de seleção para admissão nas referidas carreiras, acrescentariam também, uma alteração na atribuição para julgamento de policiais que cometessem crimes relativos a abuso do poder, os quais passariam a ser julgados pela justiça comum. Os trabalhos na Assembleia Nacional Constituinte acabaram por reforçar a manutenção do arranjo institucional desenhado no período ditatorial, apesar das propostas apresentadas (GUERRA; MACHADO FILHO, 2018).

Assim, constituição federal de 1988 não trata diretamente do tema, isto é, não há um título, um capítulo ou uma seção específicos que se reporte às abordagens policiais com

54 resultado morte. Mas alguns elementos presentes no texto constitucional poderiam nortear a elaboração e a interpretação de normas infraconstitucionais e organizam – ainda que em parte – algumas instituições. Neste item, identificam-se os principais mecanismos e instrumentos constitucionais, além das instituições, utilizados pelo Brasil para tratar as abordagens policiais com resultado morte.

O sistema de governo adotado pelo Brasil em sua constituição e a forma como as instituições políticas foram desenhadas impactaram na arquitetura institucional para tratar as abordagens policiais com resultado morte. Nesse contexto, o presidencialismo, o federalismo e a separação de poderes são fundamentais para a compreensão de algumas das principais escolhas institucionais realizadas pelo Brasil. A separação de poderes está presente no artigo 2º da Constituição Federal, sob a fórmula: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.

Dentro deste contexto institucional de separação, “harmonia” e “independência” de poderes que a constituição determina que a segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, sendo exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através da polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal, polícias civis e das polícias militares e corpos de bombeiros militares, determinando explicitamente a subordinação das duas últimas aos Governadores dos Estados e do Distrito Federal, conforme art. 144, da constituição federal.

Em seu art. 144, §4º e §5º, a constituição determina as atribuições das polícias estaduais como segue: às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais30, com exceção das infrações de natureza militar – as quais são de competência da Justiça Militar, a quem compete processar e julgar os crimes militares definidos no Código Penal Militar. E às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública.

Dessa forma, as polícias civis têm autonomia para apurar as mortes decorrentes de intervenção policial, porque, além dessa disposição constitucional, outras normas foram criadas para regulamentar este dever institucional – conforme veremos na próxima seção.

30 Com a promulgação da Lei 9299/1996, os crimes dolosos contra a vida cometidos contra civil, quando praticados

por policiais militares, serão da competência da justiça comum, julgados pelo tribunal do Júri, diferentemente dos crimes dolosos contra a vida praticados por militares das forças armadas, que serão julgados pela Justiça Militar da União, em condições específicas, conforme a recém promulgada Lei nº 13.491, de 13 de outubro de 2017, a qual alterou o Decreto-Lei no 1.001, de 21 de outubro de 1969 - Código Penal Militar e abriu novos campos de disputa institucionais, conferir exemplo no link: https://www.gazetaonline.com.br/noticias/brasil/2018/05/o-novo- foro-dos-militares-ja-tirou-mil-acoes-da-justica-comum-1014130132.html

55 Esta arquitetura institucional decorre da forma como foram desenhadas as principais instituições do Estado democrático de direito brasileiro nos processos de responsabilização. Mas, segundo Arthur Trindade Costa e Renato Sérgio de Lima (2014) este desenho não consegue encarar os principais problemas no que concerne à segurança pública em geral, e às polícias, especificamente.

Para os autores, “os ruídos no pacto federativo e no modelo bipartido de organização policial (civil e militar), herdados de períodos anteriores, não foram enfrentados pela Constituição Federal de 1988 e, ao contrário, novas situações de fricção foram criadas (...)” (COSTA; LIMA, 2014, p. 398). Tendo em vista os objetivos do presente texto, interessa observar como este desenho, ao lado de outros elementos, contribui para o atual tratamento das abordagens policiais com resultado morte.

Ao longo do texto constitucional, algumas atribuições e princípios permitem uma organização normativo-institucional mínima, como por exemplo, a já citada atribuição das polícias, mas ainda podemos citar muitas outras.

a. O direito de acesso a informações relativas à administração pública31 estabelece que os cidadãos brasileiros têm direito de acessar informações públicas, o que inclui aquelas concernentes à gestão e funcionamento da administração pública. Segundo Paula Lígia Martins (2011), o referido princípio estrutura-se em alguns parâmetros, tais como, máxima divulgação, obrigação de publicar, âmbito limitado de exceções, promoção de um governo aberto, procedimentos que facilitem o acesso, proteção de denunciantes, dentre outros. Quando se trata de abordagens policiais com resultado morte, é importante pensar na publicidade dos procedimentos de responsabilização, ainda que em âmbito administrativo, na divulgação de dados relativos a tais ocorrências, enfim, numa administração pública que não obstaculize o acesso à informação do cidadão comum e de pesquisadores e organizações não governamentais.

b. O direito de defesa dos réus, inclusive em processos administrativos32 para que os mesmos possam se defender ao longo do processo civil, criminal e administrativo – inclusive em suas especificidades: processo disciplinar, processo administrativo disciplinar, sindicância, inquéritos.

31 Art. 5º, XIV e art. 37, da Constituição Federal 32 Art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal.

56 c. A organização e atribuições das instituições que compõem o sistema de justiça33

estão previstos na constituição federal. Assim, a estrutura dos órgãos jurisdicionais com competência para julgar os policiais envolvidos em abordagens com resultado morte estão previamente delimitados na Carta Magna, o que inclui a determinação das autoridades públicas investidas para cumprir a função de apurar, investigar, denunciar, condenar, absolver, prender e acompanhar a execução penal.

d. O devido processo legal34 determina que o direito penal e processual penal respeitem todas as formalidades previstas no ordenamento jurídico para que haja cerceamento da liberdade do indivíduo, assim como, na hipótese de alguém ser privado de seus bens. Segundo Paulo Rangel (2013), a tramitação regular e legal de um processo é garantia de todo e qualquer cidadão. Ao analisar o referido princípio, Eugênio Pacelli (2012) associa a esse outros princípios: o juiz natural, o direito ao silêncio e a não incriminação, o contraditório, a ampla defesa, o estado de inocência, a inadmissibilidade de provas obtidas de forma ilícita. Quando tem- se em mente os processos de responsabilização de policiais que se envolveram em abordagens que terminaram em morte de civil, estes princípios funcionam como proteção não só do réu, mas do próprio Estado democrático de direito.

e. O reconhecimento da instituição do júri35 como um tribunal especial para julgamento de crimes dolosos contra a vida. Paulo Rangel (2005) o define como “direito e garantia fundamental do cidadão-acusado” (RANGEL, 2005, p. 131). Assim, apesar de não haver na Constituição Federal uma remissão direta às mortes decorrentes de ações policiais − ou a outras nomenclaturas correlatas−, é possível afirmar que existe a previsão de uma estrutura jurídica desenhada para propor uma organização da polícia, a previsão de processos de responsabilização, de instâncias de julgamento, com princípios e mecanismos de defesa de réus no desenvolvimento de processos civis, criminais e administrativos.

3.3.NORMAS INFRACONSTITUCIONAIS QUE DESENHAM CONDUTAS, PROCESSOS