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3 O CASO THE PROSECUTOR V DOMINIC ONGWEN NO TRIBUNAL

3.1 O CONFLITO NA UGANDA E A ATUAÇÃO DO EXÉRCITO DE

Inglaterra designou mão de obra barata, segurança e defesa para a população do Norte, enquanto que a região central ganhou o controle da economia e da política do país (HAPPOLD, 2007). Assim, uma falta de união se instalou por todo o território, com a presença de tensões regionais e étnicas persistentes. Após a independência, o país passou a lidar com golpes de estado e conflitos políticos em razão de diversos movimentos divergentes. O atual presidente da Uganda, Yoweri Kaguta Museveni, está no poder desde 1986, ano em que tomou o poder pela ação do seu Exército de Resistência Nacional e instaurou o seu regime opressor (FOX, 2016).

As divisões étnicas e econômicas oriundas do colonialismo entre o norte e o sul da Uganda geraram grandes conflitos. Antes do atual presidente, Uganda teve outros nove líderes e o desenvolvimento da liderança manipuladora gerou militarização, violência política e diversos conflitos armados no país. Suas causas precisas são difíceis de identificar, porém envolvem questões econômicas, políticas, étnica, espirituais e religiosas (ASIMAKOPOULOS, 2010).

Segundo Asimakopoulos (2010), após a tomada de poder do Museveni, houve uma série de ataques e massacres direcionados aos Acholi, etnia que comandou o governo anterior e que habita a região norte da Uganda e o Sudão do Sul. Um grupo chamado Exército Democrático do Povo Unido (United People’s Democratic Army – UPDA), formado majoritariamente pelo povo Alcholi, passou a lutar contra o governo. Surge, então, a figura de uma mulher, também da etnia Acholi, chamada Alice Lakwena. Ela dizia estar possuída por espíritos e fundou um grupo de caráter populista, cristão e espiritual, chamado Movimento Espírito Santo (Holy Spirit Movement – HSM), com grande adesão dos Alcholi, assim como ocorreu no UPDA.

Joseph Kony dizia ser o primo de Lakwena que herdou os espíritos e juntou os dois grupos, UPDA e HSM. Desta fusão surgiu o Exército de Resistência do Senhor (Lord’s Resistance Army – LRA) em 1987. Tal unidade paramilitar firmou alianças com o governo do Sudão, Estado que lhes deu apoio com o fornecimento de comida, armas, remédios e locais seguros para Kony treinar seu exército. A contraprestação do LRA seria a luta contra um outro grupo paramilitar que buscava derrubar o governo Sudanês, o Movimento de Libertação do Povo do Sudão (Sudan People’s Liberation Movement – SPLA). O LRA tem sido descrito pela mídia e pela oposição como uma unidade de rebeldes sem causa, terroristas e religiosos fanáticos, que querem tomar o poder e instaurar um governo fundamentalista cristão baseado nos dez

mandamentos (ASIMAKOPOULOS, 2010).

Assim, o grupo LRA é comandado por Joseph Kony, um líder espiritual que se diz profeta. Ocorre que grande parte do próprio povo Alcholi passou a não mais apoiar as ideologias dos rebeldes, momento em que estes começaram a recrutar jovens e crianças através da abdução em grande escala. O LRA é um grupo extremamente violento que comete diversos crimes contra seus recrutados, civis e soldados, como assassinatos, espancamentos e estupros. Os recrutados são utilizados como soldados, porteiros, cozinheiros e 25% das meninas são destinadas ao casamento forçado (ANNAN et al, 2009).

Uma pesquisa trazida por Jeannie Annan, Moriah Brier e Filder Aryemo (2009) revela depoimentos de jovens que participaram do LRA, que contam sobre seus recrutamentos, o dia-a-dia de treinamento, os combates e o processo de reintegração. Foram 23 participantes, com idade entre 15 e 30 anos ao tempo do depoimento, abduzidos e usados como soldado pelo período entre 1 dia e 9 anos, enquanto tinham idade entre 6 e 24 anos, ao tempo do sequestro. Dentre os entrevistados, 16 foram recrutados com idade inferior a 18 anos.

O Distrito de Gulu, no norte da Uganda, local onde ocorreram os ataques do LRA que contaram com Ongwen, era uma região caracterizada pela pobreza e pela restrição. Desta forma, a ociosidade tomava conta dos jovens desprovidos de recursos básicos de subsistência (CORBIN, 2008).

Na supramencionada pesquisa, os depoentes revelam o medo entre os jovens de ser abduzido quando se afastam do campo de refugiados, pois os rebeldes aproveitam tal oportunidade para realizarem os sequestros. Os jovens sabem que, uma vez recrutados, caso escapem e sejam reconhecidos como fugitivos do grupo, certamente serão mortos. Alguns relatos evidenciavam a coação que sofrem os jovens no LRA, o tema do processo de reintegração e todas as dificuldades enfrentadas pelos ex-soldados neste retorno à sociedade comum.

O LRA conta com uma estrutura grande e organizada de soldados e crianças abduzidas fortemente controlados e que recebem instruções via rádio. A questão religiosa envolvida no grupo conduz as ações e rituais dos rebeldes. Kony é visto pelos combatentes como um médium que se comunica com espíritos para o combate. Abaixo dele, há a divisão de quatro unidades com diferentes batalhões. Os menores

grupos utilizam radiodifusão para se comunicar com as sedes do Sudão (ASIMAKOPOULOS, 2010).

Ressalte-se que não havia uma independência de cada grupo, sendo todos estritamente controlados e monitorados das ordens do topo (DOLAN, 2009, p. 300). Kony, supostamente, ainda possui o controle e dita as regras de seus soldados, os quais obedecem e providenciam itens de sobrevivência do grupo, como remédios, comida, etc.

Ariadne Asimakopoulos (2010) traz diversas entrevistas com ex-abduzidos e evidencia a dificuldade que os mesmos tinham de fugir por diversas razões. Ela explica que os treinamentos eram desumanos, sendo os recrutados submetidos a longas caminhadas, ao transporte de cargas muito pesadas. No treinamento, quem se mostrar fraco é espancado e quem estiver ferido ou demonstrar certos tipos de fraqueza, como fome ou sede, é instantaneamente morto.

Nos relatos é dito que as crianças aprendem a atirar e manusear armas, além de se esconder do inimigo. Estupro é comum e praticado contra as meninas abduzidas, as quais são utilizadas como esposas dos combatentes e servas domésticas. As relações entre esposa e soldado são estritamente reguladas por Kony (apud DOLAN, 2009). O processo de doutrinação envolve discursos longos e repetitivos de Kony, com a explicação das regras, promessas de fartura, educação e um mundo melhor.

Em ato contínuo, Asimakopoulos (2010) evidencia a coação que as crianças sofrem por serem obrigadas a cometer atrocidades contra seus familiares, contra membros da comunidade e outros recrutados infratores das regras do grupo. Além da exposição à violência e aos discursos como meio de doutrinação, há o cultivo da crença nos espíritos que conduzem o LRA. Rituais de “proteção” são realizados antes dos combates. Acredita-se que os espíritos leem as mentes e contarão à Kony sobre qualquer pensamento de fuga. Ademais, não protegerão os combatentes que quebrem as regras de Kony.

Dolan (2009) evidencia que muitos combatentes permanecem no grupo por muito tempo, por algum motivo que envolve a crença na espiritualidade da unidade. Há uma aceitação daquela realidade como verdade por uma questão de sobrevivência.

Em 2002 o governo coagiu a população a se mudar para campos de refugiados, sob o argumento de que estariam protegidos dos ataques dos rebeldes. Em 2006, cerca de 90% da população encontrava-se nestes locais, no total de 1,7 milhão de pessoas. Tais campos, em sua maioria, não apresentava condições ideais de higiene e disponibilidade de água, restando abaixo do padrão para níveis emergenciais (ANNAN, BRIER, ARYEMO, 2009 apud CIVIL SOCIETY ORGANIZATIONS FOR PEACE IN NORTHERN UGANDA [CSOPNU], 2006; Sphere, 2004).

Assim, o LRA passou a atacar de forma padronizada os civis, em particular as pessoas dos campos de refugiados (Internally Displaced Person – IDP). Como tais moradias são estabelecidas pelo governo, o LRA entendeu que os civis apoiavam os governantes, fato que lhes tornou alvo dos rebeldes.

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