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CAPÍTULO III: CONSTRUINDO UM OBJETO DE ESTUDO. FUNDAMENTAÇÃO METODOLÓGICA

3. Técnicas de investigação

3.1. A entrevista

A entrevista é perspetivada por alguns autores como uma “conversa” (Bogden & Biklen, 1994, p. 132), entendida como um “processo de comunicação e de interação humana” que exige “um contato direto entre o investigador e os seus interlocutores” (Campenhoudt, Marquet & Quivy, 2019, p.

260) e “uma margem de liberdade para os seus interlocutores” (Lüdke & André, 1986, p. 33). A entrevista é, de facto, uma técnica que utiliza uma “relação de interação” (Lüdke & André, 1986, p.

33) e um processo comunicativo, apoiando-se nos dados verbais para interpretar e dar significado à experiência dos sujeitos. Ela assume-se como um meio que permite que “os pontos de vista dos sujeitos sejam mais facilmente expressos” (Flick, 2002, p. 77) ao mesmo tempo que desencadeia um processo interativo que permite obter “informações sobre atitudes, sentimentos e valores subjacentes ao comportamento” (Rosa & Arnoldi, 2006, p. 23) e uma “captação imediata e corrente da informação desejada” (Lüdke & André, 1986, p. 34). Dentro de uma investigação qualitativa, a entrevista assume-se como uma técnica de recolha de dados valiosa e pertinente posto que a linguagem é a forma como o ser humano expressa, materializa e dá sentido à sua experiência, pois como verificou Seidman (1991) “at the very heart of what it means to be human is the ability of people to symbolize their experience through language. To understand human behavior means to understand the use of language” (p. 2). Por ser uma atividade humana que pressupõe uma relação de interação e comunicação, certos autores apontam a entrevista como uma técnica que exige competências sociais e pessoais ao entrevistador. Lüdke e André (1986) indicam qualidades como “uma boa capacidade de comunicação verbal” e “paciência para ouvir atentamente” (p. 36). Bogdan e Biklen (1994) citam a

“flexibilidade” como forma de “responder à situação imediata” (p. 137).

No âmbito do nosso tema de investigação, a entrevista permitir-nos-á ir ao encontro dos atores escolares, inquiri-los sobre as práticas implementadas na organização escolar com o Decreto-Lei

nº55/2018 e recolher dados descritivos na linguagem do próprio sujeito, permitindo ao investigador desenvolver intuitivamente uma ideia sobre as racionalidades por detrás das suas ações e a forma como os atores interpretam a sua prática. Reconhecemos, também, que esta técnica permitir-nos-á captar uma dimensão informal e política da organização escolar, sendo que as entrevistas possibilitam

“obter dados que não podem ser encontrados em registros e fontes documentais” (Rosa & Arnoldi, 2006, p. 16) que, por serem documentos escritos e normativos, tendem a retratar uma versão formal, racional e burocrática da organização escolar; ao mesmo tempo que se assumem como instrumentos capazes de retratar “canais multissensoriais da comunicação humana” (Cohen, Manion & Morrison, 2008, p. 349) que podem ser utilizados como dados.

Dentro dos tipos de entrevistas qualitativas (Rosa & Arnoldi, 2006, p. 29) optamos por uma entrevista semi-estruturada por esta “formular questões que permitam o sujeito discorrer e verbalizar os seus pensamentos, tendências e reflexões” (p. 30) e, ao mesmo tempo, “obter dados comparáveis entre os vários sujeitos” (Bogdan & Biklen, 1994, p. 135). De facto, procuramos um esquema mais flexível e menos estandardizado para a nossa entrevista de modo a podermos ter a liberdade de proceder às devidas adaptações no decorrer da mesma e, assim, introduzir correções, esclarecimentos e adaptações necessários advindos ao longo do processo interativo da entrevista. Não obstante a sua versatilidade para o processo investigativo, a entrevista apresenta, igualmente, algumas problemáticas.

Segundo Lüdke e André (1986) o entrevistador pode “introduzir um questionamento que nada tem a ver com o universo de valores e preocupações do entrevistado” (p. 35), levando a que este apresente respostas que não sejam representações subjetivas mas apenas confirmações às expectativas do questionador. Esta revela-se como uma das nossas preocupações mais importantes uma vez que o tema da nossa investigação relaciona-se com a autonomia democrática, o que pressupõe uma constelação axiológica de conceitos e ideias que podem ser interpretados como ideológicos pelo entrevistado. De igual modo, sabemos que “o efeito do observador” (Bogdan & Biklen, 1994, p. 68) pode ocorrer durante as entrevistas, ou seja, o comportamento dos atores pode modificar-se devido à presença do investigador contribuindo para as “fabricações” ou “encenações” já anteriormente referidas no âmbito dos modelos teóricos de análise.

Cientes das potencialidades e limitações deste instrumento de investigação, optamos por elaborar um guião que nos permitisse planear um esquema básico orientador e cujas questões nos possibilitasse aferir as diferentes racionalidades e práticas adstritas ao processo de adesão e de organização advindas com o Decreto-Lei nº 55/2018.

Aquando da elaboração do nosso guião de entrevista, as dúvidas não tardaram em manifestar-se. A insegurança inerente à nossa condição de investigadora principiante induziu-nos a um profundo questionamento e a reformulações constantes das perguntas a serem priorizadas: como poderíamos elaborar questões que permitam caracterizar a dimensão política da organização escolar? Deveríamos elaborar perguntas diferentes de acordo com o ator a ser entrevistado? Por exemplo, deveríamos elaborar um guião para os coordenadores e outro para o diretor escolar? O facto de nunca termos elaborado uma entrevista para uma investigação de âmbito qualitativo levou-nos a experienciar alguns receios que nos incentivaram a reler de novo o nosso enquadramento teórico-conceptual e consultar exaustivamente a literatura sobre o tema (Foddy, 1996; Keats, 2000). Definimos os tópicos relevantes (Foddy, 1996, p. 27) delineando o tipo de informação que pretendíamos para cada questão, elaboramos essencialmente perguntas abertas que concedessem alguma liberdade de resposta ao entrevistado (Keats, 2000, p. 35) e desenvolvemos o nosso guião de entrevista (Apêndice I). O nosso guião pretendeu, assim, seguir uma determinada ordem coerente procurando estabelecer sequências lógicas entre os assuntos e organizar-se de forma gradativa, isto é, iniciando no tema mais simples e culminando no mais complexo. Começamos, por isso, com questões que procuram aferir as racionalidades que justifiquem a adesão da escola ao projeto da Autonomia e Flexibilidade Curricular (pergunta 1) e expliquem o papel dos diferentes atores organizativos na tomada de decisão (perguntas 2, 3, 4, 7, 12) e, por outro lado, compreender as práticas inerentes à implementação do Decreto-Lei nº55/2018 (perguntas 5, 6, 8, 9, 10, 11) e as potenciais diferenças com as políticas educativas anteriores (pergunta 13).

Na hora de selecionarmos os entrevistados tivemos em consideração as perguntas-critério enunciadas por Rosa & Arnoldi, (2006) nomeadamente:

“Quantos têm a informação relevante?

Quantos são os mais acessíveis fisicamente e socialmente (entre os informados)?

Quantos estão mais dispostos a informar?

Quantos são mais capazes de comunicar a informação com precisão (entre os informados acessíveis e dispostos) ” (p. 52).

Relativamente à primeira pergunta, interessou-nos entrevistar os coordenadores dos departamentos curriculares, membros do conselho pedagógico por ser um dos órgãos juridicamente responsáveis pela: “coordenação e supervisão pedagógica e orientação educativa do agrupamento de escolas ou escola não agrupada, nomeadamente nos domínios pedagógico -didático, da orientação e acompanhamento dos alunos e da formação inicial e contínua do pessoal docente e não docente”

(Decreto-Lei nº75/2008). De igual forma, cremos que a heterogeneidade inerente ao grupo profissional dos professores constituirá uma dimensão relevante e significativa para a nossa investigação. Por outro lado, é do nosso interesse compreender se os departamentos curriculares e o conselho pedagógico funcionaram como lugares nos quais os professores manifestaram a sua autonomia pedagógica, fruto da sua “margem de liberdade” ou se assumiram como “guardiões políticos e culturais das orientações do diretor” (Torres, Lima & Sá, 2020, p. 294). Contudo, equacionamos se os professores serão

“capazes de comunicar a informação com precisão” uma vez que as últimas investigações apontam para uma “miopia organizacional” oriunda de uma identidade profissional docente cujo individualismo tende a intensificar-se e uma “alienação democrática” que se traduz por um afrouxamento da sua participação e por um conformismo às práticas instituídas (Torres et al., 2020, p. 290). O núcleo em torno do qual orbita a nossa investigação prende-se com a autonomia democrática enquanto construção de facto e na aferição da implementação de novas práticas organizacionais ao abrigo do Decreto-Lei nº 55/2018, pelo que questionamo-nos se os professores dos departamentos curriculares e do conselho pedagógico poderão ter facilidade em pronunciar-se sobre questões organizacionais e políticas ou se se governam por uma “conceção minimalista e gestionária da democracia” manifestada nas mais recentes investigações de âmbito sociológico (Torres, et al., 2020, p. 291)? Cientes destes últimos dados relativos às organizações escolares, pretendemos que eles não sejam constituídos como um pré-conceito ou uma entrave na hora de conhecermos a escola a ser analisada; pelo contrário, esta informação dota-se de particular relevância e utilidade uma vez que “é a partir da interrogação que o investigador faz os dados” ao mesmo tempo que vai ao encontro de uma dimensão construtiva do conhecimento que conta com a mobilização de “toda a teoria acumulada a respeito” (Lüdke & André, 1986, p. 4) a favor da construção do conhecimento sobre o fato pesquisado.

Por outro lado, tendo em conta a centralidade da figura do diretor na organização e gestão escolar, pretendemos entrevistar o diretor por ser juridicamente consagrado como “o primeiro responsável a quem assacar responsabilidades pela prestação do serviço público da educação”

(Decreto-Lei nº75/2008). Cremos que o diretor escolar será o ator que poderá deter a informação mais relevante, mais precisa, embora possamos encontrar dificuldades na sua acessibilidade devido à intensificação burocrática do seu cargo.

Sem procurarmos estabelecer ideias pré-feitas para o campo de investigação, procuramos sobretudo colocar questões que se alicerçam não somente no referencial teórico desenvolvido mas também nas investigações mais recentes à organização escolar. De facto, as perguntas-critério

enunciadas para as entrevistas induziram-nos à reflexão de que o diretor poderá ser o ator mais capacitado para responder às questões elaboradas para esta investigação, o que nos leva a pressupor uma clivagem significativa entre quem lidera e quem executa na organização escolar no que concerne a cultura política e democrática. Essa pressuposição só poderá ser confirmada ou infirmada na investigação empírica, porém é, desde logo, anunciadora de que mesmo as “más entrevistas” (Bogdan

& Biklen, 1994, p. 136) podem proporcionar informações valiosas e serem constituídas como um dado significativo.

Cientes das dificuldades e possibilidades suscetíveis de ocorrer para a realização da entrevista, na nossa primeira deslocação à escola em junho 2022, após a nossa apresentação formal, procuramos esclarecer os objetivos da investigação e da entrevista junto de cada ator escolar.

Informamos sobre o tema e as finalidades da nossa investigação, assim como garantimos a confidencialidade dos dados recolhidos no agrupamento de escolas. O subdiretor foi o ator do agrupamento que sempre acompanhou o processo e procurou comunicar com os diferentes atores apelando a participação. O mesmo solicitou o envio de um documento que esclarecesse o âmbito da nossa investigação e o foi-lhe enviado prontamente. Os professores do conselho pedagógico pediram um exemplar do guião da entrevista para poderem analisar previamente as perguntas. Alguns professores, membros do conselho pedagógico e coordenadores de departamentos curriculares, optaram por não conceder a entrevista alegando a complexidade da mesma ou a temática não fazer parte das suas funções e competências e logo não dispor de informação pertinente e significativa para a mesma e remetendo para a coordenadora unipessoal responsável e representante da implementação do projeto. Os professores que aceitaram conceder-nos a entrevista pediram algum tempo para poderem preparar as suas respostas. Manifestamos o nosso interesse em entrevistar a diretora do agrupamento em primeiro lugar. Contudo, foi sempre muito difícil conseguir contactá-la e obter resposta, quer por telefone, quer por correio eletrónico e presencialmente. Nas minhas deslocações à escola, a mesma reiterava constantemente o fluxo de trabalho, a sua exaustão e a complexidade da entrevista como entraves à sua realização próxima. Em outros momentos, agendava uma hora no agrupamento e acabava por não aparecer, comunicando imprevistos que a impossibilitaram de comparecer ou alegava que só tinha alguns minutos disponíveis, pelo que seria melhor agendar num dia mais calmo. Contudo, procuramos ser flexíveis e propomos outras datas mais convenientes a ambas, estendendo o prazo até setembro. Alteramos a nossa estratégia inicial e começamos as nossas entrevistas com os professores, membros do conselho pedagógico e coordenadores de departamentos que, após a leitura do guião se mostraram recetivos à sua concretização. Findo, o mês de agosto voltei

a entrar novamente em contacto com a diretora por e-mail. A mesma voltou a solicitar o guião e pediu para entrevistar o subdiretor, afirmando que a entrevista ao subdiretor deveria ser suficiente já que foi ele quem acompanhou mais o processo de implementação do projeto no agrupamento. Voltou a pedir para fazer a entrevista por escrito, reiterando que estava muito cansada e demasiado ocupada. Realizei a entrevista ao subdiretor e reiterei junto dele a necessidade e urgência de entrevistar a diretora. Não havendo feedback posterior no prazo estipulado, solicitei ao subdiretor e à coordenadora do projeto para lhe relembrar a entrevista. Numa conversa informal com diferentes professores da sede do agrupamento, vários membros do conselho pedagógico referiram que o subdiretor é a figura representante do agrupamento, é quem participa mais nas reuniões, quem está mais informado dos projetos, quem “dá a cara pelo agrupamento perante Ministério da Educação”, havendo quem o perspetivasse como “o verdadeiro diretor”. Tal informação acabou posteriormente por se confirmar quando verificamos no discurso do subdiretor algumas alusões que demonstram a sua aproximação ao projeto e ao Ministério da Educação, por exemplo, quando cita que na primeira visita do Ministério da Educação ao agrupamento no seguimento da implementação do projeto da Autonomia e Flexibilidade curricular o mesmo referiu: “Eu lembro-me de dizer que, é assim, o que eu quero é que a mudança ocorra em sala de aula, não em papéis bonitos, em documentos muito elaborados, em que os professores estão demasiado tempo a elaborá-los e menos tempo a aplicar” (E4, Apêndice V) Houve atores educativos que referiram que a função da diretora era a de “assinar papéis” uma vez que já se encontra no cargo há quinze anos, manifesta alguma exaustão e pretende deixar o cargo no ano letivo a devir quando completar dezasseis anos de funções. Outros confidenciaram que a diretora é uma pessoa com bastante influência junto do município, o que motivou a sua reeleição para o cargo de diretora, assim como justifica a sua indisponibilidade e agenda preenchida. Perante as dificuldades encontradas no domínio da acessibilidade social dos atores e a disponibilidade dos mesmos para prestarem informações relevantes, optamos por modificar a nossa estratégia pré-estabelecida e ceder uma entrevista estruturada à diretora. Pese embora a consciência de que a entrevista é um processo interativo que “permite correções, esclarecimentos e adaptações” (Lüdke & André, 1986, p. 34) e cujas informações não se estendem meramente ao que é verbalizado mas também aos silêncios, às hesitações, às pausas e à linguagem não-verbal e que a figura do diretor “ocupa uma posição de grande protagonismo no contexto escolar” (Lima, Sá & Torres, 2020, p. 8) a urgência de obter os dados para entregar a dissertação nos prazos estipulados e o meu receio de não o conseguir, levou-me a ceder e aceitar a entrevista estruturada, sob forma de respostas escritas. Ainda que a entrevista estruturada enquanto texto escrito pressuponha uma análise interpretativa que se assemelhe a uma

análise documental – pois consideramos o carácter mais formal e reflexivo associado ao processo de escrita – cremos que esta técnica não coloca em causa a validade e fiabilidade da nossa investigação qualitativa uma vez que a entrevista estruturada da diretora e as entrevistas semi-estruturadas dos demais atores escolares poderão ser articuladas e passíveis de comparação.

Havendo incompatibilidades a nível de agenda ou conseguir um local que permitisse não sermos interrompidos ou que garantisse a qualidade da gravação áudio, as entrevistas foram realizadas através da plataforma Google Meet nos meses de julho e setembro do ano 2022.

Procedemos à sua gravação áudio em integralidade e elaboramos, posteriormente, a sua transcrição que juntamos aos apêndices da nossa dissertação.