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BARREIRAS À PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO A RESPEITO DO TEMA

CAPÍTULO 2. O QUE APONTA A REVISÃO DE LITERATURA

2.1. BARREIRAS À PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO A RESPEITO DO TEMA

As abordagens policiais com resultado morte têm sido objeto de estudos qualitativos e quantitativos19. Observou-se que desde a década de 1990 há uma predominância de estudos prevalentemente qualitativos. Contudo, a produção de dados quantitativos tem crescido consideravelmente desde a última década em função dos mecanismos jurídicos criados, a exemplo da Lei de acesso à informação, em 2011, da pressão da sociedade civil organizada, notadamente dos movimentos sociais, a exemplo da Campanha Reaja ou Será Morto, Reaja ou Será Morta20 e Movimento Mães de Maio21, de 2006, assim como, da atuação mais incisiva de

19 Estes últimos são definidos por Lisa Webley como aqueles que se dedicam a examinar fatos observáveis,

mensuráveis e independentes (WEBLEY, 2010), consideram os elementos que podem ser quantificáveis e traduzidos em números, através do apelo a recursos estatísticos, como por exemplo análises de regressão, percentuais, desvio-padrão, cálculos de coeficiente de correlação. Já os primeiros são aqueles que “se ancora[m] na dialética das representações, ações e interpretações dos atores sociais em relação ao seu meio” (DESLAURIERS; KÉRISIT, 2010, p. 135). As pesquisas qualitativas, portanto, não dependem de quantificação estatística, mas da captura e categorização dos fenômenos sociais e seus significados (WEBLEY, 2010).

20 Criada em 2005, Campanha Reaja ou Será Mort@ é uma articulação de movimentos e comunidades de negros

e negras do estado da Bahia que lutam contra a brutalidade policial, pela causa antiprisional e pela reparação aos familiares de vítimas do Estado. Para saber mais: http://www.reajaouseramortx.com/p/quem-somos.html. Acesso em 20 jul 2018.

21 Organização criada após os crimes de maio de 2006 em São Paulo, período no qual 493 pessoas foram

37 organizações não-governamentais no âmbito da produção de dados relativos ao controle de armas e dos homicídios em geral e da letalidade policial, a exemplo da Anistia Internacional22, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública23 e do Instituto Sou da Paz24.

Mas cabe frisar que os estudos sobre o tema, tanto quantitativos quanto qualitativos, enfrentam dificuldades similares no que diz respeito à coleta, produção e divulgação de dados pela Administração Pública a respeito de abordagens policiais com resultado morte, dentro do contexto de um (un)rule of law. Segundo afirmam Samira Bueno e Renato Sérgio de Lima,

Inexiste no Brasil uma tradição na sistematização de informações sobre violência policial.

As instituições pioneiras neste tipo de mapeamento foram as organizações da sociedade civil em uma lógica “denuncista” das violações de direitos humanos. No âmbito federal, não existem ações periódicas que induzam a divulgação desses dados, tampouco pesquisas de vitimização que dimensionem o fenômeno. As corregedorias de polícia são responsáveis pelo registro e a apuração dos casos em que há violência ou abuso, mas não adotam uma sistemática de divulgação das informações, não existindo uma padronização quanto à forma de registro destes casos (2012, p. 104).

Ao lado disso, quando os dados existem, estes nem sempre são consistentes e, consequentemente, confiáveis. Ao analisar a qualidade das informações produzidas sobre mortalidade violenta nas unidades da federação, Daniel Cerqueira (2013) observou sérios problemas em pelo menos três dimensões das informações produzidas pelo Sistema de Informações sobre Mortalidade25: deficiência na abrangência e cobertura dos registros de óbitos, classificação inadequada de algumas causas do óbito e equívocos no preenchimento das informações relacionadas à vítima e ao incidente.

pela memória, pela verdade e por justiça às vítimas através da mobilização de mães, familiares e amigos das vítimas. Mais informações: http://maesdemaio.blogspot.com. Acesso em 20 jul 2018.

22 Surge em Londres através de mobilizações pela liberdade de estudantes portugueses, em 1961. Uma sede dessa

organização não governamental é inaugurada no Brasil em 2012, na cidade do Rio de Janeiro, como parte da estratégia de se aproximar dos países do hemisfério sul. No âmbito dos direitos humanos e da segurança pública, a organização tem realizado denúncias de violações no plano internacional, como por exemplo, os relatórios referentes às torturas no período da ditadura civil-militar de 1964, ao massacre no presídio de Carandiru em São Paulo (1992), às chacinas da Candelária (1993) e de Vigário Geral (1993) e a violência de maio de 2006 em São Paulo. Mais informações em: https://anistia.org.br/conheca-a-anistia/atuacao/. Acesso em 20 jul 2018.

23 Organização sem fins lucrativos cujos objetivos são atuar através de debates, articulação e cooperação técnica

para a segurança pública no Brasil. O Fórum Brasileiro de Segurança pública foi criado em 2006, seu foco está na transparência e na prestação de contas e reorganização do sistema prisional, dentre outros. Para saber mais: http://www.forumseguranca.org.br/perfil/apresentacao/. Acesso em 20 jul 2018.

24 Criado em 1999, o Instituto Sou da Paz busca contribuir para a efetivação de políticas públicas de segurança e

prevenção da violência. A referida organização não governamental atua na elaboração de pesquisas e campanhas ligadas ao controle de armas e ao funcionamento de políticas de segurança pública no sistema de justiça criminal. Informações coletadas em: http://www.soudapaz.org/o-que-fazemos/conhecer. Acesso em 20 jul 2018.

25 Principal fonte de dados sobre incidentes violentos no país, o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM)

foi criado em 1975 pelo DATASUS para a obtenção regular de dados sobre mortalidade no país. (BRASIL, 2018), e sua base de dados é formada pelas declarações de óbito preenchidas por médicos e coletadas por meio de cartórios (ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS, 2013).

38 No âmbito dos entraves administrativos, há duas faces do problema: o sigilo formal e a ausência de transparência. Os processos disciplinares que buscam a responsabilização dos policiais investigados correm sob sigilo, o que inviabiliza a produção de dados referentes à atuação daquele órgão, como por exemplo, o tempo de duração dos processos, os argumentos mobilizados pela acusação e defesa, as consequências do processo para a progressão na carreira do policial envolvido, o número de arquivamentos dos procedimentos de apuração e os índices de absolvições e condenações nessa esfera.

Ainda em âmbito administrativo, inconvenientes como a produção e a divulgação não transparente de alguns dados é outro fato recorrente, “produz-se o dado, porém não se dá a ele muita visibilidade, tornando seu acesso dificultado até mesmo para pesquisadores mais experientes” (NUNES, 2014, p. 107).

Quando pensamos no acesso aos atores que operam a esfera administrativa, o desafio é superar o processo de desconfiança quanto aos pesquisadores externos à polícia, que pode estar atrelado a inúmeros fatores, conforme aponta Henrique Macedo (2015) “os policiais exprimiriam uma desconfiança em relação às ciências humanas, à formação e aos Outros de maneira geral (...)” (MACEDO, 2015, p. 81). Vilma Reis (2005) também identifica esse problema ao observar a rejeição dos policiais durante a realização de entrevistas em sua pesquisa: “homens que têm rejeitado com veemência a presença do que eles chamam de policiólogos, ‘pessoas que falam da polícia sem entender de polícia’” (REIS, 2005, p. 160).

Outro problema que merece destaque no que diz respeito às abordagens policiais com resultado morte refere-se à ausência de indicadores nacionais para tratar o problema. Em 2007, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontava que tais informações não eram plenamente confiáveis, o que já explicitava a necessidade de investimento em um “sistema nacional de indicadores, com regras compatíveis para todas as Unidades da Federação e com a obrigatoriedade da transparência e compartilhamento de dados” (CANO; DUARTE, 2007, p. 98). O mesmo anuário ainda pontua a baixa qualidade das informações prestadas pelos estados da federação, onde faltavam registros de muitos Estados e muitas dúvidas se os registros da Polícia Civil incluíam, total ou parcialmente, os das polícias militares, mesmo após a implementação do Sistema Nacional de Estatísticas de Segurança Pública e Justiça Criminal do Ministério da Justiça (SINESPJC/MJ), em 2003, que é alimentado pelas Polícias Militares e Civis dos estados e, em algumas circunstâncias, pelas Secretarias de Segurança Pública (RIBEIRO, 2012).

39 No âmbito dos entraves judiciais a lista também é extensa. Estes vão desde a ausência generalizada de dados sistematizados a respeito de condenações, absolvições, pronúncias, impronúncias e desclassificações de réus nesses processos, a nível nacional, ao fato de muitos processos serem físicos e, portanto, não estarem disponíveis nos portais digitais, ou ao fato de que, quando digitalizados, seu acesso ainda depende de uma senha cujo acesso é restrito aos advogados dos réus, membros do Ministério Público, familiares e demais pessoas autorizadas pelo Juízo, conforme determinação do Conselho Nacional de Justiça.

Ainda no âmbito judicial, estão as dificuldades de acompanhamento dos casos. Apenas os operadores que lidam diretamente com os processos oriundos de abordagens policiais que resultaram morte são capazes de identificar os processos nessa condição, pois não há indicadores ou marcadores que identifiquem rapidamente se o réu era policial e se estava em serviço quando da ocasião do fato (MISSE, 2013; FERREIRA, 2017).

Assim, a lista de barreiras enfrentadas pelos pesquisadores e pesquisadoras que se interessam em compreender as abordagens policiais com resultado morte é extensa. Em síntese, essas barreiras corroboram com o desconhecimento generalizado das polícias, das políticas de segurança pública, da atuação do sistema de justiça e das relações entre estas instâncias, o que compromete a capacidade do próprio Estado de entender, inovar e aperfeiçoar as práticas das instituições de controle das abordagens policiais com resultado morte como fenômeno macro (FORUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2007).

2.2.PANORAMA NUMÉRICO DAS ABORDAGENS POLICIAIS COM RESULTADO