• Nenhum resultado encontrado

O estabelecimento da responsabilidade administrativo-disciplinar

CAPÍTULO 3. AS REGRAS DO JOGO E A ARQUITETURA INSTITUCIONAL

3.3. NORMAS INFRACONSTITUCIONAIS QUE DESENHAM CONDUTAS,

3.3.1. Os instrumentos normativos que distribuem papéis e determinam

3.3.1.3. O estabelecimento da responsabilidade administrativo-disciplinar

Na esfera administrativa, as mortes decorrentes de intervenção policial também podem repercutir. Nesse caso, a responsabilização administrativa será prevalentemente disciplinar46 e suas características decorrem do pacto federativo adotado pelo Brasil, já discutido na seção 3.2 desse capítulo. Por isso, apresentam-se as normas que se restringem à Administração Pública do estado de São Paulo, especialmente aquelas afetas à Polícia Militar de São Paulo47.

A análise do conjunto normativo circunscrito nesse âmbito permite observar que não há uma descrição de uma conduta “típica” compatível com a abordagem policial com resultado morte. Dessa forma, uma morte decorrente de intervenção policial pode ser encarada como conduta suscetível de gerar uma “ofensa aos valores” e deveres” da instituição. O Regulamento Disciplinar da Instituição (RDPM), instituído pela Lei Complementar nº 893, de 09 de março de 2001, ao consagrar a tríplice responsabilidade determina que

Artigo 11 - A ofensa aos valores e aos deveres vulnera a disciplina policial- militar, constituindo infração administrativa, penal ou civil, isolada ou cumulativamente.

§ 1º - O militar do Estado é responsável pelas decisões ou atos que praticar, inclusive nas missões expressamente determinadas, bem como pela não- observância ou falta de exação no cumprimento de seus deveres.

§ 2º - O superior hierárquico responderá solidariamente, na esfera administrativa disciplinar, incorrendo nas mesmas sanções da transgressão praticada por seu subordinado quando:

1 - presenciar o cometimento da transgressão deixando de atuar para fazê-la cessar imediatamente;

2 - concorrer diretamente, por ação ou omissão, para o cometimento da transgressão, mesmo não estando presente no local do ato.

§ 3º - A violação da disciplina policial-militar será tão mais grave quanto mais elevado for o grau hierárquico de quem a cometer (SÃO PAULO, 2001).

44 Art. 186, do Código Civil: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar

direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.

45 Art. 188, do Código Civil: “Não constituem atos ilícitos: I - os praticados em legítima defesa ou no exercício

regular de um direito reconhecido; II - a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente. Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo.

46 Conforme se observa da leitura do art. 12, da LC 893/2001: “Transgressão disciplinar é a infração administrativa

caracterizada pela violação dos deveres policiais-militares, cominando ao infrator as sanções previstas neste Regulamento”.

47 De acordo com o art. 138 da Constituição do Estado de São Paulo: “São servidores públicos militares

63 Entre os valores48 a que o referido dispositivo se refere taxativamente estão a “dignidade humana” e a “honestidade” no mesmo patamar da “hierarquia”, da “disciplina”, do “civismo” e da “coragem”, signos que permitem uma ampla elasticidade interpretativa. Já os deveres, elencados em um total de trinta e cinco, e, apesar de manterem conteúdos com um alto teor de abstração, sua formulação apresenta características mais concretas, a exemplo, dos deveres de

(...)XXIV - exercer a profissão sem discriminações ou restrições de ordem religiosa, política, racial ou de condição social; XXV - atuar com prudência nas ocorrências policiais, evitando exacerbá-las; XXVI - respeitar a integridade física, moral e psíquica da pessoa do preso ou de quem seja objeto de incriminação; XXVII - observar as normas de boa educação e ser discreto nas atitudes, maneiras e na linguagem escrita ou falada; XXVIII - não solicitar ou provocar publicidade visando a própria promoção pessoal; XXIX - observar os direitos e garantias fundamentais, agindo com isenção, eqüidade e absoluto respeito pelo ser humano, não usando sua condição de autoridade pública para a prática de arbitrariedade (...)(SÃO PAULO, 2001).

O mesmo diploma legal determina, ainda, uma lista de cento e trinta e duas transgressões disciplinares, graduadas entre leves, médias e graves. Dentre essas, algumas tem maior correspondência com as abordagens policiais com resultado morte, a exemplo de “desconsiderar os direitos constitucionais da pessoa no ato da prisão”, “usar de força desnecessária no atendimento de ocorrência ou no ato de efetuar prisão”, “dar, por escrito ou verbalmente, ordem manifestamente ilegal que possa acarretar responsabilidade ao subordinado, ainda que não chegue a ser cumprida”; ”deixar de assumir a responsabilidade de seus atos ou pelos praticados por subordinados que agirem em cumprimento de sua ordem”, “tendo conhecimento de transgressão disciplinar, deixar de apurá-la”, “omitir, em boletim de ocorrência, relatório ou qualquer documento, dados indispensáveis ao esclarecimento dos fatos”, “disparar arma por imprudência, negligência, imperícia, ou desnecessariamente” e “não obedecer às regras básicas de segurança ou não ter cautela na guarda de arma própria ou sob sua responsabilidade”, todas classificadas como graves pelo regulamento disciplinar49.

Assim, apesar da ausência de uma descrição específica e inequívoca da conduta policial que resulte em morte, em âmbito administrativo-disciplinar, há uma riqueza de condutas que acabam abrangendo a ação policial que resultou em morte, manifestando certo controle da Administração Pública sobre o policial militar. Conforme será evidenciado mais à

48 Conforme art. 7º, da LC 893/2001: “os valores fundamentais, determinantes da moral policial-militar, são os

seguintes: I - o patriotismo; II - o civismo; III - a hierarquia; IV - a disciplina; V - o profissionalismo; VI - a lealdade; VII - a constância; VIII - a verdade real; IX - a honra; X - a dignidade humana; XI - a honestidade; XII - a coragem”.

49 Condutas listadas expressamente no art. 13, parágrafo único, da lei complementar n. 893, de 9 de março de

64 frente, na esfera administrativa-disciplinar também há normas de processo e de sanção correspondentes às condutas anteriormente referidas.

Portanto, conforme descrito nos itens acima, as mortes decorrentes de intervenções policiais têm repercussão em diferentes áreas do direito – administrativa, criminal e civil –, cada uma com organização normativa própria, disciplinando a atuação de atores e estruturando instituições-chave.