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A produção escrita em língua estrangeira – especificidades e dilemas

Trataremos desse tema a partir das considerações de Carmagnani (1999, p. 159- 166) no que se refere às observações que ela realiza das atividades de produção escrita em língua estrangeira (inglês) produzidas em ambiente escolar que, conforme lembra a autora, concentram-se, na maioria das vezes, em atividades de cópia, as quais partem quase sempre de modelos preestabelecidos de textos.

As atividades, quando existentes, visam a instrumentalizar os alunos, preparando- os para exames de proficiência ou de redações em concursos. Para Carmagnani (1999, p. 159), ao propor-se a ensinar a escrever, não se transcendem os objetivos imediatistas que, por sua vez, não afastam o aluno do papel de “re-produtor”. A autora constata que, mesmo em nível superior, a produção escrita em língua estrangeira é praticamente inexistente. Isso se deveria a três dificuldades que ela detecta e que relacionamos a seguir.

A primeira dificuldade aponta para a crença do aluno de que ele não escreve porque não conhece totalmente a língua alvo. Sobre essa crença do aluno, vale ressaltar que nossa pesquisa lida com um corpus produzido por alunos cursando o sexto semestre do Curso de Letras e nossas análises permitiram verificar que, embora cometam erros do ponto de vista normativo, esses alunos produziram textos com autoria, no sentido em que a concebemos, isto é, realizaram intervenções sobre seu texto, ao instaurar a polifonia e ao manter distância do próprio texto, tendo em vista ajustar a linguagem para realizar seu projeto de dizer.

A nosso ver, essa dificuldade deve ser confrontada pelos professores a quem cabe promover uma sensibilização dos alunos para uma concepção de língua como forma de interação. Esse aspecto, sobretudo, merece ser mais bem examinado. Para tanto, citamos as contribuições de Geraldi (2003). O autor aponta, em suas pesquisas, três concepções de linguagem, a saber: 1. a linguagem como expressão do pensamento; 2. a linguagem como instrumento de comunicação e 3. a linguagem como forma de interação.

A primeira crença assinalada por Carmagnani (1999) relaciona-se à segunda concepção de linguagem apontada por Geraldi, uma vez que a crença na possibilidade de apreensão total da língua está em consonância com o entendimento de que a língua é um instrumento e, portanto, pode ser plenamente manipulado desde que se tenha o conhecimento necessário. Tampouco a língua poderá ser entendida apenas como expressão

do pensamento, já que mais do que simplesmente expressar idéias, a língua é também uma forma de ação, de interação (e de intervenção) entre interlocutores. Daí porque, a terceira concepção será aquela que mais se aproxima de uma perspectiva discursiva subjacente ao processo de produção escrita, sendo, por isso, a concepção que adotamos em nosso estudo.

A segunda dificuldade refere-se à existência de certos mitos compartilhados pelos aprendizes de LE: a crença, ou ainda, a ilusão de que quando toda a gramática e o léxico forem dominados, a produção escrita ocorrerá naturalmente. Sobre essa crença de que o controle da língua é possível, supomos que esta se deva ao modo como se desenvolveu o processo de aprendizagem do aluno no âmbito escolar. Essa crença estaria ligada, por exemplo, à idéia de que aprender uma língua corresponde a aprender as estruturas gramaticais desta língua. Nesse sentido, lembramos o trabalho de Cassany (1998, p. 16) sobre Los procesos de escritura em el aula de E/LE. Seus resultados mostraram que a falta de competência na escrita em L2 (segunda língua) é causada, em maior medida, pela ausência de processos compositivos do que pela falta de competência lingüística em L2. Segundo o autor, o domínio lingüístico da L2 parece atuar como um fator que pode facilitar ou dificultar o processo de composição do texto, dessa maneira, não podemos entendê-lo como o maior, ou o único responsável pelo êxito ou fracasso na produção escrita.

A terceira dificuldade apontada por Carmagnani (1999) se refere a pouca experiência que o aprendiz demonstra ter com o discurso escrito. Segundo a autora, “o aluno está acostumado a reproduzir; não opina, não se posiciona, não critica. Ele aprendeu que não tem voz e que, portanto, nunca será ouvido” (p. 164). Sobre esse aspecto, ressaltamos que essa condição do aluno deve-se, em parte, às práticas pedagógicas adotadas em sala de aula. A esse respeito, Marcuschi (2003) chama a atenção para o fato de que não se pode esperar que os alunos aprendam naturalmente como produzir os diversos gêneros escritos de uso diário. E propõe que estes sejam ensinados, observando-se a progressão nos níveis de dificuldade, indo de um gênero mais informal para um mais elaborado. O que se espera, portanto, é que os professores, durante a produção de textos em sala de aula, apresentem aos alunos questões relativas às estratégias de produção escrita, como, por exemplo, as que estão relacionadas ao gênero, o que envolve pensar a natureza da informação (o conteúdo a ser veiculado), o nível de linguagem (formal, informal), além da relação entre os participantes (conhecidos, desconhecidos).

Tendo em mente o exposto, embora concordemos com as observações de Carmagnani, pensamos que mediante um processo bem orientado de produção de textos em ambiente escolar, como o que presenciamos, quando da coleta de nosso corpus de análise, poderemos encontrar textos em que há autoria da forma como definimos aqui e sobre esses nos voltaremos em nossa análise.

Retomaremos, a seguir, o trabalho citado de Cassany (1998). O autor, ao problematizar diferentes aspectos da produção escrita em língua estrangeira, chama a atenção para as diversas funções que a escrita exerce, tanto na comunidade, como na aula de E/LE. Segundo Cassany (1998, p. 9), essas funções estão divididas em intra e interpessoais. As intrapessoais subdividem-se em três modalidades: registrativa, manipulativa e epistêmica. A primeira, registrativa, corresponde às práticas em que o autor escreve para si mesmo com a finalidade de guardar informações, como, por exemplo, as anotações de números de telefone, endereços, compromissos, anotação da tradução de uma palavra desconhecida, etc. Já na manipulativa, o autor escreve com o fim de transformar, reescrever, o que acontece, por exemplo, nos resumos de textos, nos apontamentos diversos, nas reformulações, nas anotações explicativas de uma regra gramatical dadas pelo professor, etc. E na epistêmica, o autor quer obter novos dados e opiniões, por exemplo, elaborações de hipóteses, objetivos de trabalhos ou, ainda, a preparação de uma exposição.

Quanto às interpessoais, estas subdividem-se em: comunicativa e certificativa. Na comunicativa, o autor pode escrever para um destinatário a fim de lhe dar alguma informação, por exemplo, cartas, notícias, etc. Na certificativa, escreve para dar fé a algo, por exemplo, certificados, escrever uma redação em um exame, etc. Além dessas, Cassany se reporta ainda a uma função lúdica intra e interpressoal que está relacionada a uma dimensão estética: escrever por prazer, para divertir-se, etc.

De acordo com o autor, não é fácil classificar algumas das atividades escritas correntes em sala de aula em uma das funções citadas. A atividade de cloze, por exemplo, poderia ser vista como uma atividade registrativa ou certificativa. Tais funções estariam relacionadas ao uso da escrita de forma geral.

Ao tratar, especificamente, das aulas de E/LE, Cassany (1998, p. 10) destaca duas funções básicas: em primeiro lugar, a escrita deve ser considerada uma ferramenta para aquisição lingüística, isso acontece porque muitas das práticas escritas que o aprendiz

realiza têm função intrapessoal (por exemplo, o uso de recursos mnemotécnicos, preparação de produções orais e escritas, etc.) e, desse modo, estão relacionadas com o desenvolvimento da competência lingüística. Em segundo lugar, a escrita também se constitui como uma habilidade comunicativa que os aprendizes podem desenvolver tanto em ambiente acadêmico como em espaços sociais e de trabalho. Conhecer as diferentes funções da escrita pode ajudar ao professor a direcionar suas atividades em sala de aula e para tanto deverá partir da reflexão e do diagnóstico de quais sejam as principais necessidade de seus alunos.

Também consideramos relevante a descrição que Cassany (1998, p. 12-13) realiza dos processos de composição. O primeiro deles, a planificação, é o momento em que o aluno elabora a configuração estrutural do seu texto. O autor distingue as seguintes tarefas e momentos relacionados a esse processo: 1) representação da tarefa, quando o aluno elabora uma interpretação pessoal do seu objeto discursivo; 2) estabelecimento do plano de composição, quando o aluno formula planos, tanto do processo de trabalho, quanto do texto que vai produzir; 3) geração de idéias, quando o aluno recupera informações armazenadas na memória referentes ao gênero discursivo e toma nota de idéias a serem incluídas no texto escrito e 4) organização das idéias, quando dá origem à primeira versão do texto escrito.

Seguindo-se à planificação, ocorre o processo de textualização, em que o aluno elabora linguisticamente, ou seja, em forma de texto escrito, a configuração que dará à mensagem. O autor distingue três subprocessos relacionados à textualização: 1) a referenciação, corresponde à seleção do léxico, eleição das proposição e das formas de modalização, etc.; 2) as linearizações, transformação das estruturas semânticas em um discurso linear e 3) a transcrição, produção física da enunciação escrita, seja manual, seja com o uso do computador.

E, por fim, tem lugar o processo de revisão do texto. Nesse momento, o aluno deve avaliar as representações que realizou sobre os propósitos comunicativos, os planos de composição, as idéias sobre o gênero e o leitor. Além desses aspectos, deve avaliar às produções intermediárias (os esquemas, os rascunhos e outras versões anteriores à final). Cabe ressaltar que esses processos efetivados durante a construção de um texto, estão perfeitamente de acordo com a nossa proposta de trabalho com o processo de refacção textual em três versões.

Ainda sobre os processos descritos, consideramos que, antes da produção de cada versão, o sujeito-autor, na terminologia que estamos empregando, realiza os três procedimentos, ou seja, antes de produzir cada versão, ele planifica, organiza o dizer, textualiza suas idéias e então revisa seu texto, antes de dá-lo por concluído.