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Autonomia e Flexibilidade curricular: regulação performativa da identidade docente?

CAPÍTULO IV: AUTONOMIA E FLEXIBILIDADE CURRICULAR: O PLANO DAS ORIENTAÇÕES PARA A

1. Autonomia e Flexibilidade curricular: plano de orientações para a ação organizacional

1.4. Autonomia e Flexibilidade curricular: regulação performativa da identidade docente?

No enquadramento conceptual e teórico anterior foi possível estudar alguns autores --Popkewitz (1999) e Ball (1993) – que equacionaram o surgimento de políticas curriculares com novas formas de controlo e poder sobre a organização escolar e sobre os seus atores. No âmbito do modelo burocrático também nos foi possível sintetizar que a excessiva regulamentação funciona como uma forma de manter o controlo e a previsibilidade da organização ao mesmo tempo que contribui para a despersonalização do ator educativo. O modelo político, por sua vez, permitiu-nos compreender que pese embora a omnipresença do poder na organização e nas relações, nenhum ator é totalmente condicionado porque cada um aufere de “poder pessoal” (Bush, 2003, p. 11), havendo sempre uma margem de liberdade. Na análise que aqui empreendemos, esta síntese revela-se deveras importante uma vez que nos permite equacionar até que ponto as políticas educativas curriculares podem funcionar como mecanismos de controlo sobre a autonomia pedagógica dos atores.

Para esboçar algumas eventuais respostas, valemo-nos do primeiro relatório de avaliação externa da Autonomia e Flexibilidade Curricular (Cosme, 2020) que inquiriu as escolas participantes no projeto, de forma a efetuarmos uma análise crítica e interpretativa aos impactos da sua implementação. A equipa responsável pela monitorização do projeto identificou que os pontos fracos associados a este projeto – quantitativamente superiores aos pontos positivos - prendem-se com motivos de ordem burocrática, desde “a alocação e compartimentação de horários, disciplinas e de ciclos”, assim como de ordem racional, como “a falta de recursos materiais e humanos”, a consciência de “ameaças externas” que se revelam ser formas de controlo a posteriori como os exames nacionais e a “resistência à mudança dos professores que se recusam a utilizar novas metodologias e a instabilidade da profissão docente” (Cosme, 2020, p. 92-94). Notamos que a alegada

“resistência à mudança” é a variável mais importante (59,3 %) para os resultados obtidos em 2018/2019 frente à variável de índole burocrática (37%). Contudo, no questionário que pretendeu dar

voz à opinião dos professores estes apontam maioritariamente para o excesso de burocracia como a maior dificuldade na implementação deste projeto (Cosme, 2020, p. 38).

No que concerne aos pontos fortes, a comunidade inquirida destaca “a gestão curricular e pedagógica promotora de inovação de oferta educativa realizada” essencialmente no âmbito de

“estratégias pedagógicas que privilegiam o trabalho colaborativo e a articulação curricular” (Cosme, 2020, p. 95) pelo que, segundo este relatório, o carácter inovador na implementação do Decreto-Lei parece estar correlacionado com mudanças que se prendem com novas técnicas no ato de ensinar, isto é, com o âmbito didático e metodológico. A inovação surge, deste modo, associada a uma perspetiva tecnicista da mesma, localizada microorganizacionalmente e essencialmente aglutinada e circunscrita à forma como se faz esta gestão, isto é, através do trabalho colaborativo dos professores – em vez de o que se faz. Por outro lado, existe uma reiteração da gestão curricular e pedagógica como algo inédito e verdadeiramente inovador; porém questionamos se a função de gestão flexível do currículo não fora já uma das funções atribuídas à escola desde a Lei de Bases do Sistema Educativo (1986) quando esta preconizou que “os planos curriculares do ensino básico devem ser estabelecidos à escala nacional, sem prejuízo da existência de conteúdos flexíveis integrando componentes regionais”

ou “os planos curriculares do ensino secundário terão uma estrutura de âmbito nacional, podendo as suas componentes apresentar características de índole regional e local” (1986, Capítulo VII, Artigo nº47)?

Na esteira de Licínio Lima (2020) tomamos a liberdade de clarificar que a autonomia de gestão curricular difere conceptualmente e politicamente de autonomia curricular. De facto, enquanto a primeira fixa-se nos “meios, na execução e operacionalização mais contextualizadas do currículo central”, é de natureza “técnico-instrumental, de execução subordinada e em busca de eficiência”; a segunda veicula uma conceção democrática e participativa da ação dos atores, pois “é uma autonomia de conceção, em coautoria legítima com o poder central, implicando decisões substantivas relativamente aos fins e objetivos da educação escolar e ainda, necessariamente, quanto à avaliação”

(Lima, 2020, p. 187). Para o autor, ambas são relevantes, porém, a autonomia de gestão curricular é subordinada à autonomia curricular, não só em termos teóricos mas também em termos políticos (Lima, 2020, p. 187).

Por outro lado o relatório de avaliação estabelece na categoria de oportunidades que a Autonomia e Flexibilidade curricular deixa antever “a revitalização da profissionalidade docente, à qual se associa uma mudança de paradigma no entendimento do que é ser Escola e ser professor hoje”

(Cosme, 2020, p. 94), sendo que esta passa pelo trabalho colaborativo, pelo recurso a metodologias ativas e inovadoras, e centralizar todo o seu trabalho no “produto final”, isto é centrar a sua atenção exclusivamente no aluno e no microcontexto da sala de aula. À luz do enquadramento teórico-conceptual anterior, observamos que se evidencia o predomínio de técnicas de pendor metodológico o que nos permite pré-definir a subordinação à técnica como característica constitutiva da nova profissionalidade docente e como “forma protésica e artificial de agir sobre o contexto organizacional”

(Lyotard, 1979, p.72). Por outro lado, “a nova profissionalidade docente” emergente e descrita no relatório de avaliação em estudo recorda-nos “o novo docente” conceptualizado por Popkewitz (1999) e construído sincronicamente às reformas curriculares. Segundo este autor, a identidade docente é:

“reconstituída como um indivíduo capacitado, que resolve problemas, com capacidade para responder flexivelmente a problemas que não têm um conjunto de limites claros ou respostas únicas. Trata-se de uma individualidade pragmática, vinculada às contingências da situação em que os problemas surgem” (p. 42). Acrescentamos que as competências destacadas e louvadas como pontos fortes e oportunidades para o futuro não são do âmbito científico, mas sobretudo a nível de competências que se exigem cada vez mais aos professores. Como Popkewitz (1999) defendeu:

a competência não se encontra já nas capacidades e conhecimentos específicos, mas na capacidade para solucionar problemas imediatos do seu trabalho, e para ter um “conhecimento na ação” que exige reflexão imediata no lugar em que os acontecimentos se produzem. O docente é, assim, alguém capaz de trabalhar com elevados níveis de flexibilidade para definir e solucionar problemas” (p. 43).

Na esteira de autores como Lima (1997) e Afonso (2009) vimos como determinadas políticas educativas movidas pelo ideal da autonomia consistem numa delegação estratégica para distanciar conflitos do centro nevrálgico do poder ao mesmo tempo que responsabiliza os atores e reforça a governabilidade sistémica. Nesse sentido, o poder simbólico da autonomia parece assumir-se como uma “tecnologia de governo” (Rose & Miller, 2010, p. 273) assente numa aceção neoliberal de descentralização (Weiler, 1999). Deste modo, colocamos a hipótese de a nova identidade docente almejada consistir num indivíduo dotado de técnicas e artifícios, capaz de gerir e solucionar os problemas e conflitos que possam surgir, sem colocar em causa a estabilidade e eficiência organizacional.

Ainda sob outra perspetiva, observamos que a “nova profissionalidade docente” que se destaca pelo carácter colaborativo, centrado no aluno e com o recurso a metodologias ativas é reiterada como resultado quantitativamente predominante pelo que equacionamos se o conhecimento advindo deste relatório procura legitimar (Lyotard, 1979) e estandardizar (Mintzberg, 1979) estas técnicas como o epicentro do trabalho pedagógico e edifica-las como the one best way ou como boas práticas gerencialistas a serem seguidas? Observamos que a “revitalização da profissionalidade docente” apregoada resulta num ponto de vista organizacional ao reforço da visão horizontal e insular dos atores em relação à estrutura organizativa uma vez que se queda centrada unicamente no produto a ser desenvolvido e nas melhores técnicas para o elaborar. A hiperespecialização tecnicista é, como abordamos no capítulo teórico anterior, um dos motivos que contribui para a “miopia organizacional”

(Morgan, 2006, p. 40) e, logo, favorece a despolitização da sua profissão e a erosão democrática de um caminho de autonomia construída sobre a colegialidade, o debate e o espírito crítico. Por outro lado, sob um prisma político vemos a estandardização de métodos e práticas como um fator de conflito se tivermos em conta a complexidade organizacional de cada escola e a heterogeneidade dos seus atores. De facto, outro dado deveras significativo para esta análise é, como já vimos, o reconhecimento da resistência dos atores à mudança (Cosme, 2020, p. 38), sendo este dado reiterado ao longo do relatório23. O que inferimos deste dado em termos interpretativos é que a vontade de “mudança” surge, assim, associada ao Estado que desafia e convida à inovação, enquanto os professores são interpretados como uma “disfunção” (Merton, 1978). Mantemos uma postura cética face a estes últimos dados e não pretendemos interpretá-los de modo determinista nem linear pois sabemos que sob uma perspetiva política, cada organização escolar é um constructo social único e complexo que encerra uma cultura e um grupo profissional heterogéneo com interesses e ideias divergentes. De igual modo, a nível micropolítco confrontam-se continuamente motivos e aspirações que não são retratados num sistema binário e positivista de inclusão e exclusão de avaliação de dados. A posição de

“resistência” do professor parece ser interpretada como uma “disfunção” (Merton, 1978) e o professor reduzido a uma “personalidade burocrática” que considera as pressões externas como ameaças à sua segurança. No entanto, de um ponto de vista político esta “resistência” pode ser interpretada como positiva uma vez que ela é produto da margem de liberdade dos seus atores e típica de uma lógica de ação democrática. Tal observação leva-nos desde já a potenciais questões que poderão servir como orientação para o nosso trabalho empírico: de que forma os atores com interesses tão heterogéneos são mobilizados para alterar as suas práticas e colaborar entre eles? Que lógicas de ação (Bacharach &

23 Verificamos que, ao longo do documento, o conceito “resistência” é repetido 16 vezes para justificar as dificuldades encontradas no processo de implementação, enquanto que os conceitos “burocracia” ou “burocratização” surgem em menor número (10).

Mundell, 1999, p.128-129) veiculam os que colaboram e os que mostram resistência a essas práticas?

Que trocas (Hoyle, 1989) o diretor ou coordenadores dispõem para induzir os professores a colaborarem, quer na consecução do projeto, quer no trabalho entre pares num contexto organizacional marcado pela racionalização dos recursos e numa arquitetura organizacional de índole autoritária onde os órgãos de gestão pedagógica perderam legitimidade e centralidade?

O modelo político no seu âmbito micropolítico permitiu-nos ponderar que o controlo organizacional escolar não se exerce exclusivamente de forma vertical mas existe igualmente nas relações horizontais entre os atores (Ball, 1989). De igual modo, nos capítulos precedentes foi-nos possível dissertar sobre os processos de doutrinamento próprios das culturas empresariais de tipo gerencialista que procuram manipular a ação do sujeito de forma a garantir a sua produtividade, através de “meios de formação intensiva, planeamento, aprendizagem contínua e técnicas diversificadas, sem olvidar, o recurso ao simbólico e ao afetivo-emocional” (Willmott, 1993, p. 528) de modo a mobilizar a autonomia relativa dos seus membros para a consecução dos objetivos deliberados supraorganizacionalmente. Por isso, equacionamos até que ponto o trabalho colaborativo entre professores poderá ser interpretado como uma tecnologia de governo ao serviço do controlo microorganizacional entre pares de forma a reduzir as zonas de incerteza que emergem da autonomia pedagógica do professor? Perspetivado sobre outro ângulo será possível estarmos perante um “jogo”

de Crozier e Friedberg (1977), uma “fabricação e encenação” dos professores como conceptualizou Stephen Ball (2010) ou “uma socialização para a conformidade” (Lima, 1992, p. 66)?

Sistematizando as principais hipóteses de trabalho que fomos criando à medida da análise crítica e interpretativa do Decreto-Lei em estudo e diversos documentos que procuraram enriquecer epistemologicamente a nossa investigação, duas questões remanescem: este projeto procurou introduzir regulações performativas enclausurando os professores na pressão de servir parâmetros de produtividade e de resultado criando antes “um controlo de contexto” (Lyotard, 1979, p.72), que funciona essencialmente como mecanismo para “estimular, julgar e comparar profissionais”, isto é

“nomear, diferenciar e classificar através dos resultados” (Ball, 2005, p. 544) e, consequentemente, reduzir a sua autonomia pedagógica? E se essa aculturação e pressão para a performatividade não contribui para o seu distanciamento em relação à matriz primordial inerente à educação na memória coletiva dos seus profissionais, nomeadamente na capacidade de tornar a educação como “uma ato de intervenção do mundo” (Freire, 2012, p.97), ou seja, rumo a uma educação verdadeiramente autonómica e democrática?