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A autodefesa e o princípio do contraditório

2. AUTODEFESA PROCESSUAL

2.1 Autodefesa processual na Constituição Federal

2.1.2 A autodefesa e o princípio do contraditório

A todo réu de processo penal deve ser dada a oportunidade de contrariar a imputação feita contra si. O contraditório é, em essência, intimamente ligado à noção de igualdade, uma vez que decorre da necessidade de reconhecimento de concessão das oportunidades equivalentes no processo.

Assim, o princípio do contraditório centra sua definição na plena igualdade de oportunidades processuais, em que para cada atuação deva ser permitida uma reação. Assim, os atos e termos do processo devem ser informados às partes de forma adequada. Além disso, devem elas ter a garantia de que poderão

199 A Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, dispõe, no art. 4º, que a

liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites só podem ser determinados pela lei. FRANÇA. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Disponível em : < http://www.direitos humanos.usp.br/counter/Doc_Histo/texto/Direitos_homem_cidad.html >. Acesso em 26 junho 2008.

contrariá-los, com alegações e provas, em momento oportuno.

A Lei nº. 11.690, de 2008, tornou mais clara a exigência do contraditório no processo penal, dando nova redação ao art. 155 do CPP. Assim, deverá o juiz formar sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, sendo vedado fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, que não podem ser repetidas, além daquelas que forem antecipadas por imperiosa necessidade. 201

Tal norma fortalece o argumento de que o inquérito policial deve receber maior atenção do réu quando há prova pericial não repetível no processo. Indagações feitas pela defesa devem ser consideradas pela autoridade policial, sob pena de vulneração dos princípios da ampla defesa e do contraditório. Isso é certo porque há casos de condenação em que a prova principal é a perícia feita no inquérito.

Nelson Nery Júnior202 lembra que a garantia do contraditório é inerente às partes litigantes, ou seja, a todos aqueles que tiverem alguma pretensão de direito material a ser deduzida no processo. Seriam, quanto ao interesse, o autor, o réu, o litisdenunciado, o opoente, o chamado ao processo, o assistente litisconsorcial, o assistente simples e o representante do Ministério Público – este último, mesmo que atue na função de fiscal da lei. Ficam de fora as testemunhas e os peritos, uma vez que eles não têm, de fato, pretensão alguma a ser discutida no processo.

No processo penal a pretensão pode ser excepcionalmente externada pela vítima ou por alguém de sua família203. Em geral, o Ministério Público é o titular da ação penal por força do art. 129, I, da Constituição de 1988, e tem regularmente a pretensão de perseguir a verdade no processo para ver a punição do autor do ilícito criminal, ou a absolvição quando o caso recomendar, tudo em nome da sociedade.

Para Nelson Nery204 “por contraditório, deve entender-se, de um lado, a

201 BRASIL, Lei n. 11.690, de 9 de junho de 2008. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11690.htm. Acesso em: 29 junho 2008.

202 NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 2 ed. São

Paulo: RT, 1995, p. 123.

203 Conforme dispõe o art. 24, § 1º, do CPP. 204

necessidade de dar-se conhecimento da existência da ação e de todos os atos do processo às partes, e, de outro, a possibilidade de as partes reagirem aos atos que lhe sejam desfavoráveis”. Assim, afirma que os contendores têm direito de deduzir suas pretensões e defesas, realizarem as provas que requererem para demonstrar a existência de seu direito, em suma, direito de serem ouvidos paritariamente no processo em todos os seus termos.

O autor assevera que o princípio, para o processo penal, significa contraditório efetivo, real, substancial, exigindo a defesa técnica mesmo em caso de réu ausente (art. 261 do CPP) para observância do mandamento constitucional ou em caso de que haja necessidade de considerar o réu indefeso (art. 497, V, do CPP). Isso mostra que a defesa desidiosa ou tecnicamente insuficiente feita por advogado pode dar ensejo à anulação e à nomeação de novo defensor, já que o contraditório se completa com a ampla defesa.205

Tormentoso tema que invade a doutrina processual penal é a falta do contraditório no inquérito policial. É polêmica que subsiste porque há provas que somente são elaboradas no procedimento administrativo inquisitorial, a merecerem a atuação da defesa para que haja participação na condução deste tipo complexo de prova, muitas vezes essenciais para convencer o magistrado do juízo condenatório. Exemplo disso é a perícia em locais onde criminosos deixam vestígios.

Noutro prisma vem o júri, em que as provas são analisadas pelos jurados e as decisões são proferidas por eles sob convicção íntima e sem necessidade de expressa motivação. Neste caso, podem ser consideradas provas erguidas no inquérito policial para que os jurados votem pela condenação do processado, o que causa o desequilíbrio em prejuízo da defesa, maculando o contraditório.

Cândido Rangel Dinamarco206 destaca que “em qualquer sistema processual é imenso o valor da oferta de meios de participação aos litigantes, porque ordinariamente são eles os sujeitos mais aptos a fazê-lo, conhecendo melhor os fatos relevantes e os meios de prova disponíveis em cada caso.” E lembra que “quem vem a juízo postular ou resistir é movido pela aspiração ao bem da vida litigioso, seja para obtê-lo (autor, demandante), seja para conservá-lo (réu,

205 No processo penal, a falta da defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o

anulará se houver prova de prejuízo para o réu (súmula n. 523 do Supremo Tribunal Federal).

demandando).”

Dinamarco entende que a garantia do contraditório significa que a lei deve instituir meios para a participação dos litigantes no processo e o juiz deve franquear-lhes ditos meios. Seriam, então, oportunidades para participar pedindo,

participar alegando e participar provando. E o contraditório se identifica pelo binômio informação-reação, uma vez que a efetividade das oportunidades para participação

depende sempre do conhecimento que a parte tenha do ato a ser atacado:

As partes, conhecendo os fatos até porque os vivenciaram na maior parte dos casos, sabem de quais pessoas poderão valer-se como testemunhas, conhecendo realidades captáveis mediante perícias (contábeis, médicas, de engenharia, entre outros), têm documentos ou, quando não os tem, sabem onde estão. 207

O contraditório se exerce, em suma, mediante reação aos atos desfavoráveis. Esta evidência se impõe pelo fato de que ninguém contraria aquilo que está de pleno acordo.

Francesco Carrara208 impõe destaque à cientificação da acusação. Para ele “a cientificação é necessária em virtude do direito que tem o réu de apresentar a sua defesa, e pelo enorme interesse, de toda a sociedade, em que o juízo objetivo resulte conforme a verdade.” E assevera que a cientificação deve ser completa e tempestiva. Pela primeira, ao réu devem ser dadas condições de elaboração da defesa conhecendo a acusação em toda sua inteireza – devendo-se evitar surpresas – sob pena de descrédito do juízo criminal, inclusive por toda a sociedade, gerando insegurança; pela segunda, depois que a imputação for comunicada ao réu em toda sua inteireza, há que lhe conferir tempo adequado e suficiente à realização da defesa.

A estreita relação entre igualdade e o contraditório não é olvidada por Cândido Rangel, que menciona a necessidade de se garantir a igualdade de oportunidades às partes no processo, formando o equilíbrio entre a ação e a exceção.209 Ou seja, o contraditório pressupõe que a ação e a reação sejam oportunizadas em iguais chances de efetividade.

207 Ibidem, p. 126. 208 CARRARA, ibidem, p. 365. 209 Ibidem, p. 115.

Luigi Ferrajoli210 salienta:

A defesa, que por tendência não tem espaço no processo inquisitório, forma, portanto, o mais importante instrumento de solicitação e controle do método de prova acusatório, consistente precisamente no contraditório ente a hipótese de acusação e hipótese de defesa e entre as respectivas provas e contraprovas [...]. Para que a disputa se desenvolva lealmente e com paridade de armas, é necessária, por outro lado, a perfeita igualdade entre as partes: em primeiro lugar, que a defesa seja dotada das mesmas capacidades e dos mesmos poderes da acusação; em segundo lugar, que o seu papel contraditor seja admitido em todo o estado e grau do procedimento e em relação a cada ato probatório singular, das averiguações judiciárias e das perícias ao interrogatório do imputado, dos reconhecimentos aos testemunhos e às acareações. 211

Portanto, a faculdade de refutação de cada ponto da acusação incorpora o mais sublime toque do contraditório, imbricado, inevitavelmente, na ampla defesa, servindo esta última como se fora irmã siamesa daquele.