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A autodefesa e a verdade possível

2. AUTODEFESA PROCESSUAL

2.3 Autodefesa processual no Código de Processo Penal

2.3.1 A autodefesa e a verdade possível

A produção da prova no processo penal centra-se no objetivo da verdade. A doutrina construiu o termo “verdade real” ou “material” para fixar o que se entende por verdade plena dos fatos. Do senso comum extrai-se que a verdade corresponde a tudo que mais se aproxima da realidade ou que está em conformidade com o que é real. É possível dizer, no entanto, que há uma enorme dificuldade em se encontrar a exata verdade dos fatos que envolvem o ilícito diante das incontáveis circunstâncias que envolvem os acontecimentos da vida.

A ação de alguém que pratica um ilícito pode ser narrada de diversas formas. Um crime visto por várias testemunhas pode ser descrito por cada uma delas de forma diferente, uma vez que a compreensão das coisas e sentimentos que existem no mundo varia de pessoa a pessoa. Isso denota como a percepção da realidade depende de condições especiais particulares de cada um. Porém, para este estudo é possível definir a verdade como a interpretação mental da realidade transmitida pelos sentidos de alguém e, necessariamente, confirmada por outras pessoas aptas a compreenderem dita realidade, mesmo que haja coincidência parcial.

Francesco Carnelutti264 diz bem:

A dúvida é uma expressão da limitação da mente humana; para nós, a verdade se fragmenta nas razões, como a luz nas cores. Não podemos apreender a verdade a nação ser em pequenas doses: cada razão contém uma dose de verdade, uma vezes relevantes e outras desprezíveis. Cada um de nós apenas chega a descobrir uma parte da verdade; por isso em cada um de nós a verdade está misturada com o erro, e para depurá-lo cada um de nós necessita do outro – tal é a necessidade do diálogo.

A fidelidade do relato de uma testemunha depende de sua atenção no momento em que aconteceram os fatos, guardados em sua memória, além das condições psíquicas no momento em que faz a narração, valendo isso também para o interrogatório do réu. 265

263 PEDROSO, ibidem, p. 217.

264 CARNELUTTI, Francesco. Como se faz um processo. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira.

Belo Horizonte: Ed. Lider, 2005, p. 71.

265

De tudo o que compõe o mundo resta ao intérprete extrair o significado. Raimundo Falcão266 apregoa que “o sentido é inesgotável por definição e a inesgotabilidade do sentido é a base filosófica da Hermenêutica.” Eis aqui uma importante dificuldade para tornar mais próxima a compreensão das coisas.

Valter Nunes da Silva Júnior267 defende posição pacífica da doutrina e da jurisprudência:

Não é correto asseverar que o processo criminal é inteiramente regido pelo princípio da verdade real, visto que esta, pelo fato mesmo de decorrer do princípio da presunção de não-culpabilidade, informa que o Ministério Público, para conseguir a procedência de sua pretensão acusatória, tem o ônus de comprovar os fatos constitutivos do direito-dever de punir, porquanto o juiz somente pode condenar o agente com base na certeza de que é ele culpado.

De fato, nem sempre é possível dizer que o juiz absolve o acusado por insuficiência de provas apoiando-se no princípio da verdade real ou material. Portanto, há absolvições que se confirmam em nome da verdade formal ou processual. Entretanto, o mais próximo da verdade deve chegar o juiz que conclui pelo juízo condenatório. Seria o que se pode nominar verdade verdadeira, ou seja, a percepção de algo que mais se aproxima do que realmente ocorreu.

Pela doutrina, a verdade real, que é também chamada material, difere da verdade formal, nominada ainda de processual. Fernando da Costa Tourinho Filho268 traduz o pensamento da doutrina processual assim:

Enquanto o juiz não-penal deve satisfazer-se com a verdade formal ou convencional que surja das manifestações formuladas pelas partes, e a sua indagação deve circunscrever-se aos fatos por elas debatidos, no Processo Penal o juiz tem o dever de investigar a verdade real, procurar saber como os fatos se passaram na realidade, quem realmente praticou a infração e em que condições a perpetrou, para dar base certa à justiça.

Vê-se que o juiz penal deve ter mais compromisso na descoberta da verdade mais próxima da realidade que o juiz cível. Isso coloca aquele como ator mais ativo na produção da prova durante o processo penal, sendo essa a regra. Só de forma excepcional o juiz penal julga de conformidade com a verdade formal.

266 FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. São Paulo: Malheiros, 2004. 267 SILVA JÚNIOR, ibidem, p. 544.

O CPP tem diversas regras onde se prevêm a busca da verdade. Pelo art. 184, “salvo o caso de exame de corpo de delito, o juiz ou a autoridade policial negará a perícia requerida pelas partes, quando não for necessária ao esclarecimento da verdade.” Ou seja, a busca da verdade deve justificar a necessidade da prova pericial.

No interrogatório o juiz indaga do réu se é verdadeira a acusação, conforme previsão do art. 187, § 2º, I, do CPP. Pelo art. 203 do mesmo diploma legal a testemunha fará, sob palavra de honra, a promessa de dizer a verdade do que souber e Ihe for perguntado. E pelo art. 211, se o juiz, ao pronunciar sentença final, reconhecer que alguma testemunha fez afirmação falsa, calou ou negou a verdade, remeterá cópia do depoimento à autoridade policial para a instauração de inquérito.

Já o art. 217 assevera que se o juiz verificar que a presença do réu, pela sua atitude, poderá influir no ânimo da testemunha de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará retirá-lo, prosseguindo na inquirição com a presença do seu defensor, caso não haja possibilidade de realizar o ato por videoconferência. Neste caso deverão constar do termo a ocorrência e os motivos que a determinaram.

Uma das atribuições do juiz-presidente do Tribunal do Júri é ordenar, de oficio, ou a requerimento das partes ou de qualquer jurado, as diligências destinadas a sanar qualquer nulidade, ou a suprir falta que prejudique o esclarecimento da verdade, conforme expressa disposição do art. 497, XI, do CPP.

Um dos mais importantes artigos que se referem à regularidade do processo é o art. 566. Por ele não será declarada a nulidade de ato processual que não houver influído na apuração da verdade substancial ou na decisão da causa. Isso revela a manifesta intenção de aproveitar os atos processuais com o máximo de eficiência possível, evitando decretação de nulidades de forma desnecessária.

A autodefesa processual ampliada, por sua vez, poderá fornecer ao juízo mais elementos de corroboração da verdade dos fatos. Tanto pelo fato de o acusado poder esclarecer mais intensamente a dinâmica do ocorrido no dia do crime, como também pela confrontação de sua versão com de outros réus, bem como de testemunhas, além da própria vítima, quando possível.

O réu pode optar pelo silêncio quando observar que a prova produzida pela acusação é frágil e vai levá-lo à absolvição. Caso contrário, vai colaborar com

dados que podem esclarecer pontos obscuros.

A dúvida sobre a certeza probatória sempre beneficia o réu. É a exaltação do princípio do favor rei. A falta absoluta de provas ou a simples insuficiência leva o juiz, necessariamente, a absolver o acusado, advindo daí a imperiosidade da certeza real. Para Carnelutti, “quando o juiz não chega a comprovar a culpabilidade, tem de declarar a inocência.”269

Mesmo em caso de eventual conflito com defensor sobre determinada postura do réu na produção de alguma prova, a busca da verdade é sempre o valor máximo do processo penal. O réu pode até ser prejudicado com pergunta por ele feita à testemunha, mas a verdade pode ser desvelada com dita atitude.

Se a percepção da verdade é feita por cada ser humano de uma forma bem peculiar, revela-se mais produtiva chamar a verdade almejada no processo de “verdade possível”. A verdade dos fatos é, na verdade, a verdade obtida pela colheita dos depoimentos. A “verdade verdadeira” seria utópica, portanto, pois nenhuma testemunha ou réu ou vítima tem capacidade de descrever, com exatidão absoluta e exaustiva, o que de fato ocorreu, com todas as suas infinitas particularidades, no exato instante do delito.