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CAPÍTULO 1. ESTRATÉGIA METODOLÓGICA

1.3. OS ELEMENTOS SUBJETIVOS DA PESQUISA

Explicitar os elementos subjetivos16 da presente pesquisa significa deixar claro para os leitores e leitoras o conjunto de fatores constitutivos da própria construção do objeto da pesquisa e das estratégias metodológicas, notadamente, aqueles componentes que permitiram a configuração de um olhar específico da pesquisadora sobre a atuação da justiça frente à letalidade das ações policiais.

Obviamente, a construção desse olhar passou necessariamente por uma trajetória pessoal e acadêmica, iniciada na Graduação, junto ao Grupo de Pesquisa em Criminologia da Universidade do Estado da Bahia, e, posteriormente, com a participação no Programa de Iniciação Científica da FGV DIREITO SP, onde já estava pautado o estudo da problemática do homicídio e da atuação policial. Soma-se a isso, a breve experiência, como estagiária de Direito, na Defensoria Pública do Estado da Bahia, especificamente, na Especializada Criminal e de Execução Penal, e no Instituto Pedra de Raio, organização não governamental focada em ações

15 O resultado está exposto no item “vi” da subseção 5.5.3 do capítulo 5 e os quadros decorrentes da elaboração

da referida hipótese encontra-se na seção destinada aos anexos.

16 Os elementos subjetivos da pesquisa são constitutivos dessa e expressam, assim como a identidade do(a)

31 e projetos ligados às relações raciais, proteção de direitos humanos e mediação de conflitos. No mestrado, a aproximação com as pesquisas do Núcleo de Estudos sobre o Crime e a Pena a respeito dos processos de responsabilização relativos ao Massacre do Carandiru também contribuiu para um olhar refinado sobre o tema.

A construção do objeto da pesquisa ainda foi beneficiada pelas experiências pessoais de quem já sentiu (e ainda sente) pessoalmente os efeitos do racismo e da violência policial, já que, conforme lembra Vilma Reis, “enquanto um homem negro continuar sendo humilhado numa blitz da polícia, todas e todos nós estaremos na linha de tiro”17. Nesse sentido, vivenciar algumas atividades políticas na condição de mulher negra, militante contra o racismo anti- negro, foi fundamental para ampliar o horizonte de possibilidades na pesquisa e na vida, ao lançar um olhar sobre uma realidade que demanda mudanças estruturais.

Nesse sentido, o fato de ocupar o lugar de escuta privilegiada em espaços muito especiais se mostrou uma importante ferramenta de aprendizagem. Assim, entre eles, destacam- se algumas experiências marcantes: a participação na histórica audiência pública da OAB/BA, intitulada “A ação da Rondesp no Cabula: limites para o uso da força da Polícia Militar”, que reuniu, vinte dias após a Chacina do Cabula, lideranças da comunidade negra soteropolitana, políticos, policiais e representantes de diversos órgãos do sistema de justiça baiano; a vivência da III Marcha Internacional Contra o Genocídio do Povo Negro, orquestrada pela Campanha Reaja ou será Morto Reaja ou será Morta, a qual não deixou que a morte daqueles jovens caíssem em esquecimento, ambas em Salvador, no ano de 2015; a experiência da Marcha que lembrou os 24 anos do Massacre do Carandiru, em 2016, na cidade de São Paulo; a participação na Conferência Internacional “As fronteiras raciais do genocídio”, organizado pela Iniciativa Negra por Uma Nova Política sobre Drogas e no workshop “Sistema De Justiça E Racismo Institucional” gestado pela Criola, o Fórum Justiça e o IBCCRIM, ambos na cidade de São Paulo. Enfim, vale destacar a organização ativa, junto ao GPCRIM, na jornada de estudos criminológicos dedicada ao tema “Criminologia e Racismo”, contando com a participação de acadêmicos e lideranças comunitárias.

Outro fator que contribuiu para a construção do objeto da presente pesquisa foi a motivação política e acadêmica de tentar compreender uma das muitas faces que o extermínio da população negra – já denunciado nas narrativas de Lélia Gonzalez (1983), Abdias do Nascimento (1978), Sueli Carneiro (2005), Ana Flauzina (2006), Felipe Freitas (2016), Apoena

17Ouvidora-geral da Defensoria Pública do Estado da Bahia em entrevista ao Brasil de Fato, datada de 24 de abril

32 Ferreira (2017) e de tantos outros e outras – manifesta. A escassez de estudos empíricos descritivos do funcionamento do sistema de justiça em casos de abordagens policiais com resultado morte serviu também de chamariz.

Por óbvio que a escolha do tema e do objeto de pesquisa já constituíam um desafio em si, mas a opção de percorrer um caminho em que fossem valorizadas as “maneiras de pensar” dos sujeitos da pesquisa com os quais se fez contato, elevou o grau de dificuldade. Dito de outra maneira, eleger a perspectiva compreensiva como matriz epistemológica implicou, necessariamente, em um reposicionamento da pesquisadora frente à realidade observável. A consequência imediata dessa última escolha foi a de calcular a imprescindível e sutil fissura entre a militante, identidade que a pesquisadora também abraça, que “sabe a verdade, reage às opressões e quer mudar o mundo”, por um lado, e a pesquisadora, por outro, que elabora perguntas a respeito dessa mesma realidade, busca caminhos para interagir com os sujeitos da pesquisa com a necessária empatia, para minerar dados e construir processos analíticos. De um ponto de vista prático, isso significou “contar até dez” quando um advogado de policial se recusou a conceder uma entrevista sob o argumento de que era “contra esse povo que defende bandido e não liga pra vida do policial”; quando uma funcionária do fórum que, durante uma entrevista informal, repetia a pergunta ouvida reproduzindo ironicamente o sotaque que escutou ou, ainda, daquela que decidiu emitir sua opinião a respeito dos cabelos da pesquisadora; das horas perdidas esperando um promotor que em cima da hora ajustada, desmarcou a entrevista; do juiz branco que em meio à entrevista relatava que o policial réu não lhe parecia bandido porque “era imberbe, parecia um menino”; ou de quando estava diante do promotor que ficou conhecido nos bastidores como o “braço jurídico da polícia que mata” ou o “parceiro da PM”. Entre muitos outros contáveis, esse último fato, possível pelas emoções silenciadas da pesquisadora, contribuiu emblematicamente para a organização dos resultados parciais da pesquisa em torno das incursões em sessões do tribunal do júri e as possíveis contribuições para a pesquisa empírica em Direito (FERREIRA, 2018).

A escolha da vertente “pesquisa compreensiva” – numa identidade necessariamente múltipla e complexa - requereu ainda um trabalho árduo no momento da escrita/divulgação dos resultados. O objetivo era valorizar a resposta obtida à pergunta que buscava saber “como o Estado responsabiliza policiais que matam em serviço?”. Isto implicou na rearticulação dos níveis de observação, isto é, a pesquisadora observar como a justiça observa a polícia que mata, que o faz através da observação de muitos outros atores: delegada, perito, testemunha, etc. Se tratou, portanto, de produzir a condição reconhecida de observadora.

33 Por fim, cabe frisar que o objetivo desse subitem foi menos o de cristalizar “um lugar de fala” e mais o de permitir às/aos leitoras/res notar os “trânsitos” operados pela pesquisadora, e como estes contribuíram para (re)desenhar a pesquisa, processo que evidencia que o conhecimento produzido nesse percurso não é universal (ALCOFF, 2016). Estes incluem, em tempo, a saída de Vila Canária, periferia de Salvador, o ingresso numa universidade pública pelo sistema de cotas, a entrada no mestrado numa instituição privada de São Paulo – com concessão de uma bolsa –, um estágio na Europa – com apoio de uma agência de fomento à pesquisa... – e o fundamental retorno à Vila Canária.

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