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1. A DEFESA

1.6 A defesa como garantia fundamental

A definição de direitos fundamentais vem sendo amadurecida pela doutrina. Marcelo Campos Galuppo entende por direitos fundamentais “os direitos que os cidadãos precisam reciprocamente reconhecer uns aos outros, em dado momento histórico, se quiserem que o direito por eles produzido seja legítimo, ou seja, democrático.” 96

Para Ingo Wolfgang Sarlet,97 direitos fundamentais são as posições jurídicas concernentes às pessoas, que, do ponto de vista do direito constitucional positivo, foram, por seu conteúdo e importância (fundamentalidade em sentido material), integradas ao texto da Constituição e, portanto, retiradas da esfera da disponibilidade dos poderes constituídos (fundamentalidade formal), bem como as que, por seu conteúdo e significado, possam lhes ser equiparados, agregando-se à Constituição material, mesmo sem ter assento na Constituição formal.

Para Sarlet, os direitos fundamentais integram a nossa Constituição, que é escrita, permanecendo no ápice de todo o ordenamento jurídico. E são normas de comando obrigatório e imediato a todas as entidades, públicas ou privadas, vez que estão sob o manto das cláusulas pétreas, assumindo também o caráter de fundamentalidade material ao mesmo tempo que a formal. Ele lembra que a construção da concepção dos direitos fundamentais adveio basicamente da vagarosa afirmação das idéias de liberdade e dignidade da pessoa humana,

96 GALUPPO, Marcelo Campos. O que são os direitos fundamentais? In: José Adércio Leite

Sampaio. (Org.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 236.

97 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6 ed. Porto Alegre: Livraria do

influenciada por todos os ensinamentos que serviram como embrião do pensamento jusnaturalista, permeados pela filosofia e pela religião na Antiguidade. Para a época, o homem tinha direitos naturais pelo simples fato de existir.

Willis Santiago Guerra Filho98 expõe sua opinião sob o foco da introdução no ordenamento jurídico. Para ele, os direitos humanos são “pautas ético-políticas” ou “direitos morais”, situados em uma dimensão supra-positiva diversa da que consta na norma jurídica. E somente quando inserida no ordenamento, formalmente, é que ditos direitos passariam a ser considerados fundamentais. Ele destaca que a nova redação trazida pela EC nº. 45 acentuou essa diferença, inserindo o termo direitos humanos no texto. Isso evidencia a visão universalista dos direitos humanos, ao contrário dos direitos fundamentais, vez que estes são assentados na ordem jurídica interna.

Paulo Bonavides99 é enfático: “em meu modo de entender, quem diz direitos humanos diz direitos fundamentais, e quem diz estes diz aqueles, isto é, a mesma coisa.” Ressalta que numa acepção mais genérica parece aceitável o uso dos termos de forma indistinta, principalmente quando se está refletindo sobre a democracia.

Para dar mais clareza e precisão, entretanto, Bonavides imprime ligeira variação conceitual: direitos humanos seriam os direitos do homem antes de seu ingresso nos Códigos e nas Constituições como direito positivo e público nos ordenamentos nacionais; direitos fundamentais seriam os próprios direitos humanos levados ao estado de concretude, tornados direito positivo com a inserção no espaço normativo dos sistemas constitucionais.

Somente com a organização do Estado o homem se viu compelido a tecer regramentos de contenção dos comportamentos. Antes dessa organização a repressão aos atos tidos por delituosos se dava pela vingança privada – não patrocinada pelo Estado. A elevada complexidade das relações sociais fez surgir a necessidade de previsão sistematizada dos ilícitos penais e de sua respectiva forma de punir aqueles que os perpetrassem.

Os primeiros documentos que revelam importância pelo seu caráter de libertação vieram com a independência americana. A Declaração dos Direitos da

98 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 4 ed. São

Paulo: RSC Editora, 2005, p. 43.

99 BONAVIDES. Paulo. Do País Constitucional ao País Neocolonial. A derrubada da Constituição

Virgínia teve sustentação nas idéias iluministas. E já trazia, no art. 10, a concepção de que aos homens devem ser conferidos alguns direitos e garantias inerentes à defesa:

Em todos os processos por crimes capitais ou outros, todo indivíduo tem o direito de indagar da causa e da natureza da acusação que lhe é intentada, tem de ser acareado com os seus acusadores e com as testemunhas; de apresentar ou requerer a apresentação de testemunhas e de tudo que for a seu favor, de exigir processo rápido por um júri imparcial e de sua circunvizinhança, sem o consentimento unânime do qual ele não poderá ser declarado culpado. Não pode ser forçado a produzir provas contra si próprio; e nenhum indivíduo pode ser privado de sua liberdade, a não ser por um julgamento dos seus pares, em virtude da lei do país. 100

O primeiro artigo já trazia que todos os homens nascem igualmente livres e independentes, têm direitos certos, essenciais e naturais dos quais não podem, por nenhum contrato, privar nem despojar sua posteridade: tais são o direito de gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança. Nasciam as discussões sobre o direito natural como direito à existência digna do ser humano.

Dias depois, foi declarada a independência dos Estados Unidos, em que treze colônias decidiram fundar uma nação que não mais ficasse sob o jugo da Inglaterra, rompendo os laços políticos que os ligavam. Com isso, elaborou-se em 1787 a Constituição – a primeira e única. Emenda posterior incluiu o Art. VI com expressaprevisão do direito de defesa em processos penais:

Em todos os processos criminais, o acusado terá direito a um julgamento rápido e público, por um júri imparcial do Estado e distrito onde o crime houver sido cometido, distrito esse que será previamente estabelecido por lei, e de ser informado sobre a natureza e a causa da acusação; de ser acareado com as testemunhas de acusação; de fazer comparecer por meios legais testemunhas da defesa, e de ser defendido por um advogado.

101

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, influenciada também pelos ideais do Iluminismo e pela Independência Americana, consagrou a máxima de que “todo homem é tido como inocente até o momento em

100 Ibidem.

101 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Constituição Federal dos Estados Unidos. Disponível em: <

que seja declarado culpado”102. Ensaiavam-se os primeiros estatutos com esteio na justificação de “conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem”.103

Passados longos anos, vieram os conflitos mundiais. A Declaração Francesa foi a base da Declaração Universal dos Direitos Humanos, momento em que surgiu a denominação que procurava estabelecer nova ordem para os chamados direitos naturais: Direitos Humanos.

A Declaração Universal veio logo depois da II Grande Guerra Mundial com a intenção de enaltecer os princípios centrados principalmente nos valores que circundavam a dignidade da pessoa humana, tema já inserido no seu primeiro artigo: “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”.104

sobre direito de defesa, no art. 11, § 1º, trata claramente dele:

Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias a sua defesa.105

Seguiram-se daí os pactos internacionais106 que tiveram por escopo dar mais efetividade aos preceitos da Declaração Universal. Os que têm dispositivos expressos sobre o direito de defesa são: Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (de 1950), Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (de 1966), Pacto de San José da Costa Rica (de 1969), Convenção sobre os Direitos das Crianças (de 1989), além do Estatuto do Tribunal Penal Internacional (de 1998).

Paulo Bonavides107 tece comentários sobre a teoria dos direitos fundamentais elencando-os em classificação por gerações, quando atenderia à cronologia, mas sem que os mais novos excluam ou anulem os mais antigos. Ele reconhece que o termo dimensões é de ser melhor empregado ao tema, substituindo com vantagem lógica e qualitativa. Assim, seriam de primeira geração

102 DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO. Art. 9º. Disponível em: <

www.dhnet.org.br/direitos/anthist/dec1793.htm >, Acesso em 22 abril 2008.

103

Ibidem, art. 2º.

104 DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Disponível em .: <

http://www.unhchr.ch/udhr/lang/por.htm >. Acesso em: 14 maio 2008.

105

Ibidem.

106 PACTOS INTERNACIONAIS DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA E DOS DIREITOS CIVIS E

POLÍTICOS. Disponíveis em: <http://www.cedin.com.br/050trata_pgs/trata000.htm#05>. Acesso em: 31 jan. 2008.

os direitos da liberdade – os direitos civis e políticos –, em que o indivíduo seria o titular; os de segunda geração seriam os direitos sociais, culturais e econômicos, bem como os direitos coletivos ou de coletividade; os direitos de terceira geração seriam os centrados na fraternidade e solidariedade, consubstanciados no desenvolvimento, na paz, no meio ambiente, na comunicação e no patrimônio comum da humanidade; os de quarta geração seriam os direitos relativos à democracia, à informação e ao pluralismo.

Bonavides já apregoa, com propriedade, que a quinta geração de direitos agrega todos os outros direitos fundamentais em torno da paz. Para o jurista, quem negar o direito à paz cometerá um crime contra o ser humano, devendo o Estado que a violar responder às outras nações.108

Sobre a defesa, pela divisão feita, há que defini-la como direito de primeira geração – ou dimensão. A defesa é oponível ao Estado, vez que diretamente relacionada com a liberdade da pessoa – ou das pessoas, quando ocorre imputação coletiva. É um direito de resistência, bem demonstrada quando exercitada no processo penal em que o acusado luta para evitar a pretensão do Estado em obter uma decisão condenatória. Por certo, nos dois sentidos atribuídos ao termo, a defesa pode levar alguém à manutenção da vida – como no caso da legítima defesa – ou à liberdade – como na hipótese em que o réu consegue conter o Estado no processo que poderia levá-lo ao cárcere.

J. J. Gomes Canotilho109 lembra que a primeira função dos direitos fundamentais – sobretudo dos direitos, liberdades e garantias – é a defesa da pessoa humana e da sua dignidade perante os poderes do Estado, cumprindo, portanto, a função de direitos de defesa dos cidadãos sob perspectiva dupla: constituem normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo as ingerências na esfera jurídica individual; e implicam o poder de exercer positivamente direitos fundamentais – de liberdade positiva –, além de poder exigir omissões do poder público para evitar agressões por parte deles.

A incorporação dos tratados internacionais no Brasil foi feita por uma porta de natureza constitucional: o § 2º do art. 5º da CF. Por ela os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e

108 BONAVIDES, Paulo. Jurista ressalta o direito à paz. Jornal Diário do Nordeste. Disponível em:

<http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=433578>. Acesso em: 31 jan. 2008.

109 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional: e Teoria da Constituição. 7 ed.

dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Mas a própria Constituição fixou regras formais necessárias para a adesão com participação do Poder Executivo e do Legislativo.

Uma inovação trazida pela EC nº. 45 acabou por criar uma exigência de forma própria para que os pactos internacionais tenham recepção com força de norma constitucional: os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. Ou seja, ratifica a posição de que os tratados que não observarem a forma prevista na Constituição para aprovação de Emenda Constitucional terá recepção como norma com a mesma hierarquia de lei ordinária.

Assim, a resposta não pode ser outra: a defesa é um direito fundamental. No entanto, pode ser ainda uma garantia de liberdade e de dignidade. A primeira quando o processo pode levar o acusado à prisão; a segunda quando não leva à prisão, mas a rótulos que a sociedade abomina, a exemplo dos termos condenado e

criminoso.

Como direito fundamental surge a indagação quanto ao direito à individualidade. John Stuart Mill salienta que a pessoa é quem tem mais interesse em seu bem-estar. O interesse que qualquer outra pessoa possa ter no outro é superficial se comparado com o próprio interesse em si mesmo, ressalvados os casos excepcionais de relação interpessoal extrema.110

Para Mill, se as pessoas têm direito, no que quer que interesse apenas a elas próprias, de agir como lhes parecer melhor a seu próprio risco, devem ser igualmente livres para consultar uma ou outra sobre o que é adequado a ser feito.111 A sociedade não teria legitimação de interferir na vida de um único membro se não fosse para impedir o mal que ele possa praticar contra os outros.

Assim, a defesa de cada um é sagrada e interessa mais ao indivíduo que à própria sociedade. O réu pode sofrer as conseqüências de uma condenação que pode ser até a privação da liberdade; a sociedade tem o interesse de ver realizado um julgamento justo, a servir de padrão de atuação do Estado a ser adotado em casos similares. Não agindo assim, qualquer um pode sofrer injustiça, até mesmo aqueles avessos à aplicação dos princípios constitucionais em processos.

110 MILL, John Stuart, ibidem, p. 109. 111