• Nenhum resultado encontrado

A articulação entre a refacção textual e a assunção da autoria

Um dos objetivos da nossa pesquisa é responder de que maneira a processo refacção textual, como uma proposta didática para a produção de textos em ambiente escolar, pode facilitar ao aluno a assunção da autoria. Partimos desse pressuposto e consideramos, em consonância com os postulados dos PCN (1998, p. 77), para o 3º e 4º ciclos, que

a refacção faz parte do processo de escrita: durante a elaboração de um texto, se relêem trechos para prosseguir a redação, se reformulam passagens. Um texto pronto será quase sempre produto de sucessivas versões. Tais procedimentos devem ser ensinados e podem ser aprendidos.

Embora esses postulados tenham sido direcionados para o 3º e 4º ciclos, entendemos que o processo de refacção textual, tal como mencionado pelos PCN, é parte do processo de escrita e aplica-se, em nossa compreensão, à produção escrita em qualquer nível de escolaridade e não somente à língua materna. Cabe ressaltar que nas aulas que acompanhamos na disciplina de Compreensão e produção de textos em espanhol, durante o segundo semestre de 2006, na Universidade Federal do Ceará, para coleta do corpus, os alunos produziram três versões de cada texto, seguindo às seguintes etapas: na primeira, tiveram um contato inicial com o objeto discursivo e elaboraram a primeira versão do texto; na segunda, levaram em consideração a intervenção das vozes de outros sujeitos (os colegas de sala) e elaboraram nova versão do texto; e na terceira, contemplaram a avaliação do professor como uma voz de autoridade sobre os textos e fizeram o que definimos como a versão final. Coube ao sujeito-autor a inserção ou a recusa, total ou parcial, dessas vozes dentro do texto produzido. Retomaremos esse aspecto da nossa pesquisa, na parte 3, referente à Metodologia.

Essa proposta adotada pela professora permitiu-nos observar o trabalho que os sujeitos-alunos operaram com seu texto inicial, pois nos possibilitou identificar alguns procedimentos recorrentes como, por exemplo, as marcas de apagamento, a reformulação de parágrafos, o emprego do aspeamento, a inserção de comentários metaenunciativos, etc. que desvelaram o trabalho do sujeito com o seu texto, tendo em vista direcionar a atitude responsiva do seu co-enunciador.

Notamos que muitos dos alunos envolvidos no processo passaram de um estado de reprodutores para o de produtores de textos ao longo do processo de refacção. Isso se deu em parte, em virtude da intervenção da professora que oportunizou aos alunos espaço e tempo para que realizassem a necessária reflexão sobre o texto que produziram, e, em parte, resultado das novas posições que esses sujeitos, enquanto produtores de texto ocuparam, quais sejam, a de leitores e a de avaliadores6 do próprio texto.

Além disso, as intervenções dos colegas e da professora foram (total ou parcialmente) acolhidas ou recusadas pelos sujeitos ao longo das versões. Essas sugestões, por sua vez, direcionaram ou tenderam a direcionar o sentido do texto e entendemos que o fato de serem acolhidas ou não esteja relacionado com a assunção da autoria. Neste sentido, notamos que, em determinados casos, a acolhida das intervenções quando feitas nos níveis da língua (correção e adequação lingüística, como, por exemplo, questões de acentuação, erros de ortografia, concordância, formas verbais, etc.) não alteraram de forma unívoca os efeitos de sentido no texto. Já nas que implicaram mobilização de sentidos no nível lingüístico-discursivo, como, por exemplo, inserção de expressões avaliativas, de modalizadores, de comentários metaenunciativos, entre outras, houve um comprometimento maior nas alterações dos efeitos de sentido produzidos no texto. Aprofundaremos esse ponto na seção dedicada à análise.

Tendo em vista o exposto, cumpre ressaltar que entendemos o processo de refacção textual como o trabalho do sujeito ao realizar modificações no seu texto em diferentes níveis (gramatical, textual, discursivo) com o fim de aperfeiçoá-lo para atender a uma situação específica de uso da linguagem.

6 A respeito da avaliação em contexto escolar lembramos a concepção de Hoffman (1993) que vê a avaliação

como um processo onde o avaliador acompanha o avaliado, passo a passo, na trajetória de construção do conhecimento e não mais uma ação reduzida de apreciação do desempenho final do aluno.

A esse respeito, julgamos relevantes as considerações de Abaurre, Fiad e Mayrink-Sabinson (2001), que consideram que há variadas motivações reveladoras das singularidades dos sujeitos e da relação por eles estabelecida com a linguagem, camufladas sob o trabalho de modificação de algo anteriormente escrito.

Interessa-nos, portanto, observar indícios dessa singularidade do sujeito que se concretiza durante a reescrita, quando o aluno tem a oportunidade de reformular seu texto, distanciando-se dele ao ocupar uma nova posição, qual seja, a de leitor para então retornar a ele. Nesse movimento de distanciamento e retorno, importa verificar como o sujeito produz indícios na sua escrita que ajudam a construir mais claramente sua identidade enunciativa ou, em outros termos, o seu posicionamento, além de redundar em textos com autoria, nos quais se pode flagrar, na linearidade do dizer, mostras do trabalho do sujeito com vistas a concretizar seu projeto de dizer.

A distância, e a consciência dessa distância, entre a teoria e a prática varia com o tempo e o lugar.

(TEBEROSKY, 2003, p. 195)

3 - Procedimentos metodológicos

Nesta seção interessa-nos esclarecer os critérios adotados para realizar a coleta do corpus, definir o perfil dos sujeitos, as categorias teórico-analíticas e os procedimentos de análise. Antes de avançar, porém, gostaríamos de esclarecer em que área se insere a presente pesquisa e a sua natureza.

Quanto à área de inserção e à natureza de pesquisa deste trabalho, destacamos sua inclusão na linha de pesquisa em Lingüística Aplicada em interface com a Análise do Discurso de orientação francesa. Trata-se de uma pesquisa analítico-discursiva realizada a partir da investigação de um corpus de análise próprio, colhido conforme descrito no item 3.2. Cabe esclarecer que, de acordo com Coracini (2003), as pesquisas analítico- discursivas vinculam-se à concepção de Lingüística Aplicada entendida como uma área de investigação cujo foco se encontra no processo e não no produto; “daí, inclusive, a importância de considerar que, para pensar o ensino, é preciso partir das necessidades dos alunos e da compreensão do processo de aprendizagem” (CORACINI, 2003, p. 232). Ainda segundo a autora, vinculam-se a essa concepção três modalidades de pesquisa, a saber: a interativista, a etnográfica e a analítico-discursiva. Passemos a uma breve descrição dessas modalidades.

A pesquisa interativista tem como objetivo analisar o comportamento dos interlocutores em contexto de interação, como por exemplo, de professores e alunos em situação de sala de aula. Um exemplo desse tipo de pesquisa seria aquela que tivesse como propósito analisar produções escritas de alunos a partir, por exemplo, das máximas de Grice, a fim de detectar falhas no processo de ensino-aprendizagem e, assim, buscar alternativas para sua solução.

Já a pesquisa etnográfica, também denominada de base antropológica, se baseia na observação direta da sala de aula, de forma a permitir que o pesquisador tome notas que, posteriormente, transformará em um diário. Nessa modalidade, acredita-se que são os dados os responsáveis pelo desenvolvimento da pesquisa. Poderá tratar-se de uma pesquisa

de cunho diagnóstico, na qual o pesquisador analisa e interpreta os dados coletados, ou ainda, uma pesquisa colaborativa, quando o pesquisador se dispõe a acompanhar um dos participantes do processo, por exemplo, o professor, no momento em que este prepara sua aula, nesse caso, a intervenção do pesquisador é feita de forma direta.

A terceira e última modalidade apontada por Coracini se refere à pesquisa analítico-discursiva, na qual nos situamos, e que, segundo a autora, tem por objetivo

problematizar as situações naturalizadas pelo hábito e, por isso mesmo inquestionáveis. Analisam-se, enquanto corpus destas pesquisas, recortes das falas realizadas num dado contexto de interação, os textos escritos que constituem práticas discursivas, isto é, manifestações concretas de regras anônimas que constituem, num dado momento histórico-social e num dado lugar, as formas de agir, pensar e dizer de grupo social (...)

(CORACINI, 2003, p. 235)

Coracini assinala, ainda, a existência de três orientações ligadas à área do discurso: a Análise de Discurso Anglo-Saxônica, a Análise Crítica do Discurso e a Análise do Discurso de linha francesa.

A primeira das orientações se refere à Análise de Discurso Anglo-Saxônica, cujo autor mais representativo foi o lingüista-americano Harris. Essa orientação considera o texto como uma unidade a ser analisada em seus componentes lingüísticos-textuais levando em conta a situação de comunicação (quem escreveu, para quem, onde, o que, quando e com que intenções).

A segunda orientação, a Análise Crítica do Discurso, é também de origem anglo- saxônica e se ancora nos postulados de Fairclough e seu objetivo principal é conscientizar professores e leitores dos aspectos ideológicos dos textos.

Por fim, a terceira orientação, conhecida como a Análise do Discurso de linha francesa trata de aspectos relacionados à heterogeneidade da linguagem e do sujeito; este último entendido como cindido e atravessado pelo inconsciente e, dessa forma, “incapaz de se autocontrolar e de controlar os efeitos de sentido do seu dizer” (CORACINI, 2003, p, 236). Já a noção de heterogeneidade, segundo a autora (2003, p. 237), é entendida como “constitutiva do próprio sujeito, isto é, do seu inconsciente, do próprio discurso – vozes que se interpenetram, se embaralham, se adentram uma na outra – e, consequentemente do

próprio texto”. Essa terceira concepção é a que nos interessa mais de perto, por ser aquela que tem orientado nossa pesquisa.

Também definimos o presente estudo como uma pesquisa de natureza qualitativa, já que se ocupa da identificação, explicação e interpretação de fatores que contribuem para a compreensão dos processos que envolvem a produção textual, no tocante a relação entre os posicionamentos do sujeito e a assunção da autoria, segundo a concepção de Possenti (2002) e Baptista (2005).