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A consagração da autonomia como técnica de gestão e a descentralização como tecnologia

CAPÍTULO I. A PROBLEMÁTICA DA AUTONOMIA NAS POLÍTICAS EDUCATIVAS EUROPEIAS E

5. Políticas educativas em Portugal: o caso da autonomia das escolas

5.2. A consagração da autonomia como técnica de gestão e a descentralização como tecnologia

É neste quadro que os conceitos como autonomia, descentralização, participação são recontextualizados e reconceptualizados e tendencialmente despojados de sentido político. Como verificou Lima (1994):

a autonomia (mitigada) é um instrumento de construção de um espírito e de uma cultura de organização-empresa; a descentralização é congruente com a “ordem espontânea” do mercado, respeitadora da liberdade individual e garante de eficiência económica; a participação é essencialmente uma técnica de gestão, um fator de coesão e de consenso (p. 122).

5.2. A consagração da autonomia como técnica de gestão e a descentralização como

Mundial Europeu, em que vários autores apresentavam já as vantagens da descentralização, qualificando-a como uma tecnologia de gestão eficaz ao serviço do governo: “Descentralization must be viewed more realistically (…) as one of a range of administrative or organizational devices that may improve the efficiency, effectiveness, and responsiveness of various levels of government under suitable conditions” (p. 76-77).

Em Portugal, a categoria de descentralização surge associada à Lei de Bases do Sistema Educativo e aos trabalhos produzidos no âmbito da Comissão de Reforma do Sistema Educativo (1986-1988) que estabelecem uma crítica crescente à burocracia centralizada do Ministério da Educação e que, em alternativa, propõem uma administração descentralizada e a “autonomia da escola” como princípio reformador.

Na expectativa da aprovação da Lei de Bases do Sistema Educativo e sem haver “fins e objetivos politicamente discutidos e coerentemente delineados” (Afonso, 1998, p. 209), o governo procede à nomeação de uma Comissão de Reforma do Sistema Educativo (1986) com o intuito de

“preparar o sistema educativo para responder oportuna e eficazmente aos novos desafios que se perfilam, sejam eles decorrentes da adesão à CEE ou da inevitável emergência de uma nova sociedade de inteligência, de criatividade, de formação permanente e de justiça social” (Resolução de Conselhos de Ministros nº8/86, p. 214). Os eixos orientadores dos seus trabalhos incidirão nomeadamente sobre

“a necessidade de descentralizar a administração educativa tanto no plano regional e local como no plano institucional” e a de “modernizar o sistema de ensino, tanto na sua organização estrutural e curricular como nos métodos e técnicos da sua prática” (Resolução de Conselhos de Ministros nº8/86, p. 214). Estes objetivos serão posteriormente reiterados e reforçados no Projeto Global de Atividades que almejou, a “consolidação e enriquecimento qualitativo da gestão democrática nos ensinos básico e secundário” e a congruência e a unidade de princípios: “A reforma deve ser implementada sob o signo da profunda unidade interna que deve governar a educação dos indivíduos e a da coletividade” (CRSE, 1986, p. 37).

Embora a promulgação da Lei de Bases do Sistema Educativo e a Reforma Educativa ocorreram num momento quasi-síncrono, Lima (2018a) verificou que “as categorias ‘Lei de Bases do Sistema Educativo’ e ‘Reforma Educativa’ surgiram relativamente desarticuladas” (p. 77).

A Lei de Bases do Sistema Educativo assumiu-se como uma alternativa do regime democrático perante a Lei de Bases promulgada em 1973, adequando-se à nova Constituição de 1976 mas rompendo com práticas e orientações de heteropraxia, deixando para trás experiências

autogestionárias de autonomia de facto e de democracia direta em curso no período pós-revolucionário.

Licínio Lima (2018a) situa a promulgação da Lei de Bases do Sistema Educativo neste momento paradigmático afirmando que simbolizou:

um culminar político-educativo do processo de normalização, com olhos postos nas dinâmicas da integração europeia do país e da centralidade da educação e da formação profissional para o desenvolvimento económico, da modernização e racionalização do sistema escolar, do papel do planeamento e da avaliação, da emergência de lógicas vocacionalistas e qualificacionistas (p. 78).

Por isso, Lima (1998a) afirma que a Lei de Bases do Sistema Educativo se assume como mais

“avançada no domínio dos princípios gerais do que em termos concretos de configuração organizacional e administrativa de um sistema educativo realmente descentralizado capaz de inverter a tradicional centralizadora” (p. 38). Apesar da Lei de Bases do Sistema Educativo anunciar princípios organizativos da administração e gestão dos estabelecimentos do ensino básico e secundário que tomam como eixo governativo “a descentralização, desconcentração e diversificação nas estruturas e ações educativas” (Artigo nº3, al. g), reiterando posteriormente a adoção de “orgânicas e formas de descentralização e de desconcentração dos serviços” (Artigo nº43, al.3) e preconizar ainda que a administração e gestão dos estabelecimentos de educação e de ensino básico e secundário assente em órgãos próprios, orientados por princípios de democraticidade, representatividade e de participação comunitária e onde prevaleçam “critérios de natureza pedagógica e científica sobre critérios de natureza administrativa” (Artigo nº45), a Lei de Bases do Sistema Educativo limita-se a definir dois níveis de administração: o central e o regional (Artigo nº44), encontrando a administração e gestão dos estabelecimentos de educação e ensino subordinados aos níveis de administração anteriores e às suas respetivas funções. Estabelece-se, assim, uma separação clara e nítida entre quem concebe a norma, quem a coordena e quem a executa, invocando a divisão explícita e típica da Administração Científica de Taylor, entre “mãos e cérebro” (Morgan, 2006, p.34).

Lima (2007) chega a referir que:

A anunciada descentralização acabará por não ter consequências, seja relativamente às direções regionais (desconcentradas), seja face às atribuições e competências dos órgãos “próprios”

de “direção” de cada estabelecimento, os quais, não dotados de graus de autonomia minimamente significativos, permaneceriam subordinados ao centro, embora a partir de agora através de

departamentos pericentrais regionalmente disseminados, com maior capacidade de exercer o controlo central sobre a escola (p. 22).

Desconcentração e descentralização estão intimamente relacionadas com as formas políticas de organização do poder, de repartição de responsabilidades num sistema hierarquizado, em que cada nível da organização detém capacidades de ação definidas.

Uma organização desconcentrada é de índole meramente técnico-administrativa e permite o descongestionamento dos serviços centrais, possibilitando decisões mais rápidas e mais próximas dos problemas, o que potencia o aumento da eficiência da atividade da administração, dentro de um modelo de gestão centralizado.

A descentralização, de índole essencialmente política, pressupõe a existência de organizações independentes hierarquicamente do Estado, com competências próprias e autónomas financeira e administrativamente.

Por outro lado, a Reforma Educativa desenvolve-se como um projeto político híbrido e ambíguo.

Afonso (1998) refere que a reforma educativa é considerada como:

um projeto político ainda marcado por valores (não esgotados) do período de forte democratização e de alguma expansão das políticas sociais, nomeadamente da fase mais recente de construção do Estado-Providência, mas também como uma decisão já igualmente condicionada pelas supostas exigências de um outro período que então se inicia: aquele que corresponde à fase mais determinante da (re)definição do lugar de Portugal na economia mundial tendo em consideração sobretudo a sua inserção regional na então Comunidade Económica Europeia (p. 204).

É no âmbito da Comissão de Reforma do Sistema Educativo que é convocado um grupo de trabalho formado por académicos das Ciências da Educação da Universidade do Minho para elaborar um estudo sobre a reforma da administração e gestão das escolas, tendo como referência a Constituição da República Portuguesa e a Lei de Bases do Sistema Educativo. Todos os autores4 são

4 O grupo de trabalho focou-se essencialmente numa interpretação da LBSE mais ampla e mais favorável aos princípios da democratização da administração e de autonomia das escolas no que concerne a sua organização. Cada um dos elementos, em congruência com os demais, alertou que a democratização da educação prevista na LBSE passa invariavelmente por “uma distribuição de poder nas decisões educativas, através da descentralização dos órgãos e participação popular na definição da política educativa e na direção e gestão dos estabelecimentos de ensino” (Fernandes, 1988, p. 107). No seu estudo, João Formosinho apela à necessidade de atribuir autonomia administrativa e financeira às escolas de forma a melhor servir as competências científicas e pedagógicas contempladas na LBSE” (Formosinho, 1988, pp. 70-85). Lima, por sua vez, parte de um estudo analítico aos conceitos de

consensuais na ideia que a descentralização e a autonomia almejadas na Lei de Bases do Sistema Educativo teriam de passar por uma distribuição de poderes que contemple a autonomia como faculdade política e democrática de tomada de decisão (Fernandes et al., 1988, pp. 33-34) de modo a arredar o sistema educativo português de um modelo construído socio-historicamente sob a égide de um paradigma normativo-taylorista e de pendor burocrático. Não obstante um certo hibridismo político-ideológico nas propostas finais da CRSE, o momento da reforma educativa é interpretado como um período paradigmático no que concerne à administração da educação. Para Lima, este período abre caminho para “um novo período de mobilização no estudo e no debate da administração da educação a partir da assunção de princípios de governação democrática, da reivindicação da localização da direção das escolas nos territórios destas, em torno da qual se pretende garantir a democraticidade e a participação, e legitimar uma maior autonomia para as instituições” (Lima, 2007, p. 35). De facto, neste período torna-se evidente que a democratização das escolas deve passar pela consagração de uma autonomia de facto assente numa autonomia construída sob o princípio democrático e sociocomunitário onde exista a capacidade de elaboração e execução de um projeto educativo próprio de cada escola e a sua integração numa comunidade educativa.

Afonso (1998) refere, pelo seu lado, como este período tornou evidente a coexistência de dois vetores que marcarão doravante a formulação das políticas educativas e que designou de

“neoliberalismo educativo mitigado” consistindo em:

continuar a expandir o Estado em termos de realização de uma maior igualdade de oportunidades e de democratização da educação pública, mas, simultaneamente, tentar reduzir esse mesmo Estado, abrindo o campo da educação à iniciativa privada e à concretização de uma maior liberdade de ensino (Afonso, 1998, p. 210).

À luz da linha teórico-conceptual desenvolvida no subcapítulo anterior, partimos do pressuposto que a (almejada) descentralização instaurada com a Lei de Bases do Sistema Educativo e perseguida

direção e gestão para comprovar que a Lei de Bases do Sistema Educativo consagra uma direção de escolas atópica, ou seja, fora e para além da escola (Lima, 1988a, pp. 155-157). De facto, as propostas elaboradas e assinadas coletivamente (Fernandes, Formosinho & Lima, 1988), e posteriormente retomadas pela CRSE no seu Projeto Global de Atividades, reiteram a necessidade de distinguir direção de gestão. Recorrendo à área das Ciências Administrativas para a desconstrução analítica de ambos conceitos, fica claro na proposta desses autores que à direção deve incumbir funções de natureza política: “definição de políticas, de valores e de orientações gerais” enquanto que à gestão cabem funções meramente executivas e de carácter técnico: “é predominantemente a execução daquelas políticas e orientações, a organização dos elementos humanos e materiais, a coordenação e a avaliação, por forma a realizar os objetivos fixados pela direção” (Fernandes, Formosinho & Lima, 1988, p 155)., sugerindo, em seu lugar, uma matriz de modelos organizativos de feição democrática que deixe “um espaço de relativa autonomia e de intervenção aos órgãos de direção regional de educação e aos órgãos de direção da escola” (Lima, 1988a, p. 153).

(pelo menos intencionalmente) com o Decreto-Lei nº43/895 indicia a obediência à uma racionalidade técnica (modernização, melhoria, qualidade, eficiência) que reduz a descentralização a um procedimento administrativo, almejando uma autonomia técnica e operacional ao invés de uma autonomia verdadeiramente política, capaz de permitir espaços de participação, negociação e tomada de decisão construídos na autonomia dos seus atores. Na esteira da tese desenvolvida por Hans Weiler (1999), apontamos que a descentralização pode representar já neste período “uma estratégia muito importante para abordar situações fortemente conflituais” (p. 109), ao mesmo tempo que permite ao Estado “difundir as fontes do mesmo e intercalar filtros adicionais de isolamento entre os conflitos e o resto do sistema” (Weiler, 1999, p. 109). Estamos, por isso, perante uma categoria de Estado que conceptualizamos anteriormente como “hollow-state” (Jessop,1993, p.22) por ser uma descentralização meramente operacional e implementativa, sem consequências na perda de poder do Estado. Nesse sentido, a descentralização assume-se como uma “tecnologia de governo” (Rose&Miller, 2010, p. 273) ao serviço de um Estado que procura, por um lado, “manter o controlo, assegurando a sua efetividade e, por outro lado, melhora[r] e sustenta[r] a base normativa da sua autoridade (sua legitimidade)” (Weiler, 1999, p. 95).

De igual modo, na esteira do pensamento de Stephen Ball (2017), sabemos que os projetos de reforma educativa pautam-se por um discurso que incentiva à “desregulação e à devolução de poderes do Estado, mas incidem, na verdade, num processo de reregulação que incute novas formas de controlo e poder” (p. 51). De acordo com o mesmo autor (2012), as reformas do setor público não consistem em meros veículos para a introdução de mudanças de ordem técnica e estrutural, elas introduzem “mecanismos para reformar os profissionais do setor público através de tecnologias políticas como a performatividade e o gerenciamento” (pp. 38-39).

Tal reregulação pode ser equacionada na realidade portuguesa. De facto, no preciso momento em que se encontravam em elaboração as propostas descentralizadoras e autonómicas da CRSE, o governo aprovava uma nova orgânica do ministério da educação através do Decreto-Lei nº3/87, de 3 de janeiro. Embora o preâmbulo incide em algumas críticas partilhadas com a CRSE, nomeadamente no que ao aparelho burocrático e centralizado do ministério diz respeito, Lima (2007) verificou que “o decreto-lei em questão limita-se a uma redefinição organizacional que procura substituir a anterior organização de tipo concentrado e obter maior eficácia do poder central, introduzindo numa maior

5 O Decreto-Lei nº43/89 colocava a intenção de “inverter a tradição de uma gestão demasiada centralizada” (Preâmbulo Decreto-Lei nº43/89) e defendia que “a autonomia da escola concretiza-se na elaboração de um projeto educativo constituído e executado de forma deliberada” (Preâmbulo Decreto-Lei nº43/89) que se traduz, de acordo com o Artigo 2º "na formulação de prioridades de desenvolvimento pedagógico, em planos anuais de actividades educativas e na elaboração de regulamentos internos para os principais sectores e serviços escolares".

escala e sob distinta organização, menos compartimentada, novas instâncias de desconcentração, regionalmente disseminada” (pp.37-38). Sob a égide de um discurso reformista de pendor racionalizador e modernizador, o legislador assume a introdução de novos serviços regionais assim como o reforço dos poderes da administração central reiterando a “determinação dos níveis de intervenção, com separação bem nítida entre as funções de concepção, normalização e coordenação a cargo dos órgãos centrais e as de gestão e acompanhamento conferidas a serviços regionais integrados” (Decreto-Lei nº3/87). O governo definia, por esta via, um quadro político-institucional que se revelava incompatível com uma política de descentralização da administração e autonomia dos estabelecimentos, optando por uma reorganização do centro e das suas estruturas pericentrais com vista à manutenção e ao reforço da sua capacidade de controlo sobre a escola. Assim, o governo opta pela introdução de alterações morfológicas no interior de uma administração de tipo centralizado, ainda consideravelmente concentrada, mas sem abrir mão de um paradigma administrativo monolítico, centralizado e burocrático.

5.3. A autonomia como projeto: projeto educativo como artefacto e a participação como