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A responsabilidade criminal de ex-crianças soldado no Tribunal Penal Internacional: Uma análise do caso The Prosecutor V. Dominic Ongwen

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Academic year: 2021

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FACULDADE DE DIREITO

CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

MARIANA ALENCAR DE MATOS BRAGA

A RESPONSABILIDADE CRIMINAL DE

EX-CRIANÇAS-SOLDADO NO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL:

UMA ANÁLISE DO CASO THE PROSECUTOR V. DOMINIC ONGWEN

Salvador

2018

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A RESPONSABILIDADE CRIMINAL DE

EX-CRIANÇAS-SOLDADO NO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL:

UMA

ANÁLISE DO CASO THE PROSECUTOR V. DOMINIC ONGWEN

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como quesito para obtenção de aprovação na disciplina TCC II, do curso de Direito (Noturno) da Universidade Federal da Bahia.

Orientadora: Profª Doutora Fernanda Ravazzano Lopes Baqueiro

Salvador

2018

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Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema Universitário de Bibliotecas (SIBI/UFBA), com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

Alencar de Matos Braga, Mariana

A Responsabilidade Criminal de Ex-crianças-soldado perante o TPI: Uma Análise do Caso The Prosecutor v. Dominic Ongwen / Mariana Alencar de Matos Braga. -- Salvador, 2018.

76 f.

Orientadora: Fernanda Ravazzano Lopes Baqueiro. TCC (Graduação - Direito (Noturno)) -- Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Direito da

Universidade Federal da Bahia, 2018.

1. Responsabilidade Criminal. 2. Ex-crianças- soldado. 3. Tribunal Penal Internacional. 4. Coação. 5. Incapacidade Mental. I. Ravazzano Lopes Baqueiro, Fernanda. II. Título.

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MARIANA ALENCAR DE MATOS BRAGA

A RESPONSABILIDADE CRIMINAL DE

EX-CRIANÇAS-SOLDADO NO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL:

UMA ANÁLISE DO CASO THE PROSECUTOR V. DOMINIC ONGWEN

Monografia apresentada ao Curso de Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia – UFBA, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito, defendida e aprovada pela banca examinadora abaixo assinada.

Salvador, ___ de ____________ de 2018.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________________ Profª Fernanda Ravazzano Lopes Baqueiro – Orientadora

Doutora em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia Faculdade de Direito da UFBA

______________________________________________________________ Profª Selma Pereira de Santana – Examinadora

Doutora em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra. Faculdade de Direito de Coimbra

______________________________________________________________ Profª Gabrielle Santana Garcia – Examinadora

Especialista em Direito do Estado pela Fundação Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, Salvador, Bahia, Brasil. Centro Universitário Jorge Amado. UNIJORGE. Faculdade de Direito da UFBA

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Dedico este trabalho à Deus, por ter me protegido nesta caminhada, e por ter me dado força e sabedoria durante a realização deste trabalho. Àqueles que mais amo, meus pais Marli e Francisco, e meus irmãos Isabella e Gabriel, agradeço o apoio, a paciência e a compreensão nesta jornada. Sou grata, também, ao meu namorado Victor pela força e incentivo para seguir adiante e alcançar meus objetivos, por mais difíceis que eles sejam.

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RESUMO

O objetivo do presente trabalho é avaliar a responsabilidade criminal de ex-crianças-sodado perante o Tribunal Penal Internacional, a partir do caso The Prosecutor V. Dominic Ongwen. No segundo capítulo, há uma exposição acerca da participação de crianças em conflitos armados. Em seus tópicos, destaca-se a ação de grupos paramilitares que sequestram e recrutam crianças para criarem combatentes treinados, doutrinados, insensíveis, fiéis e violentos o suficiente para cometerem graves crimes. Assim, após a compreensão desta problemática, da legislação e mobilização internacional sobre o tema, segue-se para o capítulo 3. Nesta oportunidade, o conflito de Uganda é retratado, juntamente com o caso de Dominic Ongwen, sequestrado e utilizado como criança-soldado e atual réu no TPI pelo cometimento de diversos crimes. A sua história no grupo paramilitar que o sequestrou é relatada, além das questões relacionadas ao processo, que incluem os argumentos da defesa e da acusação. Assim, com seu caso, o TPI se depara com questionamentos a respeito de sua responsabilidade criminal, tema analisado no quarto capítulo deste trabalho. Neste último, há uma descrição e análise da legislação que rege mencionada Corte. São analisados os argumentos que sustentariam a exclusão da responsabilidade criminal de ex-crianças-soldado, incluindo também o caso de Ongwen. O método hipotético-dedutivo, hermenêutico e argumentativo foram utilizados neste trabalho. Quanto à pesquisa, esta teve natureza aplicada, com exploração e descrição e análise do tema. Ademais, houve abordagem qualitativa, pesquisa documental e bibliográfica.

Palavras-chave: Criança-soldado; Tribunal Penal Internacional; responsabilidade criminal; coação; incapacidade mental.

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ABSTRACT

The purpose of the present study is to evaluate the criminal responsibility of former child soldiers before the International Criminal Court, based on the case The Prosecutor V. Dominic Ongwen. In the second chapter, there is an exposition about the involvement of children in armed conflicts. In its topics, it’s shown the action of paramilitary groups, which kidnap and recruit children in order to create trained, indoctrinated, insensitive, faithful and violent combatants able to commit serious crimes. Thus, after the comprehension of this issue, of the legislation and international mobilization on the subject, the chapter 3 emerges. In this part, the Uganda conflict is described, along with the Dominic Ongwen case, an abducted boy who was used as a child-soldier, and now, as an adult, is charged for the commision of several crimes before the ICC. His history in the paramilitary group that abducted him is reported, and also, the issues related to the proceedings, which include the arguments of the defense and prosecution. Thus, before this case, the ICC has to deal with some questions regarding Ongwen’s criminal responsibility, which are analyzed in the fourth chapter of this work. In the latter, there is a description and analysis of the legislation which governs the Court. Moreover, there’s the analysis about the arguments that would support the exclusion of former child soldiers’ criminal responsibility, including Ongwen's case. The hypothetical-deductive, hermeneutic and argumentative method were used in this work. For the research, the applied nature was used, with exploration, description and analysis of the theme. In addition, there was a qualitative approach, documental and bibliographic research.

Keywords: Child soldier; International Criminal Court; criminal responsibility; coercion; mental incapacity.

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2 A PARTICIPAÇÃO DE CRIANÇAS EM CONFLITOS ARMADOS ... 12

2.1 O CONCEITO DE CRIANÇA-SOLDADO. O PROCESSO DE RECRUTAMENTO ... 14

2.2 DOUTRINAÇÃO, TREINAMENTO E COMBATE DAS CRIANÇAS... 19

2.3 DEPOIMENTOS DE CRIANÇAS QUE UM DIA FORAM SOLDADOS ... 21

2.4 AS CONSEQUÊNCIAS DA COAÇÃO PSICOLÓGICA E FÍSICA EM CRIANÇAS-SOLDADO ... 25

2.5 OS PROGRAMAS DE PREVENÇÃO, DESARMAMENTO, DESMOBILIZAÇÃO E REINTEGRAÇÃO DE EX-CRIANÇAS-SOLDADO ... 29

2.6 A LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL E A PROTEÇÃO À CRIANÇA ... 34

3 O CASO THE PROSECUTOR V. DOMINIC ONGWEN NO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL ... 37

3.1 O CONFLITO NA UGANDA E A ATUAÇÃO DO EXÉRCITO DE RESISTÊNCIA DO SENHOR (LRA - LORD'S RESISTANCE ARMY) ... 37

3.2 O CASO DE DOMINIC ONGWEN NO TPI ... 41

3.2.1 As alegações da defesa ... 42

3.2.2 As alegações da acusação ... 45

3.3 CONSIDERAÇÕES RELEVANTES SOBRE O CASO ... 49

4 A RESPONSABILIDADE CRIMINAL DE EX-CRIANÇAS SOLDADO PERANTE O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL: UMA ANÁLISE DO CASO DE DOMINIC ONGWEN... 52

4.1 A RESPONSABILIDADE CRIMINAL E SUAS CAUSAS DE EXCLUSÃO NO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL ... 53

4.2 A CONTÍNUA COAÇÃO, A AUSÊNCIA DE ESCOLHA E A IMPOSSIBILIDADE DE FUGA ... 56

4.3 A AUSÊNCIA DO ELEMENTO PSICOLÓGICO. A ENFERMIDADE OU DEFICIÊNCIA MENTAL ... 61

5 CONCLUSÃO ... 68

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1 INTRODUÇÃO

O recrutamento de crianças com idade inferior a 15 anos realizado por grupos paramilitares é um fenômeno preocupante no cenário global. Tal prática é grave e ganhou destaque como um dos crimes de guerra descritos no Estatuto de Roma (BRASIL, 2002), legislação esta que rege o Tribunal Penal Internacional. Crianças vêm sendo sequestradas e tiradas de seu ambiente familiar para serem utilizadas em conflitos armados, os quais envolvem grupos de rebeldes. Essas crianças são doutrinadas, aprendem a manusear armas, são submetidas a cenas de violência, ao uso de drogas e outras situações contra suas vontades, muitas vezes durante toda a infância e juventude.

Dessa forma, o que esperar de uma criança que cresceu em um ambiente violento e hostil? Conseguiria esta se desenvolver com uma mente saudável capaz de discernir o certo do errado? Diante da violência, da brutalidade e doutrinação por longo período, haveria perda de empatia pelo próximo? Difícil saber a extensão do dano ocasionado, ou até mesmo imaginar a situação de alguém compelido a cometer atos criminosos.

Dentro deste contexto surge o caso de Dominic Ongwen, ex-criança-soldado sequestrada com idade inferior a 15 anos que, neste momento, é acusada perante o TPI por ter cometido cerca de 70 crimes do Estatuto de Roma, incluindo os crimes que um dia sofreu, como o uso e recrutamento de crianças com idade inferior a 15 anos em conflitos armados. Os crimes em questão foram praticados em 2004, enquanto Dominic era um soldado do grupo paramilitar chamado LRA (Lord's Resistance Army), diante da situação conflituosa em Uganda.

Durante toda a sua infância, Ongwen foi forçado a participar de rituais de assassinatos, e espancamentos, bem como foi doutrinado para agir como um rebelde, até crescer e se tornar um dos líderes do grupo. Em junho de 2005, quando Ongwen tinha cerca de 30 anos, foi expedido pelo TPI seu primeiro mandado de prisão. Atualmente Dominic encontra-se na custódia do Tribunal, teve as acusações confirmadas, e, neste momento, o caso está em fase de julgamento.

Ressalte-se que esta é a primeira vez que o Tribunal Penal Internacional processa e julga uma ex-criança-soldado e precisa lidar com questões polêmicas

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acerca do tema, como a possibilidade de se excluir a responsabilidade criminal de uma pessoa que foi vítima e virou réu. Os argumentos a favor têm por escopo a coação e a incompreensão da ilicitude das ações executadas pelo réu ao tempo do crime. Os argumentos em desfavor da exclusão enfatizam o posicionamento de liderança de Ongwen, a sua compreensão e vontade de cometer os crimes, além da ausência de razoabilidade, necessidade e proporcionalidade de seus atos.

A partir da análise da situação das crianças-soldado ao redor do mundo no segundo capítulo deste trabalho, bem como do caso de Dominic Ongwen no Tribunal Penal Internacional, ora explorado no capítulo três, cumpre-se o objetivo desta monografia, que é avaliar a responsabilidade criminal de ex-crianças-sodado perante o TPI, questão analisada no quarto capítulo a ser exposto.

O método utilizado no presente estudo é o hipotético-dedutivo, uma vez que evidências empíricas são utilizadas para testar e eliminar hipóteses. Na esfera jurídica, tem-se a utilização do método hermenêutico, por haver interpretação e análise crítica de legislação, doutrina e jurisprudência. Por fim, o método argumentativo encontra-se presente pela demonstração de um posicionamento acerca do tema.

No que se refere às espécies de pesquisa, tem-se a exploração, descrição e análise do fenômeno das crianças-soldado no mundo e do seu impacto na saúde mental das vítimas. Houve, também, a descrição do caso de Dominic Ongwen e dos acontecimentos mais importantes em Corte. A pesquisa tem natureza aplicada, por se dedicar à solução de um problema específico.

Ressalte-se, ainda, que a forma de abordagem da pesquisa é qualitativa, uma vez que a análise, a atribuição de significados e a conclusão são frutos subjetivos deste trabalho. Realizou-se pesquisa bibliográfica, a exemplo de livros, artigos científicos, monografias, teses de mestrado e outros. Quanto à pesquisa documental, foram coletados materiais como jornais eletrônicos, peças processuais, jurisprudência e tratados internacionais.

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2 A PARTICIPAÇÃO DE CRIANÇAS EM CONFLITOS ARMADOS

Após o desfecho dos anos 80, os conflitos armados passaram a ter uma nova roupagem. Antes de tal marco temporal, as mortes consequentes de tais confrontos eram advindas, em sua maioria, de guerras entre Estados e atingiam os soldados envolvidos. Ocorre que, desde o fim da Guerra Fria, as estatísticas demonstram o envolvimento majoritário de civis em conflitos armados dentro de seus próprios Estados, em especial no continente africano (TABAK, 2009). Segundo Tabak (2009, p. 25 apud HOLSTI, 1996, p. 21), das 164 guerras que ocorreram após a Segunda Guerra Mundial, 77% aconteceram dentro dos Estados. Ademais, conforme aduz a mesma autora (2009, p. 25 apud MÜNKLER, 2005, p. 14), apenas 20% das vítimas fatais dos conflitos armados eram soldados no fim do século XX.

Assim, neste novo cenário de guerra, Schauer e Elbert (2010 p. 312) destacam a atuação de pesquisadores (Elbert, Rockstroh, Kolassa, Schauer, e Neuner, 2006; Kaldor, 1999), os quais evidenciam a “cultura da violência”. Os conflitos armados passaram a ser dominados por unidades paramilitares compostas por rebeldes, mercenários e estrangeiros interessados em guerras civis. Tais situações conflituosas têm suas justificativas baseadas nas divergências entre grupos étnicos e de culturas ou religiões, por exemplo. Contudo, em verdade, os fatores econômicos são as principais causas.

A lógica trazida pelos pesquisadores acima mencionados gira em torno de “troca de favores”, na oportunidade em que partes em guerra obtêm recursos de países estrangeiros e comunidades exiladas, em troca de controle local de recursos como minerais, petróleo ou drogas. Ademais, destacam-se as estratégias de guerra que incluem atrocidades sistematizadas, como massacres, mutilações e estupros em massa, de modo que regiões se tornem inabitáveis e dominadas pelos rebeldes.

Schauer e Elbert (2013, p. 312) explicam que as armas utilizadas são simples, pequenas e de fácil obtenção, bem adequadas para esse tipo de conflito e, inclusive, para o manuseio de crianças. Desta forma, os grupos paramilitares atuam de maneira persistente, sem disciplina, desrespeitando diversas regras e princípios fundamentais do Direito Internacional Humanitário. Como consequência, tem-se fome, limpeza étnica, o comprometimento de serviços básicos, do trabalho, da economia e a

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instauração do completo caos (CORREIA, 2013, p. 11-12).

Insta salientar o fato de que os conflitos armados passaram a contar com a presença majoritária de crianças utilizadas como soldados, as quais ocupam muitas vezes cerca de 80% dos combatentes (SCHAUER; ELBERT, 2010, p. 313). Assim, líderes militares frequentemente recrutam crianças por entenderem que elas respondem melhor à doutrinação, por serem mais leais e questionarem menos aos comandos que aguçariam alguma barreira moral pessoal. Após algumas batalhas, as crianças se tornam cada vez menos sensíveis ao remorso e cada vez mais brutas, superando, inclusive, o nível de brutalidade de adultos que as acompanham neste ambiente hostil (BOYDEN, 2003).

De acordo com Jens Chr. Andvig (2006, p. 17 apud REICH; ACHVARINA, 2005), o fenômeno das crianças-soldado já atingiu diversas regiões do mundo, a exemplo de Angola, Burundi, Uganda, Serra Leoa, Ruanda, Moçambique, Libéria. Mais recentemente, os conflitos que envolvem crianças ampliaram para o Afeganistão, a República Democrática do Congo, Iraque, Somália, Sudão do Sul, Síria, Colômbia, Nigéria e Iémen, conforme o relatório sobre crianças e conflitos armados promovido pela Organização das Nações Unidas (2016).

O Conselho de Segurança da ONU elaborou um relatório em 2015, o qual evidencia algumas situações conflituosas no mundo que envolvem crianças-soldado. A título de exemplo, tem-se o caso do Afeganistão. Entre os anos de 2014 e 2015, o número de fatalidades envolvendo crianças aumentou em 14%, o maior número já registrado neste país. Foram 733 crianças mortas e 2.096 feridas, sendo 42% desses acontecimentos atribuídos à grupos armados. Em 2015, uma em cada quatro vítimas de civis era uma criança. Quanto aos casos de recrutamento no mencionado ano, as estatísticas demonstram que os números registrados em 2014 dobraram.

Na República Central Africana, foram registrados 40 casos de recrutamento. Já na República Democrática do Congo, tem-se 488 crianças verificadas como recrutadas. Em Mali, são 127 casos, sendo 30 verificados. Na Síria, foram verificadas 362 situações de crianças recrutadas. Estes são alguns dados registrados pela ONU (2016). O mencionado relatório elaborado em 2015 estimou que cerca de 15.500 crianças foram vítimas de violações generalizadas naquele ano, fato que demonstra a gravidade do tema ora tratado.

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Ana Catarina Correia (2013, p. 19) explica que:

[...] segundo a organização War Child, 75% dos conflitos armados no mundo tem crianças a combater. Estes integram exércitos regulares ou outros grupos ilegais armados, como grupos rebeldes, e estima-se que 80% são menores de 15 anos.

Ainda, segundo a supramencionada autora, “em 2011 havia aproximadamente 300.000 crianças com menos de 18 anos estavam a ser utilizados nas hostilidades como soldados”. (CORREIA, 2013, p. 20). Certo é que a situação de vulnerabilidade das crianças chama a atenção do mundo e, inclusive, das organizações internacionais. Há um movimento mundial que visa reverter os impactos negativos do recrutamento de crianças, porém tal tema será melhor em tópico oportuno.

2.1 O CONCEITO DE CRIANÇA-SOLDADO. O PROCESSO DE RECRUTAMENTO

Conforme define a Convenção Internacional sobre o Direito das Crianças (CDC, 1990), em seu art. 1º, criança é todo ser humano com menos de dezoito anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes (UNICEF, 1980). Após uma conferência sobre crianças-soldado na África do Sul (Princípios da Cidade do Cabo), em 1997, adotou-se um conceito amplamente aceito pelas organizações não governamentais e agências da ONU, incluindo a UNICEF (United Nations Children's Fund) e o Banco Mundial. A definição diz que criança-soldado é

Qualquer pessoa menor de 18 anos a qual faz parte de qualquer força armada ou grupo armado de qualquer capacidade, regularmente ou não, incluído, mas não limitado a cozinheiros, porteiros, mensageiros e qualquer um que acompanhe estes grupos que não sejam membros da família (UNICEF, 2013, p. 14).

A definição inclui meninas recrutadas para propósitos sexuais e casamento forçado. Ademais, “criança-soldado” não somente se refere a uma criança que está carregando ou que tem carregado armas. A definição é intencionalmente abrangente, de modo a estender a proteção para o máximo de crianças possível, de forma a garantir suas inclusões nos programas de desmobilização e reintegração (NORTE,

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2015).

Os motivos que levam os grupos paramilitares a utilizarem crianças em conflitos armados são muitos. Por serem menos questionadoras, aderem melhor aos comandos e ideais impostos pelos rebeldes. Suas noções de perigo são menores do que as de um adulto. Quanto aos seus atributos físicos, há muitas vantagens para a guerra. Crianças possuem um tamanho reduzido, peso leve e agilidade mais aguçada. Tais características lhes possibilitam um melhor desempenho em determinadas atividades quando comparadas ao rendimento de adultos, a exemplo da colocação e detecção de mina terrestres, ou da retirada de armas de cadáveres (NORTE, 2015, p. 6).

Ademais, conforme explicam Schauer e Elbert (2010), as armas utilizadas nos conflitos civis pós-Guerra Fria passaram a ser pequenas e leves. Desta forma, as crianças se adaptam melhor ao equipamento. Quanto à situação dos países foco das guerras, é importante frisar a incidência de doenças (HIV/AIDS) e a consequente redução da população adulta, fatos que tornam ainda maior a quantidade de crianças e adolescentes disponíveis para recrutamento e abdução.

Destacam-se, também, a resistência, sobrevivência e bravura das crianças-soldado. Estas não avaliam bem os riscos, não se sentem vulneráveis e tampouco têm acesso a um bom campo de visão. Assim, muitas não sobrevivem, já que são alocadas na frente da batalha, escaladas para manusear minas ou carregar bombas como suicidas, por não levantarem suspeitas facilmente. Os custos de uma criança-soldado são inferiores quando se compara a utilização de adultos nas guerras, pois estes últimos exigem mais recursos e maiores armas (SCHAUER; ELBERT, 2010, p. 316).

Além disso, se tornar um combatente é uma opção atraente para pessoas que lidam com a pobreza, a fome, o desemprego e até perseguições por razões étnicas e políticas (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2003). Certo é que, para uma família que passa dificuldades, ter um filho alistado em um grupo paramilitar muitas vezes pode representar proteção, assistência alimentar e financeira.

A entrada de crianças em unidades paramilitares pode se dar tanto de modo voluntário, quanto de modo forçado. Mariana Norte (2015, p. 7), em sua dissertação de mestrado, explica que:

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O recrutamento involuntário/forçado é caracterizado pelo facto das crianças serem constrangidas a incorporarem as forças ou grupos armados, através de ameaças ou do recurso à força (violência). O modo por excelência utilizado é o rapto. As crianças são transferidas das suas casas, escolas ou ruas e levadas para um outro lugar, diferente daquele em que aquelas livremente se encontravam. Estes são os locais preferenciais para o rapto, uma vez que contêm um elevado número de crianças e a presença de polícia ou de outros meios para evitar os raptos são praticamente inexistentes. As que são recrutadas à força “provêm geralmente de grupos especiais de risco: crianças de rua, populações rurais pobres, refugiados e outras pessoas deslocadas (os mais vulneráveis às campanhas eficientes de recrutamento)” devido à forma como facilmente um recrutador consegue intimidá-las.

Megan Nobert (2011, p. 13) evidencia o fato de que as crianças são submetidas a manipulações e ameaças. Os rebeldes costumam lhes dizer que suas famílias serão mortas caso elas neguem a adesão. Quando as famílias são efetivamente mortas, há poucas alternativas para as crianças que não a adesão ao grupo, seja por persuasão ou por falta de escolha. Nobert chama atenção para um método de doutrinação que envolve a tortura e o assassinato assistidos, de modo que as crianças entendam que, caso haja desobediência, aquelas más consequências lhes atingirão. Tais cenas também são demonstrações instrucionais do que fazer quando o mesmo lhes for requerido pelos superiores.

Nota-se que o “aprendizado por exemplo” é uma prática antiga, tanto em grupos de rebeldes, como em grupos militares. Tais unidades geralmente apresentam configurações hierárquicas, seja em contextos conflituosos, de seguimento radical, seja em regimes ditatoriais. O que se visa é uma coação psicológica de repressão. Há uma associação do acontecimento ruim ao comportamento repudiado pelo grupo. Quando tal prática é dirigida às crianças, a absorção dos valores é ainda mais incorporada, pois a fase da infância envolve primeiros aprendizados, o sentimento de insegurança, além da formação moral e realística de uma pessoa. Por toda a vulnerabilidade da criança, esta representa um alvo vantajoso para os recrutadores, adultos intimidadores e poderosos.

Conforme aduz Peter Singer (2005), a cada três crianças-soldado, duas têm alguma iniciativa no seu próprio recrutamento. Assim, caracteriza-se como recrutamento ou alistamento voluntário a atitude espontânea da criança de aderir ao grupo. Neste sentido, afirma Mariana Norte (2015, p. 8):

Todavia, aquelas que enveredam por esta via, acreditam que não têm outra opção. O concreto meio onde habitam, bem como as condições de vida que

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enfrentam é determinante nestes casos. Perante um cenário de fome, associado a má nutrição, doenças e à ausência de cuidados médicos, as crianças, sentindo-se impotentes por não puderem fugir à situação degradante em que se encontram, vislumbram na integração nas forças ou grupos armados uma forma de sobrevivência.

“As mais das vezes, as crianças órfãs ou refugiadas são movidas por um desejo de vingança pela morte dos seus pais ou familiares”. (NORTE, 2015, p. 8). Desta forma, os recrutadores contam com um engajamento maior de uma criança tomada por sentimentos de revolta. “Sentem-se frustradas, sozinhas e perdidas, pelo que a vida militar se lhes afigura um meio para fazerem “justiça pelas próprias mãos”, sentindo-se mais seguras empunhando uma arma”. (NORTE, 2015, p. 8). Ocorre que há controvérsias quando se atesta a livre escolha de uma criança.

Conforme os pensamentos de Schauer e Elbert (2010), do ponto de vista psicológico e social, a escolha de uma criança de se juntar e permanecer em um grupo paramilitar não pode ser considerada voluntária. Dentre as diversas razões trazidas pelos autores, destacam-se a compreensão limitada das crianças a respeito das consequências de estar no grupo com os rebeldes, a decisão tomada pelos pais, as circunstâncias de vulnerabilidade ante a necessidade de sobrevivência, seja por estarem órfãs ou refugiadas. Ademais, destacam-se também as meninas que buscam proteção de estupros e agressões (SCHAUER; ELBERT, 2010, p. 318).

As escolhas tomadas por crianças não necessariamente devem ser entendidas como atos voluntários. A sua decisão é influenciada por diversas questões, geralmente em um contexto de poucas ou até nenhuma opção que não seja a adesão ao grupo dos rebeldes. Em um ambiente caótico, tomado pela fome, guerra e o desemprego, a criança imatura e sem experiência de vida precisa tomar algum rumo. Ela pode enxergar no grupo uma oportunidade de sobrevivência e, inclusive, muitas vezes é seduzida pelo discurso manipulador dos combatentes. Ana Catarina Correia (2013) menciona um estudo com crianças-soldado na África o qual “indicava que cerca de 80% já haviam presenciado confrontos perto das casas onde viviam, 70% tinham ficado sem casa e cerca de 59% tinham perdido um familiar na guerra”. (CORREIA, 2013, p. 48).

Alice Schmidt (2007, p. 51) explica que há diversos motivos que levam uma criança a voluntariamente participar de grupos paramilitares, sendo os principais: as necessidades materiais, ideologias, prestígio por estar no exército, o sentimento de

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exclusão, o desejo de vingança e medo. Há, também, o encorajamento dado pelas famílias das crianças e amigos. Schmidt traz os estudos de Sesay (2003) realizado em Serra Leoa e na Libéria, o qual constatou que três quartos das crianças-soldado voluntariamente aderiram ao dos rebeldes, especialmente ao lado em favor do governo. Já na guerra de Moçambique entre Frelimo e Renamo, cerca de 90% das crianças combatentes foram forçadamente recrutadas.

Apesar de diversas pesquisas apontarem o recrutamento voluntário como a maioria dos casos em conflitos armados, e de exceções existirem, tal circunstância não pode ser confundida como uma lei universal, segundo Alice Schmidt (2007, p. 67). A mencionada pesquisadora defende que a voluntariedade “real” de crianças varia de acordo com o conflito e com local. Assim, por ser um fenômeno mundial, as motivações da adesão são variáveis e merecem estudos e análise caso a caso.

Por fim, há de se ressaltar que o recrutamento de crianças para serviços em foras armada deve ser repudiado em todas as suas formas, seja este coordenado por forças paramilitares, seja pelo próprio governo. Neste sentido, ao comentar uma sentença dada pelo Tribunal Especial para Serra Leoa (2009), Ana Catarina Correia (2013, p. 126) explica:

[...] o alistamento não poderia ser restritivamente definido como um processo formal naqueles casos em que o grupo armado não é uma organização militar convencional, devendo antes ser entendido num sentido lato, de forma a incluir “qualquer conduta que aceite crianças como parte da milícia. Tal conduta inclui fazê-las participar em operações militares”. Pelo contrário, o recrutamento significa “o alistamento compulsório de pessoas no serviço militar”, o que, estando normalmente regulado pela legislação estadual, deve ser entendido como abrangendo também o recrutamento forçado em que os indivíduos são recrutados por meios ilícitos, como o uso da força ou rapto. Além disso, sublinha que a “distinção entre alistamento voluntário e conscrição é, de algum modo, artificial”, questionando o valor de um alistamento voluntário atribuído a crianças de idade inferior a 15 anos, particularmente no contexto de um conflito em que prevalecem abusos dos direitos humanos.

Nota-se que a legislação internacional proíbe veementemente a conscrição, alistamento ou uso de crianças om idade inferior a 15 anos para participação em conflitos armados. A disciplina de tal matéria para Estados teve seu início no Protocolo Adicional da Convenção de Genebra de 1977 (BRASIL, 1957), com a Convenção Internacional dos Direitos da Criança (BRASIL, 1990). Em 1998, o Tribunal Penal Internacional, através do Estatuto de Roma (BRASIL, 2002), se referiu ao recrutamento realizado de crianças menores de 15 anos por Forças Armadas

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Nacionais, bem como aos coordenados por grupos paramilitares em conflitos internos, sendo em ambos os casos crime de guerra. Quanto à legislação internacional, este tema será tratado em capítulo oportuno.

2.2 DOUTRINAÇÃO, TREINAMENTO E COMBATE DAS CRIANÇAS

Segundo Correia (2013), o processo de transformação de uma criança em soldado envolve três fases, que seriam a doutrinação, o treino e o combate. Tal processo visa reconfigurar a identidade da criança, de forma a transformá-la em um assassino sem piedade. Seu vínculo com a sociedade é desfeito e o intuito dos recrutadores é induzi-las a cometer atos reprovados na vida civil. Há, portanto, uma separação da família e dos amigos, para uma convivência rígida, cheia de privações, com disciplina e contato constante com a morte. Há manipulação psicológica e agressão física forçada contra membros da comunidade e da família das crianças.

Os rebeldes visam fazer com que a criança pense que sofrerá rejeição de todos da sociedade que os viram cometer as atrocidades, sendo a participação no grupo um caminho sem volta (TABAK, 2009). “Através de exposição progressiva à violência e remoção de responsabilidade pessoal por matar, até pessoas normais podem se tornar assassinos efetivos”. (WESSELS, 2006, p. 59).

Importante frisar que o processo de doutrinação varia de acordo com o tipo de recrutamento empregado para cada criança. Uma criança raptada, por exemplo, considera um castigo como injusto, ao passo que outra, cuja adesão se deu de modo voluntário, entende ser justificável (TABAK, 2009 apud UNICEF, 2003). Utilizam-se os recrutadores do medo, da brutalidade, da violência e da manipulação psicológica para manterem as crianças obedientes. O processo de desumanização se materializa no despertar do ódio e do desejo de vingança ante cenas de violência expostas às crianças, inclusive por meio de rituais de execução quem incluem até práticas canibalescas, a exemplo da ingestão de pedaços do coração do inimigo morto. Ao serem acostumadas e familiarizadas com atos brutais, sentem cada vez menos remorso. Há, também, motivações diversas, incluindo remuneração, homenagens e aceitação no grupo (CORREIA, 2013, p. 52-54).

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Como o processo de doutrinação envolve desconstrução e ressignificação de identidade, há, inclusive, mudanças físicas. Conforme explica Peter Singer (2006), as crianças são submetidas a novos cortes de cabelo e à marcação do corpo com tatuagens que simbolizam o pertencimento ao grupo, fato que dificulta seu regresso à sociedade. Certo é que a imersão da criança em um ambiente de ideologias e valores deturpados é realizada de maneira violenta, por meio de uma estrutura de grupo hierarquizada.

A etapa seguinte necessária para a formação de uma criança-soldado é o treinamento. Tal período varia e pode ocorrer logo após o recrutamento e, novamente, depois da experiência do combate, em nível mais avançado (NORTE, 2015, p. 37). Peter Singer (2006) evidencia as competências básicas de um soldado de infantaria que são ensinadas às crianças, o que inclui o disparo e limpeza de armas, o manuseio de minas e a montagem de emboscadas. Os recrutados são obrigados a participarem de paradas e marchas militares, para que tenham disciplina e espírito de corpo.

Durante o treinamento pesado, as crianças são submetidas a diversos abusos. Rafael Magalhães (2015, p. 53), ao comentar o caso de Lubanga, recrutador de crianças condenado pelo TPI, evidencia:

[...] um vídeo mostra claramente o acusado interagindo com crianças, visivelmente menores de quinze anos, onde as encoraja ratificando a importância do serviço prestado e afirmando que assim que treinamento terminasse, elas receberam armas de fogo e seriam relocadas para proteger a população. A realidade nos campos de treinamento não se limitava apenas em intensa atividade física ou treinamento com armas. Quando não eram capazes de atender os requisitos do treinamento, ou quando cometiam alguma falha, as crianças eram severamente punidas com canos de ferro, chicotes, espancamento e outros métodos comparados à tortura, o que instaurava uma atmosfera de medo e submissão. Algumas testemunhas afirmaram que viram a morte de pelo menos duas crianças durante o treinamento devido a castigos sofridos por não desempenhar as atividades com êxito. Uma testemunha em particular alegou ter visto uma criança faminta que chorava pela mãe e que as autoridades locais afirmavam que aquilo era necessário para formação de verdadeiros soldados.

Por fim, após o fim do treinamento, a etapa seguinte é o combate. O treinamento violento das crianças as torna assassinas cruéis. Na fase da infância tem-se imaturidade e pouca noção para se avaliar consequências e tais circunstâncias geram crianças destemidas. Os grupos armados agrupam as crianças-soldado por idade e os seus alvos principais são os civis (CORREIA, 2013, p. 56).

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traz o exemplo das batalhas coordenadas pelo LRA (Lord’s Resistance Army). Cerca de 80% das crianças são colocadas na linha de frente do conflito, enquanto os adultos se posicionam ao fundo. Os jovens combatentes são frequentemente utilizados como porteiros e designados para carregar comida, munição e soldados feridos. Quanto às meninas recrutadas no LRA, os papéis principais são destinados para a portaria, para a produção de comida e até escravidão sexual (BAINOMUGISHA, 2010, p. 60-61).

2.3 DEPOIMENTOS DE CRIANÇAS QUE UM DIA FORAM SOLDADOS

Muito se fala a respeito do fenômeno das crianças-soldado, porém é essencial que suas vozes sejam escutadas. Alguns dos entrevistados já são adultos e outros ainda expressam a realidade vivida enquanto criança. Schauer e Elbert (2010), na obra Trauma Rehabilitation After War and Conflict: Community and Individual Perspectives, trazem os relatos de ex-combatentes recrutados na infância. P.A.N, aos seus 29 anos (2009), explica que foi recrutado pelo Mai-Mai quando tinha 16, no Kivu do Norte, República Democrática do Congo, e serviu ao grupo por um ano. Em seu depoimento, destaca que:

A vila inteira estava tomada pelos Hutus e inclusive as nossas casas e shambas (campos) estavam ocupados por eles. A população dos aldeões estava vivendo desabrigada. Minha família inteira e todos os meus parentes e amigos estavam desabrigados. Então nós decidimos nos proteger, proteger a nossa “terra” e lutar. Todos os homens jovens estavam nessa, membros da família, amigos e a comunidade inteira. Sabe, nossos pais não poderiam nos dar suporte, não havia mais taxas escolares e não mais lares. Quando eu fiz 16 anos, eu me juntei ao Mai-Mai [...] (Tradução nossa)

Nota-se que o jovem depoente evidencia a influência de seu ambiente de convivência, uma vez que seus amigos, toda a comunidade e seus familiares estavam envolvidos na luta pela terra. Por não haver suporte, o menino se juntou ao grupo de rebeldes. O relato continua:

[...] Nós lutávamos para eliminar os Hutus, e existiam dois grupos deles, os Hutus velhos quem tinham vindo mais cedo e aqueles que vieram durando o genocídio de Ruanda em 1994. Então eu me juntei para ajudar a criar um movimento de resistência e proteger nossa casa. Durante minha permanência no grupo, as coisas mudaram e claro que depois eu permaneci também porque eu tinha medo de ser morto caso fugisse. Mas existia outra voz em mim, a qual queria ficar e aprender o melhor que eu podia a ser um

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bom combatente e especialmente a aprender como ter disciplina interior o suficiente para ser forte pelo resto da minha vida, de forma que eu jamais ficasse desamparado novamente. (SCHAUER; ELBERT, 2010, p. 320, tradução nossa).

Percebe-se que o ambiente de convivência da criança a influência de maneira quase que determinante. Se a família, amigos e toda a comunidade estão envolvidas com a situação conflituosa, não há alternativa que dê mais esperança e suporte para uma criança do que sua adesão ao grupo de guerra. Não há segurança, moradia ou estudos que possam trazer paz e uma rotina normal. O desejo de se tornar um “homem forte” ou um “guerreiro” toma os sentimentos dos meninos, que visam proteger a si próprios e as suas famílias. Ademais, o medo de ser assassinado ao deixar o grupo atormenta as crianças, conforme o relato acima descrito. Outro menino entrevistado aos 16 anos (2009), K.K.G, também ex-combatente do Mai-Mai, foi recrutado aos 13 e serviu ao grupo por 3 anos:

Quando eu estava na floresta, não sentia nada, eu estava drogado todo o tempo. Mas depois que eu saí e agora estou no centro de transição, eu tenho esses terríveis pesadelos. Eles são sempre sobre crianças que nós matamos, especialmente seus crânios esmagados e eu escuto a voz do comandante me dizendo para fazer coisas. Eu acordo e fico assustado. Meu coração está batendo forte estes dias e algo na minha cabeça é tão forte. Por um lado, eu tenho uma nova vida e deixei a floresta para trás e também toda as dificuldades daqueles dias e, por outro, eu penso nos tempos e especialmente nas drogas que tivemos. Às vezes a noite eu caminho para fora do prédio, especialmente quando eu tenho os sonhos e olho para o céu. Eu somente gostaria que minha cabeça voltasse ao normal novamente. (SCHAUER; ELBERT, 2010, p. 320, tradução nossa).

O relato acima descrito demonstra a gravidade dos traumas que pode sofrer uma criança-soldado. Muitas são drogadas e agem sem consciência dos seus atos, de maneira totalmente automática. F.O., um menino de 13 anos (2006) relata a sua experiência de 3 anos no grupo LRA, Norte da Uganda:

Eu nasci em 1994 em uma pequena aldeia em Uganda. Minha mãe costumava cozinhar feijão tão bem para mim e meu pai. Quando eu tinha 6 anos, meus pais tiveram uma briga e minha mãe foi ferida pelo meu pai com uma faca. Ele sempre iria começar a agir de uma maneira estranha quando ele estava bêbado, ele agia como se ainda fosse um soldado no mato. Aos 7 anos, finalmente comecei a ir para a escola, foi um bom dia. Aos 11 anos, fui abduzido e no mesmo dia eles me fizeram matar 3 dos meus tios. Alguns dias depois, eles me "iniciaram" para ser um soldado e me deram 100 golpes de espancamento. Um ano depois, fui forçado a cortar as duas mãos de um caçador com um hapanga. No mesmo ano, nós lutamos uma grande batalha com a UPDF, quando meu amigo foi morto. Quando comecei a chorar, o comandante me obrigou a deitar em seu sangue. Muitas batalhas sucederam esta naquele ano, incluindo ataques aéreos. Muitas vezes passávamos fome, já que não havia tempo para encontrar comida. [...] (Tradução nossa)

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Nota-se que a criança do relato acima evidencia que já tinha problemas familiares e uma educação comprometida por ter passado a frequentar a escola somente aos 7 anos, uma realidade muito comum em comunidades carentes. Segue a continuação de seu relato:

Uma vez tivemos que emboscar um ônibus com civis na estrada em direção a Atiok para nos apossar de comida; muitas pessoas morreram e foram queimadas. Dois dias depois, nos pediram para atacar um acampamento. Nos disseram para trazer comida e meninas; encontramos três, mas fui forçado a matar duas, pois elas não conseguiram carregar as cargas pesadas e nos acompanhar. Não demorou muito após este incidente para que no mesmo ano que eu tivesse a chance de escapar durante uma batalha com o UPDF. Eu tinha 13 anos quando cheguei a este centro. (SCHAUER; ELBERT, 2010, p. 322, tradução nossa).

As crianças são tratadas com muita hostilidade e obrigadas a cometerem atos de violência. Suas vidas são “descartáveis” aos olhos dos rebeldes. O jovem soldado que não consegue servir de maneira minimamente satisfatória é morto sem piedade. Jo Boyden (2003, p. 327) cita os estudos de Krijn Peters e Paul Richards (1998), pesquisadores que entrevistaram um ex-combatente do grupo Kamajors (Serra Leoa), aos seus 18 anos:

Havia meninos pequenos que nem sequer eram da minha categoria. Quinze,

quatorze anos e meninos ainda menores. Eles são mais corajosos do que os meninos maiores. Uma pessoa [não ainda atingindo] a adolescência não pensa muito. O que ele desejar fazer, ele fará. (tradução nossa).

Há depoimentos de meninas que são raptadas e expostas a diversos abusos, como o caso de V.A. Aos seus 20 anos (2006), relata que passou 10 anos a serviço do LRA, grupo que a abduziu, in verbis:

Houve muitas outras batalhas, mas esta foi a pior que eu já estive. Desta vez, eles nos enviaram para trabalhar em Atiak à noite. Nós nos separamos em grupos menores e fomos instruídos a saquear o campo de desabrigados lá. Estávamos prestes a entrar quando os cachorros latiram. Agachei-me com os outros e esperei a certa distância. Os garotos foram em frente. A ideia para nós meninas era atirar e assustar os soldados e fazer o grupo parecer maior. Eu tinha uma garota recém-sequestrada comigo. Uma bomba veio tão rápido que eu não percebi até ela detonar. Meu corpo ficou paralisado e as partículas da bomba entraram no meu corpo. Meu braço esquerdo, o interior da minha perna esquerda e minha perna direita ficaram feridos. Nós tentamos fugir, mas eu só podia me mover por uma pequena distância. O avião voltou para nos atacar, eu corri, levando a recém sequestrada comigo... (SCHAUER; ELBERT, 2010, p. 341, tradução nossa).

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escravidão sexual, como pode ser verificado no depoimento de A.A., uma jovem que contribuiu com seu relato aos 15 anos (2006). Ela viveu por 3 anos no grupo LRA e descreve os momentos após sua abdução:

Eles me desamarraram e me disseram para sentar com um homem. Ele era muito mais velho que eu, parecia maduro, como um adulto. Eu tinha 13 anos na época. Eu não gostei dele à primeira vista, mas tive que me sentar ao lado dele. Ele me disse que havia mandado os garotos irem buscar uma garota para ser a esposa dele e que eu era a escolhida. Então ele perguntou apenas meu nome. Ele não falou mais nada. Meu coração estava batendo muito. Eu estava com medo, já que não tinha certeza do que ele queria dizer. Algumas pessoas estavam cozinhando verduras e eu comi um pouco de comida. Depois de um tempo o homem me pediu para ir com ele. Nós fomos para uma clareira debaixo de uma árvore. Primeiro pensei que ele me afastou dos outros porque ele queria me matar. Ele me disse para deitar e disse que dormiríamos lá. Eu me deitei de lado, como se fosse dormir. Ele se chateou com isso e começou a me bater. Eu estava surpresa. Ele deu um tapa no meu rosto e na minha cabeça. Ele disse: “Não seja burra. Você sabe o que eu quero de você” [...] (tradução nossa)

As palavras dessa menina são chocantes, porém a leitura desse tipo de depoimento é necessária para a compreensão da dimensão do sofrimento das meninas, que não só são exploradas na guerra como combatentes, mas também como escravas sexuais. Ela segue seu relato:

Então ele me empurrou para o chão e deitou em mim. Meu coração estava batendo muito rápido. Ele tinha um mau cheiro corporal. Então ele se forçou em mim. Ele disse: "se você chorar, eu vou te matar." Quando ouvi suas palavras, fiquei com tanto medo que comecei a chorar. Isso o fez colocar uma arma na minha cabeça. Ele me avisou. Eu podia sentir a arma. Eu parei de chorar. Ele continuou me estuprando e quando terminou ele me deixou sozinha. Ele me disse para levantar. Eu não era capaz. Tudo no meu corpo doía. Daí em diante, ele me estuprou todas as noites. Eu percebi que é assim que seria para mim. Toda noite nós íamos para aquela árvore. (SCHAUER; ELBERT, 2010, p. 341, tradução nossa).

Conforme será explicado mais adiante neste trabalho, o grupo paramilitar LRA recrutava meninas e mulheres para servirem aos rebeldes como esposas. A defesa de Dominic Ongwen, ex-criança-soldado e atual réu do TPI, cujo caso será também analisado neste trabalho, alega que faz parte da ideologia do LRA a reprodução e o engrandecimento do exército. Dominic é acusado de ter praticado estupro, casamento forçado, escravidão sexual e tortura de mulheres, porém seu advogado sustenta que o réu e nenhum soldado poderia negar as esposas, por ordem do Líder (INTERNATIONAL CRIMINAL COURT, 2016). Este caso tem relação com o relato da menina acima recortado e será novamente abordado adiante.

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2.4 AS CONSEQUÊNCIAS DA COAÇÃO PSICOLÓGICA E FÍSICA EM CRIANÇAS-SOLDADO

Crianças-soldado são submetidas à violência por coação física e psicológica. Ocorre que toda essa circunstância gera graves consequências nos corpos e nas mentes dos jovens combatentes. Alguns pesquisadores sustentam que atividades repetitivas realizadas pelas crianças desenvolvem as competências valorizadas por sua cultura. Assim, caso adotem comportamentos violentos a longo prazo, por meio de lutas armadas, as crianças desenvolverão hábitos violentos, especialmente se a violência for glorificada por imagens heroicas (BOYDEN, 2003, p. 351 apud DAWES, 2003).

Grande parte dos estudos que envolvem crianças em conflitos têm o foco na prevalência do Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), algo que geralmente é associado ao contato com guerras. O problema deste tipo de estudo ou pesquisa é que muitas vezes não consegue desagregar uma porção da população como um todo por idade, status social ou até gênero. Os estudos que envolvem as crianças são realizados de modo isolado do ambiente de conflito que vivenciou, sendo as referidas tratadas como vítimas genéricas. Dada a complexidade da matéria, um exame sério deve ser realizado, por apresentar estruturas ideacionais, relações sociais e instituições que formam o desenvolvimento dos jovens (BOYDEN, 2003, p. 352).

Boyden (2003, p. 352) destaca estudos de diversos pesquisadores (apud GARBARINO; KOSTELNY; DUBROW, 1991; LYONS, 1971; MCHAN, 1985), no sentido de que o desenvolvimento da moralidade em crianças envolvidas em conflitos sofre profunda desorientação, restando “presos” na fase primitiva deste desenvolvimento. Há perda da empatia, aumento da agressividade, mudança de atitudes, de crenças e da personalidade.

O supramencionado autor evidencia as conclusões de Bruce Auster e seus colegas Auster, Whitelaw, Roberts e Shapiro (2000), os quais afirmam categoricamente que a guerra deforma o senso infantil do certo e errado, ao passo que crianças de doze anos são transformadas em assassinos frios. Neil Boothby e Christine Knudsen (2000) são também citados e destacam as consequências

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negativas da guerra no desenvolvimento moral das crianças, porém observa que isto varia de acordo com o tempo de experiência nos grupos armados.

Há poucas evidências empíricas sobre a forma de recrutamento (voluntário ou forçado) e a sua influência direta na deturpação moral da criança, porém Rachel Brett (2003) aponta que aparentemente não verificou abalo aos valores morais de crianças voluntárias, as quais estavam cientes e arrependidas de seus atos. Quanto às forçadas, estas não teriam internalizado a violência com atividade legítima, porém é difícil julgar, dada a escassez de dados a respeito do tema (BOYDEN, 2003, p. 353 apud BRETT, 2003).

Quanto ao comentário acima destacado de Rachel Brett, seria necessária uma análise profunda de sua obra e de seus achados para se entender melhor seu posicionamento. Contudo, há de se observar que diversos fatores tornam a experiência de cada criança-soldado única, como o local da guerra, o envolvimento de questões políticas, étnicas, de crenças, religião, o nível de pobreza, de hostilidade, de escolaridade, a idade da criança, seu tempo de serviço no grupo e outras variáveis.

Não se pode comparar a experiência de alguém que serviu ao grupo como cozinheiro por 1 ano, por exemplo, com a vivência de outra pessoa que foi drogada, forçada a cometer atos de extrema violência e a seguir uma doutrinação rigorosa por 10 anos. Tanto a gravidade de cada caso quanto as condições pessoais de cada da criança, como personalidade, caráter e temperamento, repercutirão no seu nível de deturpação moral e trauma.

Segundo Tabak (2009, p. 49), as crianças-soldado sofrem pesadelos, problemas com concentração, tristeza profunda, com o controle da raiva, com o sentimento de abandono, exclusão e desespero, além da dependência de drogas como o álcool. Há também consequências físicas, como a perda da audição, da visão ou de algum membro do corpo, além da desnutrição. Peter Singer (2006, p. 111) aborda o tema das doenças sexualmente transmissíveis. Ele destaca que tais enfermidades atingem mais as crianças do que os soldados adultos.

Em um teste realizado em Uganda, 60% dos meninos combatentes tinham ao menos uma doença sexualmente transmissível, enquanto que tal estatística para as meninas representava 70 a 80% (SAHANA, [s.d.], p. 231). Quanto à dependência de drogas, destaca-se o conflito em Serra Leoa, no qual mais de 80% dos combatentes

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da FRU (Frente Revolucionária Unida) faziam uso de heroína ou cocaína, segundo Peter Singer (2006, p. 82). Nota-se que tais entorpecentes são utilizados para maximizar a performance dos combates e muitas vezes manter as crianças mais agressivas e fora de si.

Ademais, quanto às consequências psicológicas, destaca-se o estresse pós-traumático, tema bastante explorado por pesquisadores. Tal condição se resume a uma ansiedade em tempo posterior a uma circunstância traumática (USA, [s.d.]). O evento que ocasionou o trauma pode ter ameaçado a vida de alguém, ou a integridade física. Os sintomas podem envolver um grande sentimento de medo, confusão ou forte irritação (D’ALESSANDRA, [s.d.], p. 5).

Monster (2014, p. 53 apud PFEIFFER; ELBERT, 2011) indica uma pesquisa realizada com ex-crianças-soldado abduzidas e chegaram à conclusão que 49% delas sofriam de estresse pós-traumático, 70% tinham sintomas de depressão e 59% apresentavam ansiedade extrema. Insta ressaltar que os efeitos da experiência na guerra podem acompanhar os ex-combatentes jovens por anos, o que dificulta a sua reintegração e convivência na sociedade. Há casos em que os sintomas traumáticos ainda persistiam mesmo após o fim da guerra 15 anos depois (BOOTHBY, N., CRAWFORD, J., HALPERIN, J., 2006).

Michael Wessels é Phd e professor da Universidade de Columbia em um programa de migração forçada e saúde. Pesquisador de vasta produção acadêmica, tem experiência na área de psicologia social, impactos de violência e guerra em crianças. Regularmente Wessels é consultado pelas agências da ONU, governos e doadores nas questões relacionadas à proteção e suporte para crianças em comunidades e escolas (UNIVERSITY COLUMBIA, [s.d.]). Ele é autor do livro Child soldiers: From violence to protection (Editora Harvard University, 2006) e nesta obra há muitos estudos interessantes.

Wessels (2006) traz um estudo realizado com crianças angolanas e esses dados que merecem destaque. 50% das crianças afirmam que quando pensam no passado, tentam esquecer e bloquear o que aconteceu. 41% alegaram ter dificuldades para dormir. 20% aduzem que sempre sentem medo de algo terrível acontecer. 16% reportaram que pensam na possibilidade do que aconteceu acontecer novamente. 39% afirmaram se sentir mais facilmente nervosos e assustados agora do que antes da guerra. 37% alegam lembrar do que ocorreu na guerra. 35.6% dizem ter problemas

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de concentração. 31.6% da ex-crianças-soldado, por fim, afirmam ter palpitações cardíacas (apud CCF/Angola, 1998). Um outro estudo realizado em Uganda com ex-combatentes crianças, demonstrou que 97% destas apresentava sintomas de estresse pós-traumático (apud DERLUYN et al., 2004).

Necessário se faz destacar o trecho abaixo da supramencionada obra de Wessels (2006):

Essa ênfase na patologia, que ressoa com uma visão mais antiga da psiquiatria de que as experiências da infância estabelecem as bases para a psicopatologia de adultos, faz parte de uma tendência mais ampla da pesquisa psicológica, bem como da escrita popular de se ver ex-crianças-soldado como emocionalmente marcadas e moralmente prejudicadas. Essas representações, apesar de sensacionais e cativantes, não se encaixam em um crescente conjunto de evidências quando a maioria das ex-crianças-soldado funciona bem, exibe raciocínios morais complexos e desafia os estereótipos de predadores (Boothbby, Crawford, and Halperin 2006; Boyden 2003; Cairns 1996 Straker 1992; Wessells and Jonah 2006). (Tradução nossa).

É evidente que os estudos da psicologia evoluem, os conceitos mudam e estereótipos são descontruídos. O autor segue sua exposição:

Ao se analisar como as crianças foram afetadas, é preciso olhar por trás os rótulos psicológicos e explorar a capacidade de adaptação e a funcionalidade das crianças-soldados. Isso mostra uma nova imagem, mostrando que a maioria das ex-crianças-soldado é mais resiliente do que se pensava anteriormente (Annan e Blattman, 2006). Em geral, a resiliência dos jovens tem sido subestimada (Sommers, 2006). (Tradução nossa).

Os estudos de Wessels (2006) trazem uma reflexão interessante. Não se pode subestimar a capacidade da criança de ser resiliente. A doutrinação e a estadia da criança em grupos paramilitares não são fatores necessariamente determinantes para a deturpação completa de sua moralidade e dos seus valores. Considera-se uma série de fatores que podem preservar o discernimento do que é certo e do que é errado, até porque muitas crianças são sequestradas com mais idade, aos 14 anos, por exemplo. Nesta idade já há uma vivência considerável, uma educação familiar e provável educação escolar.

Nota-se, ainda, que parte das crianças é abduzida e não compactua, pelo menos inicialmente, com as práticas que é forçada a adotar. Outra grande parte dos jovens combatentes se voluntaria por alguma necessidade, como dinheiro, comida ou proteção, e isso não significa que esta não reconhece a reprovabilidade de suas ações. Há um senso do que é certo e errado, uma vez que muitos se arrependem do

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que fizeram, se espantam com as ações do grupo e grande parte deseja arriscar suas vidas para escapar (WESSELS, 2006).

Vários fatores tornam os efeitos traumática mais ou menos graves, havendo uma interação complexa, ao longo do tempo, de fatores de risco e proteção em ecologias sociais das crianças, de fatores individuais, a exemplo de temperamento, questões biológicas, incluindo neurológicos e epigenéticos (SWEATT et al., 2013).

Por outro lado, apesar de Wessels (2006) apresentar estudos favoráveis quanto à resiliência das crianças e ao novo entendimento sobre a psicopatologia, demonstra, também, que a integridade moral de ex-crianças-soldado pode sim ser danificada. A título de exemplo, tem-se o caso de um garoto angolano, ex-criança-soldado, que desenvolveu desejo pelo gosto e cheiro de sangue humano, além da obsessão de matar, emoções que lhe causava insegurança sobre a sua adaptação à sociedade.

O caso da mencionada criança não é incomum. Algumas crianças se redefinem, aderem à outra identidade e aos valores do grupo paramilitar. Matar pode se tornar algo natural para alguns, contudo, para outros, uma estratégia de compartimentalização, havendo marginalização os pensamentos e valores civis em detrimento dos termos e regras da guerra. Com tal estratégia, a reintegração à sociedade é facilitada.

2.5 OS PROGRAMAS DE PREVENÇÃO, DESARMAMENTO, DESMOBILIZAÇÃO E REINTEGRAÇÃO DE EX-CRIANÇAS-SOLDADO

As agências da ONU constantemente estabelecem programas de Desarmamento, Desmobilização1 e Reintegração. A reintegração das

ex-crianças-soldado é um momento importante que merece cuidados específicos. Os suportes frequentemente usados envolvem rastreamento familiar e reunificação, mediação familiar de conflitos, educação formal e informal, suporte psicossocial para saúde mental e subsistência (WESSELS, 2006).

Além da assistência com vestuário, alimentação, moradia, educação

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fundamental e profissionalizante, um foco especial é dado ao suporte psicológico das crianças, uma vez que as experiências geram traumas e uma nova realidade exigirá um ajuste emocional. Os programas de DDR buscam reestabelecer uma rotina diária às ex-crianças-soldado, para que elas aprendam a lidar normalmente com as adversidades da vida sem o uso da violência (SOUZA, 2010).

Ao longo de sua estadia no grupo paramilitar, uma criança resta privada de diversas oportunidades para se desenvolver fisicamente, intelectualmente e emocionalmente. A reintegração deve se destinar à restauração da saúde, do respeito próprio e da dignidade do ex-combatente. (UN GENERAL ASSEMBLY 51/306, 1996). Wessels (2004) explica que a maioria das crianças são resilientes e capazes de serem reintegradas à sociedade, cada uma com seu grau de sucesso, em virtude de fatores particulares.

A UNICEF (United Nations Children’s Fund) tem um papel fundamental nos programas de Prevenção, Desarmamento, Desmobilização e Reintegração de ex-crianças-soldado. A prevenção envolve a conscientização dos jovens a respeito de seus direitos, de forma que estes não participem de guerras por ausência de oportunidade. Também é necessário que se previna o recrutamento de ex-recrutados (UNICEF, 2002). Quando ao desarmamento, é necessário que o ex-combatentes entreguem suas armas e que estas sejam submetidas à destruição em massa, pois há certo valor simbólico nesta atitude. Tal processo preza pela concentração de armas em poucos locais de controle militar seguro e preparado (WESSELS, 2004).

As organizações que promovem os mencionados programas são a UNICEF, a OIT (Organização Internacional do Trabalho), a OMS (Organização Mundial da Saúde), o Movimento Internacional da Cruz Vermelha, além das organizações não governamentais. Houve importantes conferências destinada aos supramencionados programas, como a do Princípios da Cidade do Cabo de 1997 e dos Princípios de Paris de 2007, havendo reunião de especialistas e colaboradores (CORREIA, 2013).

Correia (2013) explica que a primeira mencionada conferências criou uma série de recomendações a serem seguidas por governos e comunidades nos países atingidos por conflitos armados na África, com o objetivo de acabar com as violações dos direitos das crianças. Já a segunda conferência, em Paris, alistou ações e guias voltadas para a proteção de crianças envolvidas em conflitos armados, seja para desmobilizá-las, seja para reintegrá-las. Tais compromissos completam outros

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instrumentos jurídicos que já existem no Conselho de Segurança da ONU, no TPI e em outros órgãos que se dedicam à proteção das crianças.

No que se refere ao processo de desmobilização, segundo Wessels (2004), geralmente ocorre em um centro de atendimento provisórios espalhados em diversos países. A crianças deveriam permanecer nestes centros por um período curto, cerca de duas semanas, mas extrapolam este prazo em muitos meses ou mais. Um cartão de identificação é feito com as informações de origem do ex-combatente. Assim, inicia-se o processo de transição e readaptação à vida civil. Geralmente há algum conselho psicossocial que promove discussões em grupo acerca do passado, presente e futuro, sobre seus papeis na sociedade, seus medos, preocupações e possíveis soluções.

Nota-se que o trabalho psicossocial busca estimular o sentimento de esperança das crianças que sofreram diversos tipos de abuso, que enfrentaram tantas privações, dificuldades, medos e outras experiências violentas. Wessels (2004) evidencia as atividades expressivas desenvolvidas com as crianças, que envolvem desenho, música, dança, roda de estórias e outras relacionadas à cultura local. O objetivo gira em torno da expressão de sentimentos realizada abertamente, até que se chegue aos termos das experiências difíceis. Afazeres domésticos são designados para que as crianças criem senso de responsabilidade no centro, de forma que se acostumem a realizar atividades civis comuns, como cozinhar e limpar.

As crianças são submetidas a atividades que expressem seus sentimentos, ativem sua capacidade de se comunicar e estimulem a sua cultura. O que se visa é o completo estímulo a uma vida normal e saudável, com jogos e brincadeiras comunitárias. Peter Singer (2006) explica a respeito da recuperação psicológica contra o Estresse Pós-Traumático, um distúrbio muito comum entre ex-crianças-soldado. A terapia cognitivo-comportamental apresenta sessões de aconselhamento, tanto individuais como em grupo, além de informações sobre como superar a ansiedade com exercícios de relaxamento e confiança. Há, também, uma tentativa de se corrigir ideias falsas ou distorcidas oriundas de experiências traumáticas.

Peter Singer (2006) aborda as dificuldades que os programas enfrentam com questões orçamentárias e as instabilidades dos países em guerra. Aponta o exemplo da segunda intervenção da Organização das Nações Unidas (ONU) em Serra Leoa, que contou com a contribuição de 34 milhões de dólares para o desarmamento,

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desmobilização e reinserção de ex-combatentes, mas somente um psicólogo infantil para atender a dezenas de milhares de crianças. Destaque-se que apenas 3% do valor investido foram destinados às crianças-soldado, fato que contribuiu para o fortalecimento do conflito e, como consequência, boa parte das crianças voltou a servir os grupos de rebeldes.

Há, também, a necessidade de reabilitação física, uma vez que grande parte das crianças chega ao centro com lesões advindas da guerra e doenças sexualmente transmissíveis. Algumas meninas chegam grávidas, por conta dos estupros que eram submetidas. Quanto às mulheres, muitas sentem dificuldades no processo de retorno à vida civil. Pelo fato de grande parte ter sido explorada sexualmente, há rejeição dos possíveis pretendentes e até de maridos anteriormente casados (STARK et al., 2009). Após o processo de recuperação, o destino da criança deve ser a sua família. Segundo a UNESCO (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization), o que mais afeta as ex-crianças-soldado é a repercussão que a violência tem no seu relacionamento familiar, da instabilidade instaurada em sua rotina, principalmente a bruta separação de suas mães (NOBLOM, 1994). Ressalte-se que muitos ex-combatentes Ressalte-sentem dificuldades ao tentarem Ressalte-se readaptar no Ressalte-seio familiar. Em Serra Leoa e Uganda, a maioria dos familiares e comunidades exige algum tipo de prova de que os ex-soldados estão arrependidos e que pretendem “consertar seus caminhos”. A aceitação do retorno à comunidade geralmente está condicionada ao desempenho de rituais de purificação e expiação (BOYDEN, 2003).

Há um desejo de se deletar os acontecimentos do passado e prosseguir com uma vida nova. Segue abaixo o depoimento de uma jovem mulher ex-combatente trazido por Boyden (2003, p. 358 apud BOYDEN et al, 2003):

Não há muita diferença entre nós e os outros. Nós todos temos os mesmos problemas aqui em Makeni. Algumas pessoas ficam com inveja de nós porque nós recebemos treinamento e eles não. Eu ouvi algumas pessoas dizerem: "Olhem para eles: depois que eles mataram tantas pessoas, eles são até recebendo bônus sendo recompensado com cursos de treinamento”. Eu disse a essa pessoa: “Pare com esse tipo de conversa. Você está criando problemas em nosso país”. Quanto a mim, as coisas que foram feitas para nós nos impedem de continuar com uma vida ruim. Mesmo se eu ouvir falar de mais alguns combates ruins, eu não vou participar. Eu não vou mais incentivar qualquer outro golpe neste país. (tradução nossa).

No exemplo do depoimento acima, a jovem foi julgada pelo seu passado. Ser uma ex-combatente despertou a inveja das pessoas, pelo fato da mulher ter recebido

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treinamento. Mesmo diante de suas ações reprováveis, estava frequentando cursos em um provável centro de reintegração e a sua capacitação foi vista como um prêmio pela sua comunidade, não como uma nova oportunidade de recomeçar. Nota-se que a depoente procurou “provar” que não mais compactuava com o conflito e que nem mesmo apoiaria qualquer outro golpe.

Peter Singer (2006) relata as dificuldades que as crianças enfrentam no processo de reintegração. Em um estudo realizado na África, constatou-se que 82% dos pais de ex-crianças-soldado entendiam que seus filhos representavam uma ameaça à segurança das populações, enquanto que 82% dos pais, em geral, não queriam que seus filhos convivessem com os jovens ex-combatentes. Por este motivo, é necessário que se tenha a mediação para o reestabelecimento dos laços afetivos e da confiança nestas pessoas recém-chegadas da guerra.

Um grande marco na mobilização internacional quanto a situação das crianças em conflitos armados foi a Assembleia Geral da ONU, em 1993, que adotou a Resolução A/RED/48/157. A referida criou o mandato do Representante Especial do Secretário-Geral para Crianças e Conflitos Armados. O Secretário-Geral, Boutros Boutros-Ghali, indicou a especialista independente Graça Machel, ex-ministra da Educação em Moçabique, para a elaboração de um relatório nomeado “O Impacto do Conflitos Armados sobre as Crianças” realizado em 1996 (ONU, [s.d.]).

Desde 2002, quando o Protocolo Facultativo à Convenção sobre Direitos da Criança sobre o Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados entrou em vigor, a comunidade internacional passou a se mobilizar ainda mais em função deste problema. O protocolo estabelece a idade mínima de 18 anos para o recrutamento de forças armadas em conflitos e já foi ratificado por 167 Estados. O Representante Especial para Crianças e Conflitos Armados, vinculado ao Secretário-Geral, tem o papel de fortalecer a proteção às crianças afetadas por conflitos armados, aumentar a conscientização, coletar informações sobre as situações das crianças e promover a cooperação internacional neste sentido.

Um relatório anual é elaborado para a Assembleia Geral e para o Conselho de Direitos Humanos, que consta os desafios das crianças a ser enviado para órgãos políticos, como o Conselho de Segurança da ONU e outros governos relevantes, ante urgências e decisões. O último relatório de 2017 constatou a liberação e reintegração de mais de 5.000 crianças, porém frisa que ainda há dezenas de milhares de meninos

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