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A interpretação dos tratados e o princípio da primazia da norma mais

2. AUTODEFESA PROCESSUAL

2.2 Autodefesa processual nos Tratados Internacionais

2.2.2 A interpretação dos tratados e o princípio da primazia da norma mais

Trindade229 informa que a doutrina jurídica dos direitos humanos centrou preocupação sobre a primazia do direito internacional ou do direito interno. Mas, no contexto atual, a primazia é da norma mais favorável às vítimas. A busca pela proteção integral da pessoa como princípio fundamental do discurso de defesa dos direitos humanos enaltece a primazia da norma mais favorável quando do exercício de interpretação do conjunto normativo. Tem-se o princípio da primazia da norma mais favorável como preceito consagrado de forma expressa em tratados de direitos humanos.

Paulo Henrique Gonçalves Portela defende que a inclusão desse princípio no texto constitucional decorre da consagração da dignidade humana como um dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, o que faz com que todo o ordenamento jurídico brasileiro confira o máximo de eficácia a essa dignidade, vez que é inerente ao indivíduo, independentemente de qualquer condição de que se revista.230 Ou seja, a dignidade humana é o mais importante

227 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos

Humanos. v. 1, 2. ed. Porto Alegre: Fabris, 2003., p. 506.

228 Cançado Trindade opta por exigibilidade e implementação. (cf. TRINDADE, ibidem, p. 538). 229

Ibidem, p. 542.

referencial de aplicação das normas jurídicas, tanto internacionais quanto internas. Gonçalves Portela salienta que o Brasil assumiu um compromisso prioritário com a proteção e promoção da dignidade humana em território nacional e no mundo, valor entendido pela comunidade internacional como de suprema relevância e cuja realização na vida social pode ocorrer mesmo que haja algum sacrifício da própria soberania nacional. 231

Por isso, há no Direito Internacional a clara concepção de que as normas sobre direitos humanos devem prestigiar sempre os mecanismos que melhor possam proteger a dignidade humana.232 Tal idéia encontra expressa previsão no

Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, em que não se admite qualquer restrição ou suspensão dos direitos humanos fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado-Parte do presente pacto em virtude de leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob pretexto de que o presente pacto não os reconheça ou os reconheça em menor grau. 233

Observa-se, pela redação acima, que direitos humanos chamados fundamentais, quando expressamente afirmados e reconhecidos em qualquer Estado que aderiu formalmente aos termos do Pacto, não sofrerão restrições ou suspensões por leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob pretexto de não reconhecimento ou de reconhecimento parcial. Por evidência, eventuais dúvidas de interpretação podem ser dirimidas sem que se impeça a aplicação das normas mais benéficas.

Outro importante documento que materializou norma sobre o tema foi o Pacto de San José da Costa Rica, resultado da Convenção Americana de Direitos Humanos (de novembro de 1969). A redação do art. 29 trata de normas de Interpretação, informando que nenhuma disposição desta Convenção pode ser interpretada no sentido de: a) permitir a qualquer dos Estados-Partes, grupos ou pessoas, suprimir o gozo e exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista; b) limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possa ser reconhecido de acordo com

à luz do princípio da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais do Brasil. 2007. 309 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2007, p. 107.

231

Ibidem, p. 110.

232 Esta posição é defendida por Antônio Augusto Cançado Trindade. (cf. TRINDADE, Antônio

Augusto Cançado. A proteção dos Direitos Humanos nos plano nacional e internacional: perspectivas brasileiras. Brasília: F. Naumann, 1992, p. 317-318.

as leis de qualquer dos Estados-Partes ou de acordo com outra convenção em que seja parte um dos referidos Estados; c) excluir outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem da forma democrática representativa de governo; e d) excluir ou limitar o efeito que possam produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos internacionais da mesma natureza. 234

Vê-se, dessa maneira, um comando ostensivo no direcionamento da interpretação das normas emitido aos países signatários do Pacto de San José. Percebe-se, desta feita, que a intenção de vedar a supressão do gozo e do exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção restou induvidosa. Deste modo, é possível chegar à asserção dedutiva de que em caso de conflito entre norma internacional de direitos humanos e norma interna – tida como aquela produzida segundo os preceitos de elaboração normativa de cada país –, deverá prevalecer, sempre, aquela que melhor proteja o indivíduo em sua dignidade.

Flávia Piovesan235 trouxe importante contribuição neste ponto, destacando que a “interpretação a ser adotada no campo do Direito dos Direitos Humanos é a interpretação axiológica e teleológica que conduza sempre à prevalência da norma que melhor e mais eficazmente proteja a dignidade humana.” A autora afirma, ainda, que o Pacto de San José da Costa Rica consagra o princípio da prevalência da norma mais benéfica para orientar que a Convenção só se aplica se ampliar, fortalecer e aprimorar o grau de proteção de direitos, ficando vedada sua aplicação se resultar na restrição e limitação do exercício de direitos previstos pela ordem jurídica de um Estado-Parte ou por tratados internacionais por ele ratificados. Com isso, a primazia é sempre da norma mais benéfica e protetiva aos direitos humanos, seja ela do Direito Interno ou do Direito Internacional. Este princípio há de prevalecer e orientar a interpretação e aplicação da normatividade de direitos humanos, ficando afastados os princípios interpretativos tradicionais, como o princípio da norma posterior revoga a anterior com ela incompatível, ou o princípio da norma especial que revoga a geral no que apresenta de especial.

Sobre o âmbito e o sentido dos direitos fundamentais, a Constituição Portuguesa tem interessante previsão no art. 16.2: “Os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de

234 PACTO DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA, ibidem. 235 GOMES, Luiz Flávio e PIOVESAN, Flávia, ibidem, p. 26.

harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem.”236 Isto revela o propósito de garantir maior efetividade às normas internas diante da amplitude humanista alcançada pela Declaração de 1948, o pós-guerra.

No entanto, no Brasil, Paulo Bonavides lembra, tratando especificamente da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948:

Erra todo aquele que vislumbra no valor das Declarações dos Direitos Humanos uma noção abstrata, metafísica, puramente ideal, produto da ilusão ou do otimismo ideológico. A verdade é que sem esse valor não se explicaria a essência das Constituições e dos tratados, que objetivamente compõem as duas faces do direito público – a interna e a externa. 237

Na aplicação dos tratados no âmbito do ordenamento jurídico interno, mesmo que sejam utilizados os parâmetros hermenêuticos tradicionais – quanto ao critério da hierarquia de normas ou da cronologia –, prevaleceria o critério da regra mais favorável ao ser humano. Isto se deve ao fato de que o objetivo principal dos tratados é conferir às pessoas a mais ampla proteção possível, com interpretação ampliativa das normas para este específico fim.

Dito isto, não cabe suscitar disposições de direito interno para impedir a aplicação de direitos considerados mais benéficos aos seres humanos que estejam previstos nos tratados ratificados, regra esta que está expressa na maioria dos tratados. Porém, deve prevalecer a norma interna quando esta for mais favorável que as do Tratado.

Para Augusto Cançado Trindade238, a tendência constitucional contemporânea de dispensar um tratamento especial aos tratados de direitos humanos é, pois, sintomática de uma escala de valores na qual o ser humano passa a ocupar posição central.

Dessa forma, a primazia de normas mais favoráveis não se restringe à proteção da vítima, mas sim à proteção do ser humano em toda a dimensão de direitos. Por isso qualquer pessoa que responda a processo criminal – e por evidência seja qualificado como imputado – pode invocar direito ou garantia internacional materializado em tratado como sendo mais benéfico que a lei interna

236 PORTUGAL. Constituição Portuguesa. Disponível em:

<http://www.portugal.gov.pt/Portal/PT/Portugal/Sistema_Politico/Constituicao/constituicao_p02.htm>. Acesso em: 26 junho 2008.

237 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, ibidem, p. 574.

238 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos

do país em que vive.

Sobre a interação das normas, Augusto Cançado assevera com ênfase: “O direito internacional e o direito interno interagem e se auxiliam mutuamente no processo de expansão e fortalecimento do direito de proteção ao ser humano.”239 Pela primazia da norma mais favorável, eventual conflito com o direito interno deve ser resolvido pelo grau de benefício ao ser humano. Ou seja, caso os direitos constantes dos tratados internacionais de direitos humanos revelem-se mais benéficos estes deverão prevalecer. O contrário ocorrerá se as normas do ordenamento jurídico interno conferirem maior proteção ao ser humano, devendo estas serem aplicadas, não importando se o tratado foi ratificado posteriormente e ou se a norma interna possui natureza infraconstitucional.