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4 A RESPONSABILIDADE CRIMINAL DE EX-CRIANÇAS SOLDADO

4.3 A AUSÊNCIA DO ELEMENTO PSICOLÓGICO A ENFERMIDADE OU

As questões psicológicas que envolvem as crianças soldado já foram explanadas no primeiro Capítulo deste trabalho, porém tal assunto será novamente abordado neste tópico para se avaliar a responsabilidade criminal de adultos, porém ex-crianças-soldado. As circunstâncias de coação expostas no tópico passado se relacionam diretamente com o desenvolvimento psicológico das crianças.

Sabendo-se que há intensa e constante doutrinação, muitas vezes realizada por anos, questiona-se a saúde mental daqueles que cresceram e se desenvolveram neste ambiente hostil. Qual seria a noção de realidade dessas crianças? Conseguiriam estes jovens distinguir o certo e o errado? E o desenvolvimento moral? As respostas para estas perguntas variam de acordo com a experiência de cada criança-soldado, o que influenciará diretamente na exclusão ou não da sua responsabilidade criminal enquanto adulto.

Para que se compreenda a mente de uma pessoa, é necessário recorrer à psicologia. Laurence Kohlberg (1927 – 1987), um teórico da psicologia, com base nos estudos do desenvolvimento cognitivo-evolutivo de Piaget, abriu uma discussão interessante a respeito do desenvolvimento da moralidade. Em sua teoria, ele defende que haveria 6 estágios do desenvolvimento moral dentro de 3 níveis, o pré- convencional, o convencional e o pós-convencional. Quanto ao primeiro estágio, este é chamado de Moralidade Heterônoma, que envolve o comportamento vinculado ao castigo e a obediência em uma lógica de causa e consequência. Para ganhar recompensas, as ações entendidas como corretas são executadas e, desta forma, evita-se punições por ações erradas (BATAGLIA et al, 2010).

Estas primeiras noções do certo e do errado são rudimentares, pois não há um pensamento próprio da criança, nem decisões baseadas em algum valor moral. O segundo estágio é chamado de raciocínio moral egocêntrico, fase na qual a pessoa percebe o outro, porém espera algo deste em uma relação de reciprocidade e lealdade. O terceiro marca o início da fase convencional e o fim da pré-convencional e é nomeado de “Conformidade Interpessoal” ou “orientação do tipo bom menino”. Tal fase geralmente é desenvolvida na adolescência e a pessoa age com moralidade em razão da conformidade de seu grupo. Assim, o comportamento certo ou errado é vinculado ao ideal de um grupo (BATAGLIA et al, 2010).

Bataglia et al (2010) explica que quarto estágio é classificado como “Lei da Ordem”, pois os valores morais pensados pela pessoa são vinculados à legalidade. As leis definem o certo ou o errado, em nome do bem coletivo. A noção de justiça e do dever tornam tal fase mais sofisticada, porém não suficiente para atender à complexidade da modernidade. Assim, a próxima etapa entra na visão de moralidade pós-convencional, a qual é gerada no mundo globalizado. Neste quinto estágio nomeado “contratual-legalista”, a pessoa percebe que há direitos e valores universais

que vão além do que a lei determina, pois estas não abarcariam o certo e o errado em várias esferas da sociedade.

O último e mais evoluído estágio é o da “Ética e Princípios Universais” e este permite que a pessoa pense em princípios como base das leis e convenções sociais. O entendimento é de que a regra protege certos princípios. Por fim, destaca-se que há dois subestágios em cada estágio: o A, de orientação heterônoma, com base em regras e na autoridade, além do B, de orientação autônoma e baseada e princípios, justiça, reciprocidade e igualdade (BATAGLIA et al, 2010).

Vanessa de Lima (2004, p. 16), com base na teoria de Kohlberg, explica os níveis que envolvem os estágios acima descritos. No nível pré-convencional, “o indivíduo ainda não compreende as regras e normas de seu grupo social e, portanto, não pode colaborar com sua manutenção. As normas e expectativas sociais são exteriores ao indivíduo.”. (DE LIMA, 2004, p. 16). Tal fase seria vivenciada por crianças com idade abaixo de 9 anos, por alguns adolescentes e por “muitos adolescentes e adultos delinquentes”.

A autora acima mencionada ainda destaca que, no nível convencional, há o entendimento da moralidade vinculada às regras sociais aplicadas por autoridades, ou seja, é o pensamento de que algo “é errado, porque todos do meu grupo agem assim, ou porque está na lei”. (DE LIMA, 2004, p. 16). As pessoas que vivenciam esta fase são a maioria dos adolescentes e adultos. Já no nível pós-convencional, há os princípios morais ou valores escolhidos pela própria pessoa, a perspectiva de direitos universais e o entendimento do bem-estar de todos como objetivo maior. Somente indivíduos maiores de 20 anos atingem este nível e, ainda assim, uma minoria de adultos.

Lyra (2007) afirma que a teoria de Kohlberg é a base de todas as pesquisas mais recentes sobre o tema do desenvolvimento moral, pois esta teoria dos estágios é uma avaliação profunda e completa deste processo que se inicia aos 6 ou 7 anos de idade. A mencionada autora explica que Laurence Kohlberg defende a impossibilidade de pular estágios. Cada um precisa ser vivido em uma sequência evolutiva. Desta forma, a depender dos seus estímulos sociais e desafios, a criança mudará de estágio ou não. Expostas todas as fases, conclui-se que o entendimento do certo ou do errado varia de acordo com o estágio do desenvolvimento da moralidade e, consequentemente, do senso de justiça de cada pessoa.

Estudos de Piaget indicam que até os 7 ou 8 anos, a maioria das crianças incorporam o desenvolvimento moral por elementos externos. A partir destas idades, a autonomia moral vai surgindo (MONTENEGRO, 1994, p. 93). Piaget (1994) também determina os estágios do desenvolvimento moral nas crianças e chama atenção para a influência do ambiente de convívio no seu desenvolvimento afetivo, intelectual e social.

Ante todo o exposto, nota-se que o desenvolvimento da moralidade das pessoas, desde a sua infância até a fase adulta, é um produto cultural. A criança necessita de estímulos intelectuais, além da convivência em um ambiente saudável para se tornar um adulto com noções de justiça, valores e de princípios morais desenvolvidos.

Após esta breve análise acerca do desenvolvimento moral das crianças, é preciso retomar o tema deste tópico, que envolve as crianças soldado. As consequências psicológicas que sofrem os jovens combatentes são diversas e já foram abordadas neste trabalho. Contudo, para a análise da responsabilidade criminal de ex-crianças-soldado, é necessário tecer outros comentários relevantes.

Nota-se que o recrutamento feito por grupos paramilitares muitas vezes envolve pessoas com idade entre 5 e 17 anos. As crianças mais novas ainda estão na fase inicial do desenvolvimento moral, que varia entre o 1º e 3º estágios definidos por Kohlberg. Suas noções do que é certo ou errado advêm do ambiente externo nos dois primeiros estágios, que envolveriam punição e obediência (1º estágio), ou espera de reciprocidade (2º estágio). Quanto ao terceiro estágio, mais vivenciado por adolescentes, a moralidade é determinada pelo posicionamento do grupo que a cerca. Se uma criança é submetida a doutrinação e a coação constante em um ambiente violento, sem qualquer estímulo intelectual, desde muito cedo, não haverá evolução de estágios e, consequentemente, ela se tornará um adulto em uma fase de desenvolvimento moral rudimentar. O fato de não alcançar o nível convencional a torna incapaz de compreender as determinações da sociedade, incluindo a ilegalidade de certas ações.

A doutrinação atinge facilmente as mentes das crianças via discursos repetitivos dotados de persuasão e promessas de recompensa. O grupo paramilitar LRA, ao qual Dominic Ongwen pertenceu, ia ainda mais além, pois a doutrinação envolvia o ensino

de crenças. Joseph Kony é considerado o líder espiritual deste grupo guiado por espíritos. O que Kony pregava era visto como lei incontestável.

Desta forma, as crianças sofriam uma espécie de “lavagem cerebral” contínua, juntamente com “jogos psicológicos”. Há incentivo e estímulo de sentimentos de vingança, raiva, lealdade, orgulho e poder. Quem melhor se adapta como soldado é recompensado, a exemplo do ganho de esposas no LRA.

Em grupos paramilitares, há o estímulo repetitivo do primeiro estágio do desenvolvimento moral, pois o comportamento das crianças e adolescentes é determinado pelo grupo por meio de ameaças e punições. Além disso, a doutrinação e ensino de crenças e ideologias do grupo estimulam a moralidade do 3º estágio, pois pretende-se criar uma consciência coletiva e um sentimento de pertencimento ao grupo, na medida que os conceitos do certo ou do errado são definidos pelos rebeldes. A depender da idade, do nível de escolaridade, da personalidade e de outras variáveis, a vida militar pode sim atrapalhar e deturpar o desenvolvimento da moralidade nas crianças recrutas. Kyra Fox (2016, p. 30), em sua obra The Complex Combatant: Constructions of Victimhood and Perpetrator-hood in Gulu District, Northern Uganda, trouxe o depoimento de uma menina que nasceu e cresceu no LRA. Ela afirmou que queria atirar nas pessoas, como o seu pai e, quando perguntada sobre sua capacidade de entender o certo e o errado, disse que “na verdade, eu estava entendendo o contrário. Eu estava pensando que se você vence, se você luta, se você mata, todas essas coisas ruins - se você faz isso, você está fazendo coisa certa.”. (FOX, 2016, p. 30, tradução nossa).

A supramencionada autora demonstra por meio de depoimentos de ex-crianças- soldado que, conforme o tempo de serviço aumenta, menos sensíveis se tornam os jovens às atrocidades, na medida em que suas ações se tornam normais, involuntárias e automáticas. Os recrutas se tornam máquinas operadas pelos rebeldes, os verdadeiros responsáveis em termos criminais. Por mais que haja estudos que demonstram a resiliência e a manutenção da moralidade de crianças soldado6, a

análise da responsabilidade criminal seria realizada pela perspectiva da coação, tema já analisado no tópico passado.

No caso de Dominic Ogwen, a defesa alega que sua idade, ao tempo do sequestro, era de 9 anos e meio, enquanto que a acusação alega 14 anos. Ainda levando em consideração a menor ou a maior idade, sabe-se que os estágios de desenvolvimento moral são referências que podem variar de acordo com a experiência de vida de cada pessoa. A cultura e as condições de vida de Ongwen, juntamente com sua personalidade, podem tê-lo mantido em um nível mais rudimentar de desenvolvimento moral, ainda que fosse considerado sequestrado aos 14 anos.

Dominic cresceu no LRA e neste grupo permaneceu por cerca de 20 anos. A sua capacidade de compreender a ilicitude de seus atos deve ser atestada pelos especialistas em saúde mental, porém desde já pode-se afirmar que seu desenvolvimento moral, intelectual e social foi comprometido, pois diversas lesões são inerentes à experiência de uma criança-soldado. Note-se que no capítulo passado7 foi

exposto que Dominic Ongwen tinha comportamentos contraditórios, demonstrando sensibilidade e bondade em certas ocasiões, e crueldade em outras. Quanto a sua responsabilidade criminal avaliada pela perspectiva psicológica, há observações relevantes a serem feitas.

O Estatuto de Roma (BRASIL, 2002) permite a exclusão da responsabilidade criminal na hipótese de não haver vontade de cometer o ato ilícito e, na medida em que o réu esteve submetido à coação física e psicológica, pode se livrar da condenação através deste argumento. Poderá o réu ser considerado inimputável, caso haja alguma enfermidade ou deficiência mental que a prive de entender a ilicitude ou natureza da sua conduta. Contudo, uma pessoa que teve a sua bússola moral corrompida, ou que sequer teve acesso a estágios de desenvolvimento moral superiores, deve ser considerada enferma ou deficiente?

Conforme já exposto no Capítulo passado, os especialistas em saúde mental requisitados pela acusação afirmam, de antemão, que Ongwen parecia ter ciência das suas ações e dos acontecimentos e estas evidências são incompatíveis com a existência de algum transtorno mental grave à época em que cometeu os crimes. Uma especialista, inclusive, comentou que, caso o réu sofresse de alguma doença mental grave, seria difícil mascarar os sintomas, pois não há como controlá-los (MALITI, 2017).

Nota-se que os especialistas requisitados pela acusação avaliam Ongwen com o objetivo de descobrir se havia ou não alguma doença ou deficiência mental ao tempo do crime. A grande dúvida é se o réu se encaixa ou não nos requisitos que excluiriam a sua responsabilidade criminal, conforme o estabelecido pelo Estatuto de Roma. Contudo, seria os termos “deficiência ou enfermidade” adequados para abarcar a situação mental de uma criança ou ex-criança-soldado?

Importa salientar outra hipótese de exclusão da responsabilidade criminal, que priva a capacidade de entendimento da ilicitude ou natureza da conduta, ou de controlar esta conduta, que seria o estado de intoxicação. Nesta hipótese, o legislador pretendeu novamente proteger aquele que está privado de compreender a antijuridicidade ou o caráter das ações, ou mesmo aquele que não pôde controlar seus atos pois, presumidamente, não teve a intenção de infringir a lei.

Da interpretação teleológica do art. 31 do Estatuto de Roma (BRASIL, 2002), o qual apresenta as causas de exclusão da responsabilidade criminal, percebe-se que a consciência da ilicitude ou o controle da ação são essenciais para a responsabilização de alguém. Assim, uma ex-criança-soldado pode não contemplar tais requisitos e não necessariamente sofrer de alguma doença ou deficiência mental, ou mesmo estar em um estado de intoxicação. Quanto à deturpação ou privação do desenvolvimento moral das crianças, cabe aos profissionais de saúde mental definirem se tal condição se encaixa no conceito de deficiência mental ou de doença mental.

Caso não haja um encaixe perfeito nos conceitos acima mencionados, ainda assim haveria a opção de se analisar o art. 31 (3) do Estatuto de Roma, que indica:

No julgamento, o Tribunal poderá levar em consideração outros fundamentos de exclusão da responsabilidade criminal; distintos dos referidos no parágrafo 1º, sempre que esses fundamentos resultem do direito aplicável em conformidade com o artigo 21. O processo de exame de um fundamento de exclusão deste tipo será definido no Regulamento Processual. (BRASIL, 2002).

Desta forma, o Estatuto dá certa liberdade para os juízes da Corte avaliarem a responsabilidade criminal do indivíduo caso a caso. O caso de Dominic é complexo, pois envolve um perpetrador que, independentemente das suas ações criminosas ou do resultado de seu julgamento, ainda assim é vítima.

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