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4 A RESPONSABILIDADE CRIMINAL DE EX-CRIANÇAS SOLDADO

4.2 A CONTÍNUA COAÇÃO, A AUSÊNCIA DE ESCOLHA E A

A situação das crianças-soldado já foi explanada no primeiro capítulo deste trabalho, porém tal assunto será novamente retomado neste tópico. Conforme o já exposto, dentre as crianças que atuam em grupos paramilitares, muitas são raptadas, expostas à violência e obrigadas a cometerem atos criminosos. Por outro lado, em certas regiões do mundo há, inclusive, uma quantidade ainda maior daquelas que se voluntariam por razões diversas, dentre estas, por proteção, comida, dificuldades financeiras, influência do meio e até incentivo da própria família. Desta maneira, conforme o pensamento de Schauer e Elbert (2010), já exposto no primeiro capítulo deste trabalho, a “escolha” da criança não deveria ser considerada como voluntária, uma vez que sua capacidade de discernimento e avaliação das consequências é reduzido.

O entendimento que melhor se aplica nos casos de crianças soldado é que não haveria, a priori, diferenças de tratamento entre as voluntárias e as abduzidas para a participação nos grupos paramilitares. O Estatuto de Roma estabelece que ninguém será punido com idade inferior a 18 anos. Desta forma, nota-se que o TPI entende a vulnerabilidade e a presunção de incapacidade destes jovens em todos os seus aspectos. Assim, o passado de um suposto réu do TPI, ex-criança-soldado, sendo marcado pelo voluntariado em um grupo paramilitar, não deve servir como referência negativa para a avaliação de sua responsabilidade criminal. Sua “escolha” de se juntar a rebeldes foi realizada em um momento de vulnerabilidade e nenhum juízo de valor deve ser imputado a este hipotético réu (SQUIERS, 2015). Uma criança é, acima de tudo, uma vítima.

No caso de Dominic Ongwen, tem-se uma história trágica de uma criança de foi sequestrada em seu caminho para a escola. Este atual réu do TPI foi obrigado a cometer diversos crimes com idade inferior a 15 anos.4 A corte do TPI entende que o

crime de uso e recrutamento de crianças soldado é executado na modalidade de crime continuado, o qual tem o seu início no momento que a criança é forçada a aderir ao grupo paramilitar e acaba no momento que esta criança completa 15 anos ou deixa o grupo, conforme o estabelecido na jurisprudência do julgamento de Lubanga, (INTERNATIONAL CRIMINAL COURT, 2012, p. 618) condenado pelo crime supramencionado. Ademais, tal referência foi utilizada pela promotoria no caso do próprio Dominic Ongwen (INTERNATIONAL CRIMINAL COURT, 2016, p. 262).

Sendo o crime acima mencionado considerado um crime continuado, supõe-se que a coação e a doutrinação que sofrem as crianças também têm natureza continuada. Assim, como explica a defesa de Dominic, com base em Schauer e Elbert (2010), por mais que a idade de 18 anos marque o início da fase adulta, esta referência seria irrelevante para crianças soldado que tiveram um desenvolvimento anormal (INTERNATIONAL CRIMINAL COURT, 2016, p. 17). A coação contínua é realizada tanto do ponto de vista físico como psicológico. As crianças são expostas a cenas de violência, que incluem punição por descumprimento de ordens na frente de outros membros do grupo paramilitar, de modo a servir de exemplo para aqueles que cogitam infringir as regras.

As ameaças são constantes. Ao presenciar colegas combatentes sendo mortos por tentativa de fuga, a coação circunstancial já resta configurada. Diante deste grande temor de perder a vida e de sofrer graves lesões físicas, a impossibilidade de fugir é entendida como realidade na mente da criança e, por não haver alternativas, sobreviver da melhor maneira possível é o que lhe resta, conforme pode ser verificado no tópico 2.3 deste trabalho, o qual evidencia os depoimentos de crianças que um dia foram soldados. A realidade de uma criança que teve seus pais mortos no conflito armado, impossibilitada de ir à escola, que passa fome e outras necessidades, é bastante complicada.

Ocorre que a criança vítima de tais atrocidades, utilizada como instrumento compulsório de execução de crimes, em algum momento completará seus 18 anos e

4 A defesa alega que Ongwen tinha 9 anos e meio à época do sequestro, enquanto que a acusação

será considerada um adulto criminalmente responsável por suas atitudes. Desta maneira, importa salientar que tal idade não cessa os abusos e a coação que sofria a pessoa na sua infância. A coação psicológica gera a associação de que se não houver combate, haverá morte (NOBERT, 2011, p. 32-38). Por isto, as causas de exclusão da responsabilidade criminal devem ser bem avaliadas. Neste tópico, será analisada a coação e, no próximo, as questões psicológicas que poderiam livrar o réu de uma condenação.

Da breve análise do histórico jurisprudencial quanto ao uso da coação como argumento de defesa, tem-se o caso Erdemovic no Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia (International Criminal Tribunal for the former Yugoslavia- ICTY). Drazen Erdemovic era um militar do Exército da República Sérvia, que se envolveu no assassinato de civis desarmados que seguiam a queda da chamada “área segura” das Nações Unidas em Srebrenica. Este réu foi acusado e considerado culpado por ter cometido crime contra a humanidade. Contudo, em sede de defesa, alegou que foi coagido sob ameaça de morte por seus superiores (GILBERT, 2006, p. 16-18).

Ocorre que o Estatuto da ICTY não fazia menção à coação e os juízes buscaram referências nas cortes internacionais criminais, bem como em legislações nacionais para formarem suas opiniões. Entendeu-se por maioria que a coação deveria ser utilizada como uma atenuante, dada a natureza grave do crime. Em sede de apelação, um voto dissidente do famoso juiz Cassese chamou atenção. Em sua opinião, a coação pode excluir a responsabilidade criminal de alguém que agiu sob ameaça de uma terceira pessoa de danos graves e irreparáveis à vida ou ao corpo. Foi decidido, por 3 votos a favor contra 2, que a coação seria utilizada como atenuante (GILBERT, 2006, p. 19).

Diante das discussões que este caso gerou, o Estatuto de Roma, ao vislumbrar a criação do Tribunal Penal Internacional, já foi contemplado com o entendimento no sentido da opinião de Cassesse, contrariando a jurisprudência internacional e priorizando a codificação. Assim, a coação tem condão de excluir a responsabilidade criminal em hipótese de qualquer crime do Estatuto (GILBERT, 2006, p. 20). Contudo, há de se observar a existência de pressupostos específicos para a configuração da coação.

Conforme exposto em tópico anterior e com base na interpretação do art. 31 (d) do Estatuto de Roma (BRASIL, 2002), para que se configure a coação como

excludente de responsabilidade criminal, a pessoa deve agir com necessidade, razoabilidade e proporcionalidade diante da ameaça iminente de morte ou graves ofensas corporais. Desta forma, as provas devem esclarecer se o réu atendeu às atitudes esperadas de um homem médio (GILBERT, 2006, p. 21). Quando tais requisitos são pensados nas situações de ex-crianças-soldados, certas questões devem ser pontuadas.

Muitas crianças são submetidas a coação durante anos em grupos paramilitares, mesmo após se tornarem adultos combatentes. Cada uma tem uma experiência única, que varia de acordo com a idade, personalidade, educação, maturidade, o local da guerra, crenças, religião, o nível de pobreza, de hostilidade, seu tempo de serviço no grupo e outras variáveis.5 A experiência única de cada

criança deve ser levada em consideração pela corte.

Desta forma, imagine-se um réu no TPI, ex-criança-soldado, acusado por ter cometido certo crime aos 19 anos de idade. Suponha-se, também, que tal réu tenha sido abduzido por um grupo de rebeldes extremamente violento à época em que tinha 6 anos, quando seus pais foram mortos por este grupo. Durante seus 13 anos de serviço, teria sido submetido a abusos, violência, coação, treinamento e doutrinação. Imagine-se ainda, que a tentativa de fuga deste grupo resultaria em morte automática e a desobediência implicaria em lesão corporal grave. Ademais, suponha-se que as evidências demonstrassem que tal réu atuava como um mero soldado, obedecia a comandos e os executava na medida da necessidade, proporcionalidade e razoabilidade.

A hipótese acima descreve uma situação mais favorável ao suposto acusado, de modo que sua responsabilidade criminal teria maiores chances ser excluída do que a de Ongwen, por exemplo. Ocorre que este cenário “ideal” para a justiça pode não ser ideal para a sobrevivência de alguém que está sob coação física e psicológica por tantos anos. Exige-se que a pessoa tenha uma atitude razoável, proporcional e necessária com o parâmetro de um homem médio, porém a figura do homem médio eleita pela justiça jamais pode servir como referência para alguém que sofreu doutrinação e coação por muitos anos desde sua infância.

A noção e visão de mundo de crianças e ex-crianças-soldado é comprometida, pois o seu ambiente de criação não lhes deu acesso à referência de um homem médio, com certo grau de estudo e desenvolvimento em um ambiente relativamente saudável, mas sim à referência de combatentes hábeis, de líderes disciplinados, agressivos, com nenhum ou pouco estudo. Muitas crianças enxergam o grupo de rebeldes como uma família, pois compartilham momentos e os mesmos problemas (FOX, 2016). Desta forma é natural que certos líderes sejam vistos como as figuras paternas que muitos perderam e, observando suas atitudes, as crianças criam para si um ideal de comportamento e uma referência positiva para atitudes reprováveis pela sociedade comum.

Conforme explanado no Capítulo anterior, o LRA é um grupo de rebeldes extremamente violento. Inclusive, o próprio TPI reconheceu o “ambiente de terror” e o “ambiente opressor sem liberdade de escolha”, ao analisar a situação de crianças soldado no caso de Thomas Lubanga Dylio (INTERNATIONAL CRIMINAL COURT, 2009).

Segundo Nadia Grant (2016, p. 9-10), pesquisadores, escritores e investigadores buscaram informações acerca da vida de Dominic Ongwen neste grupo e tiveram acesso a depoimentos diversos de ex-participantes. Thomas Kwoyelo vivenciou grande parte da sua vida no LRA e teve uma história parecida com a de Dominic, porém alcançou o ranking de coronel. Ele afirma que sua situação era comparada a de um cachorro que obedece a comandos do dono, que, no caso, era Joseph Kony. Ademais, avançar no ranking do grupo não livra os membros do LRA de sofrerem ameaças constantes de morte daqueles de posição superior, inclusive de Kony. O governo passou a propagar uma anistia por rádio para que os envolvidos em grupos paramilitares se rendessem, porém Kony dizia aos combatentes que era uma armadilha para atraí-los e matá-los.

O depoente acima destacado ainda informa que Kony criava um clima de medo, pois citava as acuações do TPI como ameaça. Esse medo do desconhecido “fora do grupo”, juntamente com o medo de perder a vida e ser rejeitado pela sociedade civil, faz com que muitos recrutas desistam de escapar. Nadia Grant (2016) traz depoimentos de vários entrevistados que participaram do LRA e tiveram contato com Ongwen em suas diferentes fases. Foi alegado, também, que Kony soube do desejo de Ongwen de escapar e, por isso, Dominic foi submetido à prisão e tortura no Sudão.

Ademais, a fuga de comandantes gerava consequências ainda mais severas, como já ocorreu quando o LRA dizimou aldeias as quais o comandante foragido pertencia.

Foi dito que Ongwen se sentia mal pelas ameaças de morte condicionadas à fuga, inclusive diziam que a casa de sua família seria incendiada. Os combatentes superiores acompanhavam de perto a atuação dos comandantes, além de manter perto a família e os filhos destes. Vincent Otti era um dos líderes juntamente com Ongwen e, inclusive, já teve mandado de prisão expedido pelo TPI, porém ele foi morto por Kony em 2007, aparentemente por deslealdade.

Ressalte-se que em diversas oportunidades Ongwen chegou perto de ser executado por suspeita de deslealdade, conforme indica Nadia Grant (2016). Desta forma, com tantas ameaças, pressões psicológicas e jogos mentais, como se pode falar em livre arbítrio? Questiona-se a liberdade de Ongwen pelo seu posicionamento de liderança no grupo, por ele ter “exagerado” enquanto soldado, porém sua realidade e complexidade de sua experiência vão além de qualquer enquadramento legal.

O artigo 31 do Estatuto de Roma (BRASIL, 2002) prevê as causas de exclusão da responsabilidade criminal e, em apenas uma cláusula, a hipótese de coação. O mero juízo de subsunção nem sempre atenderá a uma realidade exata, pois os acontecimentos da vida envolvem fatores e variáveis diversas. Sabe-se que essa problemática das crianças soldado não só envolve a coação exteriorizada, seja por terceiros ou por circunstâncias, mas também a coação psicológica, a qual conta com outras questões que serão abordadas no próximo tópico.

4.3 A AUSÊNCIA DO ELEMENTO PSICOLÓGICO. A ENFERMIDADE OU

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