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CAPÍTULO I. A PROBLEMÁTICA DA AUTONOMIA NAS POLÍTICAS EDUCATIVAS EUROPEIAS E

5. Políticas educativas em Portugal: o caso da autonomia das escolas

5.1. A autonomia numa encruzilhada entre democratização e modernização

O espectro espácio-temporal entre os anos 80 e 90 é o nosso ponto de partida para problematizar a questão da autonomia nas políticas educativas: como e por que motivo surgiram políticas educativas governadas pelo tema da autonomia em Portugal? Que racionalidades existem por detrás das políticas autonómicas?

Desde os finais dos anos 80 que se assistiu a um retrocesso do papel do Estado nos processos de decisão política e de administração em educação. Nas palavras de Charlot (2007), surgem novas lógicas económicas e empresariais na orientação da organização social e educativa europeia: “lógicas de qualidade, eficácia e diversificação” (p. 130) que impõem um “recuo do Estado em benefício das novas lógicas económicas que exigem novas formas de descentralização e territorialização” (p. 131).

De um modo geral, podemos afirmar que essa mudança ocorre no sentido de transferir poderes e funções do nível nacional e regional para o nível local, passando a escola a ser um lugar central de gestão e a comunidade escolar, uma parceira essencial na tomada de decisão. Esta retração do Estado englobou vários países com sistemas políticos e administrativos distintos e tem no reforço da autonomia da escola uma das expressões mais significativas. Stephen Ball (1998) defende que, nesse período, coexistiram duas agendas internacionais em diferentes países que se traduziram num conjunto de políticas genéricas para a educação e que incrementaram novas lógicas e racionalidades típicas do pensamento neoliberal. De acordo com o sociólogo inglês:

a primeira agenda procurou entrelaçar a educação com os interesses económicos nacionais, enquanto a segunda envolveu a dissociação da educação do controlo direto do Estado. A primeira assentou numa articulação e numa afirmação claras do Estado em relação aos requisitos para a

educação, enquanto a segunda deu, pelo menos, a ilusão de uma maior autonomia às instituições educativas na conceção desses requisitos (Ball, 1998, p. 125).

Com efeito, verificamos que as políticas autonómicas emergiram no quadro das orientações neoliberais de política educativa, particularmente presentes nos países anglo-saxónicos3, e, com elas, procurou retirar-se à educação escolar o seu sentido cívico originário, através da privatização de segmentos do sistema educativo e de inculcação da lógica do mercado no interior da escola pública. O conceito de autonomia surge, assim, como núcleo das políticas educativas na Europa num momento em que vários países procuram resolver a crise de governabilidade do sistema de ensino, em oposição aos mecanismos burocráticos e centralizadores de um Estado de bem-estar social revoluto. Com efeito, em termos formais, o movimento da gestão local e autonomia da escola enquadra-se no âmbito das reformas da Administração Pública que procuraram responder à crise política do Estado moderno.

Estas reformas apresentam várias dimensões (política, administrativa, económica e gestionária) e segundo Barroso (1998):

evoluíram desde uma perspetiva mais centrada na transferência de poderes entre os vários níveis de administração (descentralização), a uma perspectiva mais centrada na alteração dos processos de decisão e gestão (“nova gestão pública”), até às perspectivas mais radicais de liberalização e privatização do sector público (lógica de mercado) (p. 86).

As referências ao conceito de autonomia das escolas surgem, nas políticas educativas portuguesas, a partir da publicação da Lei nº46/1986 de 14 de outubro (Formosinho et al., 2009, p.1) mais conhecida como Lei de Bases do Sistema Educativo, e também no âmbito da Reforma Educativa empreendida na segunda metade dos anos 80 do século XX (Barroso, 2004, p. 54; Formosinho, 2010, p.43). Neste período, a escola pública portuguesa encontra-se duplamente pressionada a conciliar as exigências advindas da massificação escolar herdada do contexto socio-histórico português e os imperativos da modernização económica, oriundos da adesão portuguesa à Comunidade Económica

3 No caso específico da Inglaterra, Stephen Ball (2017) associa o período Thatcheriano a um revivalismo do ideário neoliberal (pp. 84-85) que se manifestou no descrédito do Estado de bem-estar social, considerado ineficiente pelas suas burocracias, elogiando “a liberdade individual (a liberdade de escolha) e a liberdade do mercado (a competitividade)” (Ball, 2017, pp.84-85). O sociólogo inglês descreve como a autonomia concedida a cada escola ocultou lógicas neoliberais de racionalização, otimização e de implementação de novos valores como a competitividade no seio das organizações escolares.

Entre 1981-1985 o ministro da Educação inglês criou os “vouchers” reduzindo os pais ao estatuto de consumidor e a educação a um serviço consumível, com o intuito de incrementar a liberdade de escolha entre o setor público e privado e, assim, incutir lógicas de competitividade entre estabelecimentos de ensino. O financiamento dado a cada escola tendo por base cada aluno matriculado teve como intenção fomentar a competição entre as escolas que, como as empresas, obteriam lucro de acordo com o desempenho mostrado. Para tal, o governo concede a autonomia a cada escola, reduzindo a intervenção estatal e permitindo-lhe gerir os seus próprios recursos humanos e financeiros.

Europeia. Carlos Estêvão (2001), na linha de pensamento de outros autores, designadamente de J. A.

Correia, refere que “uma das tendências na educação, a partir sobretudo da década de 80, tem precisamente a ver com a ideologia da modernização que procura valorizar o modelo empresarial como eixo de referência privilegiado na regulação da educação” (p. 160). Licínio Lima (1994) refere que as políticas educativas tenderam a “empresarializar” a educação, incidindo nomeadamente nas políticas da reforma educativa após a publicação da Lei de Bases do Sistema Educativo e evidenciam “um deslocamento da esfera da democratização para o universo da modernização”, (p. 124) reutilizando perspetivas liberais na educação. Também Correia, Stoleroff e Stoer (2012) apontam que, nesse período, o discurso educativo estruturou-se em torno de duas temáticas:

a igualdade de oportunidades, que substitui a problematização da democratização do ensino a favor da meritocracia; e a modernização, que constituiu um elemento de legitimação do discurso educativo dominantes dos anos 80 e que se assumiu como um chavão para realçar a necessidade de estreitar as relações entre a escola e a vida activa sem que haja necessidade de se explicitar o que se entende por vida activa ou a natureza das relações em causa (pp. 171-172).

De facto, nesta década assiste-se a um esmorecimento do fervor democrático ocorrido no período pós-revolucionário. O processo de reforma educativa desencadeado em 1986 com a criação da Comissão de Reforma do Sistema Educativo e a publicação de Leis de Base do Sistema Educativo reflete a tensão existente entre democratização (autonomia, participação, descentralização) e modernização (racionalização, eficácia, competitividade), assim como evidenciou um hibridismo politico-ideológico. Embora o discurso de modernização seja comum aos diferentes países europeus, no caso específico português, ele simboliza a “rutura com o discurso da democratização, fortemente enraizado na política educativa desde 1974 (…) e a tentativa de articular aquele discurso com a ideologia da modernização” (Lima & Afonso, 1993, p.33). De facto, os mesmos autores sugerem que:

registra-se ainda uma tendência no sentido de remeter a democratização para o discurso político e normativo mais visível, presente em leis fundamentais, em preâmbulos, na apresentação pública de programas e medidas governamentais, ao passo que o discurso da modernização tende a estar presente de forma mais constante nos domínios da regulamentação e da ação política, domínios mais operativos e implementativos e, por isso, aparentemente menos sujeitos a critérios de conveniência discursiva (Lima & Afonso, 1993, p. 34).

É neste quadro que os conceitos como autonomia, descentralização, participação são recontextualizados e reconceptualizados e tendencialmente despojados de sentido político. Como verificou Lima (1994):

a autonomia (mitigada) é um instrumento de construção de um espírito e de uma cultura de organização-empresa; a descentralização é congruente com a “ordem espontânea” do mercado, respeitadora da liberdade individual e garante de eficiência económica; a participação é essencialmente uma técnica de gestão, um fator de coesão e de consenso (p. 122).

5.2. A consagração da autonomia como técnica de gestão e a descentralização como