• Nenhum resultado encontrado

A autonomia como projeto: projeto educativo como artefacto e a participação como técnica

CAPÍTULO I. A PROBLEMÁTICA DA AUTONOMIA NAS POLÍTICAS EDUCATIVAS EUROPEIAS E

5. Políticas educativas em Portugal: o caso da autonomia das escolas

5.3. A autonomia como projeto: projeto educativo como artefacto e a participação como técnica

escala e sob distinta organização, menos compartimentada, novas instâncias de desconcentração, regionalmente disseminada” (pp.37-38). Sob a égide de um discurso reformista de pendor racionalizador e modernizador, o legislador assume a introdução de novos serviços regionais assim como o reforço dos poderes da administração central reiterando a “determinação dos níveis de intervenção, com separação bem nítida entre as funções de concepção, normalização e coordenação a cargo dos órgãos centrais e as de gestão e acompanhamento conferidas a serviços regionais integrados” (Decreto-Lei nº3/87). O governo definia, por esta via, um quadro político-institucional que se revelava incompatível com uma política de descentralização da administração e autonomia dos estabelecimentos, optando por uma reorganização do centro e das suas estruturas pericentrais com vista à manutenção e ao reforço da sua capacidade de controlo sobre a escola. Assim, o governo opta pela introdução de alterações morfológicas no interior de uma administração de tipo centralizado, ainda consideravelmente concentrada, mas sem abrir mão de um paradigma administrativo monolítico, centralizado e burocrático.

5.3. A autonomia como projeto: projeto educativo como artefacto e a participação como

de forma deliberada” (Preâmbulo Decreto-Lei nº43/89) que se traduz, de acordo com o Artigo 2º: "na formulação de prioridades de desenvolvimento pedagógico, em planos anuais de actividades educativas e na elaboração de regulamentos internos para os principais sectores e serviços escolares". Na esteira de Popkewitz (1999) defendemos que o Decreto-Lei nº43/89 pode simbolizar uma tentativa de reestruturar a regulação das normas de regulação na educação e, consequentemente, um câmbio de paradigma na governação das escolas, na qual a base da autoridade do Estado deixa de obedecer à norma e passa a obedecer ao planeamento e cumprimento de objetivos. De facto, este autor verificou que as políticas de descentralização na Europa passaram de “um centralismo burocrático (governação por normas) para a direção por objetivos” (p. 49) materializando-se numa tendência para projetos políticos a nível local. Contudo, no caso português as políticas autonómicas e de descentralização tendem a despolitizar e desideologizar a organização escolar, naturalizando-a enquanto instrumento técnico-racional. O projeto educativo limitou-se, assim, a uma função meramente instrumental em busca de legitimação externa que consistia num ritual em que os atores da organização escolares elaboravam um “conjunto de intenções genéricas sem definição de prioridades, sem estratégias de operacionalização, quedando-se, na maior parte das vezes, na caracterização descritiva da escola”

(Costa, 2004, p. 91). Mais do que ser um processo participativo, negocial, de adesão coletiva, coerente e articulado, próprio à definição sociocomunitária e democrática proposta pela CRSE, a autonomia advogada nos decretos-leis parece assumir-se como o que Stephen Ball (2012) denominou de

“tecnologia política”, ou seja, “a implementação calculada de técnicas e artefactos para organizar forças humanas e capacidades em redes de poder em funcionamento” (p.38), reduzindo o projeto educativo à qualidade de artefacto que busca introduzir novas formas de governação e responsabilização pelos resultados através de técnicas de planeamento de objetivos. Nesse sentido, concordamos com Costa (2004) quando afirma que “o projeto educativo passa a ser um mero artefacto para a vida organizacional da escola” (p. 91). De igual forma, num estudo que procurou aferir as práticas de construção de autonomia da escola através da análise dos projetos educativos, dos planos de atividades e regulamentos internos, Estevão, Afonso e Castro (1996) apontam como o projeto educativo é uma “inovação instituída” que não foi interiorizada nem verdadeiramente adotada pelos seus atores, defendendo que prevalece pelo seu valor simbólico capaz de mobilizar fiéis, independentemente dos resultados, dentro de uma lógica de que o “parecer” é o “ser”:

assumido como suficiente para proteger a estrutura formal das organizações educativas de eventuais incertezas advindas do exterior, racionalizando e credibilizando a própria organização e os

atores participantes, uma vez que estabelece uma conformidade cerimonial entre o futuro e o presente, entre as intenções e as ações, entre os objetivos e as atividades (p.54).

Ao invés de se assumir como o fruto de uma autonomia construída dos seus atores e centro identitário de uma escola, o projeto educativo resume-se à uma técnica de gestão de tipo fayolista.

Também a participação invocada no Decreto-Lei nº172/91 obedece à mesma tradição política e administrativa. Este diploma previa a aplicação a todos os níveis de educação de um modelo de gestão das escolas com uma estrutura participativa destinada à participação de pais e da comunidade.

Emergem conceitos e um universo semântico com origens e vozes democráticas, participativas e descentralizadoras, marcadas essencialmente pela participação de pais e encarregados de educação (Artigo nº7), por rituais de eleição (Artigo nº 8) e pela representatividade (Artigo nº9), sendo a figura de diretor executivo o seu expoente. Contudo, tal discurso legitimador contrastou com a despolitização de órgãos como os conselhos de escola que se viam impossibilitados de assumirem a perspetiva política da função de direção, frente a uma administração escolar que persiste centralizada, monolítica e inflexível. Tal conclusão leva-nos a considerar a possibilidade do alargamento à participação dos pais nos “conselhos de escola” poder corresponder à introdução de uma lógica estratégica própria do modelo neoliberal, reduzindo a participação a uma técnica de gestão que, como vimos no enquadramento teórico-conceptual anterior, não assenta na autonomia relativa dos seus autores em busca do autogoverno da organização, mas pretende servir os interesses da cultura organizativa e

“doutrinar os seus atores num espírito de coesão” (Wilmott, 1993). Nesse sentido, trata-se de uma gestão participada que pouco ou nada se identifica com a participação na direção e nos processos de decisão, sendo claramente instrumentalizada enquanto mera técnica de gestão para promover a eficácia e qualidade da escola. Correia (1994) verifica a visível descontinuidade entre as propostas avançadas pela CRSE e o diploma nº172/91 cuja adoção de um novo modelo de gestão parece confundir “democraticidade com management participativo” dando indícios do “desenvolvimento e consolidação do modelo neo-liberal” (Correia, 1994, p.10) na educação em Portugal. Noutra perspetiva, Tyler (1991) refere como a ampliação da representação comunitária e dos pais assenta numa “estratégia política neoconservadora que procura escalonar para níveis não significativos da organização escolar a pressão e conflitos dos mesmos” (p. 190).

Consideramos que, no âmbito da reforma educativa, ambos os decretos-leis imprimem mudanças importantes quer em termos discursivos oscilando entre intenções democráticas e a sua

posterior fragilização a favor de um órgão de gestão (o diretor executivo) que pode reverter esses valores, quer na natureza das relações entre gestores e geridos com o objetivo de introduzir novas regras do jogo de poder e garantir a governabilidade do Estado. Como observou Lima (2002) há uma recentralização de poderes por controlo remoto que reconverte a lógica do sistema:

Não se trata, verdadeiramente, de uma reforma política da administração em termos democráticos e descentralizadores conferindo consequentemente autonomia às organizações periféricas, mas antes uma reestruturação e reorganização que, no caso específico das opções de tipo desconcentrado, permitirá não só manter mas mesmo conquistar novos poderes para o centro, através de uma cuidada separação entre concepção (nível central) e execução (nível periférico) (p. 69).

Nas palavras de Formosinho e Machado (2000), a reforma educativa, nomeadamente na materialização do Decreto-Lei nº172/91, introduz “uma educação verificável para uma educação responsabilizável” cuja tónica já não recai na “verificação em conformidade mas na existência de iniciativa, de projetos, de ação autónoma dentro das escolas numa lógica de diferença e não já numa lógica de uniformidade” (p. 28). Por outro lado, ambos os decretos-leis apontam como “a democratização, a participação e a autonomia são ideias que não desaparecem pura e simplesmente do discurso educativo; pelo contrário, ressurgem com maior intensidade e frequência mas concentrando novos significados que decorrem das orientações gestionárias que buscam racionalizar, otimizar, garantir a eficácia e a eficiência” (Lima, 2007, p. 21). Os discursos educativos passam, assim, a instrumentalizar a autonomia dotando-a de uma definição genérica, de concepções abstratizantes uma vez que não designam órgãos nem agentes beneficiários dessa autonomia e, tampouco, clarificam os poderes que lhe seriam devolvidos. De facto, verificamos neste período que, apesar das propostas da reforma da administração escolar em 1987 e 1988 no âmbito da CRSE que propunham a implementação de políticas de efetiva descentralização da administração legal e regulamentação do princípio da autonomia relativa da escola e centros no domínio administrativo e financeiro, elas foram alvo de uma receção diferida e pouca expressiva em termos de marcas ou influências inscritas na nova legislação, limitando-se ao recurso estratégico de certos conceitos e categorias discursivas que, em termos de correspondência organizacional, não foram substantivos.

Neste sentido é visível como o “legislador se apropria de conceitos como “projeto educativo” e

“participação” e converte-os e ressemantiza-os num discurso técnico-gestionário” (Lima, 2017, p.37).

Tal constatação leva-nos a colocar a possibilidade de o poder político ter considerado o contributo e

estudos criados no âmbito da CRSE uma mercadoria informacional ao serviço da legitimação do poder do Estado. De facto, a apropriação seletiva por parte do poder político de conceitos científicos e categorias discursivas como a autonomia pode, dentro do quadro interpretativo desenvolvido no subcapítulo anterior, sugerir como o conhecimento científico é instrumentalizado para servir o empoderamento do Estado e legitimar o seu poder deliberativo. Como refere Lyotard (1979):

La légitimation, c’est le processus par lequel un législateur se trouve autorisé à promulguer cette loi comme une norme. (…) Ici, la légitimation est le processus par lequel un « législateur » traitant du discours scientifique est autorisé à prescrire les conditions dites (…) pour qu’un énoncé fasse partie de ce discours, et puis être pris en considération par la communauté scientifique (pp. 19-20).

Vários autores verificaram (Afonso, 1998; Lima, 2007; Formosinho, 2010) como as propostas da reforma da administração escolar elaboradas em 1987 e 1988 e a própria reforma educativa conduziram a uma reforma fracassada devido a diversos fatores de âmbito político e micropolítico.

Afonso (1998) refere como as “vozes e conceções dissidentes impediram a operacionalização do princípio de coerência consagrado no Projeto Global de Atividades” (pp.212-23). Também Lima (2007) afirma que “as críticas veementes ao centralismo burocrático e à burocracia do ministério da educação (…) provinham de lógicas bem distintas, com objetivos e programas políticos bem diferentes”

evidenciando já a presença de uma agenda gerencialista e modernizadora para a qual:

a descentralização da educação era articulada com a reforma do Estado e com perspetivas de descentralização e privatização remetendo a autonomia das escolas a uma técnica de gestão e a uma delegação política de encargos e responsabilidades (autonomia instrumental e autonomia como delegação política) (Lima, 2007, p. 36).

É neste período que se torna evidente o “pragmatismo burocrático” (Formosinho & Ferreira, 2010) das políticas educativas portuguesas, ou seja, a emergência de um discurso político-educativo de cariz retórico, pragmático e apelativo mas que se confronta com um aparelho administrativo de tradição multissecular cujo modelo centralizador e racionalizador intensifica a burocratização da organização escolar e retarda o desenvolvimento da autonomia democrática. De facto, a autonomia continua a ser adiada perante o desfasamento entre discurso político e práticas.