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CAPÍTULO II: CONSTRUÇÃO DE UM MODELO DE ANÁLISE ORGANIZACIONAL

3. A escola como organização educativa

3.1. A escola como uma organização político-burocrática: uma perspetiva díptica de

3.1.1. A escola como organização burocrática

Na esteira do modelo burocrático, este enfatiza uma orientação da organização para o alcance de objetivos e finalidades, a predominância de regras e regulamentos, uma estrutura hierárquica da autoridade legal subjacente ao posto hierárquico, a divisão e a especialização do trabalho que valoriza predominantemente o tecnicismo, e as relações de cariz uniforme e impessoal, quase inexistentes entre os atores, de forma a assegurar a neutralidade e a progressão pelo mérito. Para Lima (1998b), o recurso ao modelo burocrático para o estudo da escola permite enfatizar “a importância das normas abstratas e das estruturas formais, os processos de planeamento e tomada de decisões, a consistência dos objetivos e das tecnologias, a estabilidade, o consenso e o carácter preditivo das ações organizacionais” (p. 73) Costa (2003) enumera os seguintes indicadores como sendo os mais significativos no decalque do modelo burocrático à organização escolar:

a centralização das decisões nos órgãos de cúpula dos ministérios da educação, traduzida na ausência da autonomia das escolas e no desenvolvimento de cadeias administrativas hierárquicas; a regulamentação pormenorizada de todas as atividades a partir de uma rigorosa e compartimentada divisão do trabalho; a previsibilidade do funcionamento com base numa planificação minuciosa da organização; a formalização, hierarquização e centralização da estrutura organizacional dos estabelecimentos de ensino (modelo piramidal); obsessão pelos documentos escritos (duplicação, certificação e arquivomania); atuação rotineira (comportamentos estandardizados) com base no cumprimento de normas escritas e estáveis; uniformidade e impessoalidade nas relações humanas;

pedagogia uniforme (a mesma organização pedagógica, os mesmos conteúdos disciplinares e as mesmas metodologias para todas as situações) e a conceção burocrática da função docente (p. 39).

A nível macroorganizacional, vimos no capítulo anterior que as políticas educativas transnacionais são de carácter gerencialistas mas seguem objetivos próprios do modelo burocrático.

Giauque (2003) conceptualiza-o como “burocracia liberal” para fazer jus à natureza complexa e paradoxal de políticas que conjugam simultaneamente “liberdade e constrangimento, neoliberalismo e burocracia, descentralização e centralização de poder” (p. 568). Embora surja como um oximoro

conceptual, o autor canadiano verifica no seu estudo sobre as instituições da Administração Pública do Canadá e da Suiça como persiste uma obsessão pela prescrição de regras e a insistência com a conformidade, ao mesmo tempo que é advogado abertura, novas possibilidades e flexibilidade. Como o próprio afirma: “It’s a liberal bureaucracy with flexible constraints” (p. 587), que impele e mobiliza os atores embora estes continuem arredados do poder de decisão. Como observamos no capítulo anterior, embora o gerencialismo e as lógicas de mercado a ele associado preconizem a ineficácia do modelo burocrático adotado pela Administração Pública e procurem demarcar-se do mesmo, a verdade é que ambos compartem características similares uma vez que ambos se regem pela racionalidade, almejam a eficácia e introduzem novos moldes de controlo e dominação.

Autores como Farrell e Morris (2003) consideram, assim, que existe uma “neoburocracia” na formulação de políticas educativas:

we would argue that a more marketized system is equally dependent upon bureaucracy and that the locus of this bureaucracy has shifted rather than the bureaucracy having faded away (…)in the attempt to move to market coordination forms, the policy actually potentially increased centralized bureaucratic control, which is our form of ‘neo-bureaucracy’ (pp. 130-139).

No seu artigo, citam o exemplo de reformas políticas britânicas que preconizavam uma mudança técnica e estrutural da organização escolar mas introduziram novas formas de controlo burocrático, destacando a política curricular como a que teve mais implicações no domínio da autonomia profissional dos professores (Farell & Morris, 2003, p. 139). As políticas de descentralização de poderes, embora preconizem a liberdade e autonomia assumiram-se como uma forma burocrática de realocar cargos, funções e responsabilidades de modo a diluir possíveis “disfunções”, sem abdicar do controlo tentacular subjacente a este modelo organizacional.

Dentro da organização escolar portuguesa, o modelo da burocracia weberiana pode ser aplicada quer no âmbito administrativo, quer no âmbito pedagógico.

Desde a publicação da Lei de Bases do Sistema Educativo (1986) a organização escolar portuguesa encontra-se cativa de uma estrutura administrativa hierárquica em que predomina “uma separação nítida entre a concepção e a execução, entre os superiores e os subordinados” (Lima 1991b, p.3) obedecendo a uma alocação estratégica de cargos, delimitados por normas sugerindo uma organização de índole burocrática. A centralização de poderes num órgão atópico à própria

organização escolar denuncia uma busca pelo “controlo burocrático” (Lima, 2001, p. 42) que se traduz num legalismo, ou numa “decretomania” (Lima, 1988, p. 58) que pretende regulamentar até ao mais ínfimo detalhe orientações hegemónicas e uniformizantes. Como verificou Lima (2001): “existe desta forma para centralizar, uniformizar e controlar e só centralizando poderá manter a sua organização” (p. 41). De facto, à luz do modelo burocrático é possível interpretarmos o excesso de regulamentação e produção normativa como um instrumento que serve os interesses da hierarquia uma vez que permite:

o controlo à distância dos atores, constitui-se como uma pantalha e uma proteção que reduz as relações interpessoais; restringe o arbítrio do superior e legitima a sanção; torna possível a apatia, ou seja, um comportamento cuja preocupação é exclusivamente o cumprimento de regras (Friedberg, 1993, p. 64).

Em Portugal, a investigação realizada sobre a administração do sistema educativo e a organização da escola evidenciou marcas óbvias deste modelo organizacional (Formosinho, 1987;

Sousa Fernandes, 1992; Lima,1998). O seu desenho organizacional e as suas estruturas formais obedecem a um modelo uniformemente imposto que recorre à autoridade racional-legal e justifica-se com motivos técnicos e instrumentais garantido a dominação e controlo da organização, sendo a reestruturação da rede escolar em agrupamentos bem representativa desta prática de dominação burocrática (Lima, 2018).

De igual modo, a organização pedagógica, nas suas diferentes funções e vertentes, é refém de uma administração “gigantesca e inflexível, irracional e incoerente, ineficaz e ineficiente” (Lima, 1991b, p. 2). Como verificou Barroso a escola é uma organização socio-historicamente construída como “pré-burocrática” (Barroso, 2001, p. 70). Os princípios que regem a sua criação prendem-se com a racionalização no modo de ensino e o princípio de eficiência- ensinar o maior número de alunos com o menor número de meios e tecnologias. A divisão dos alunos em classe baseada no princípio da homogeneidade, a criação de uma hierarquia de autoridade (entre alunos-professores-diretor) assente numa divisão funcional do trabalho e alicerçada no poder formal das regras e normas aplicáveis

“qualquer que seja a escola, qualquer que seja o professor” (Barroso, 2001, p. 70) e produzidas e prescritas “fora da escola” (Lima, 1991a, p. 142) indiciam a prevalência de uma organização pedagógica de índole burocrática. Costa (2003) refere como a ascensão do Welfare State potenciou a lógica burocrática da educação quando esta passou a “ser administrada pelo Estado e se tornou a sua

principal missão” (p. 48). Nas palavras de Barroso (2001) a escola evoluiu progressivamente de uma

“organização pedagógica” para uma “organização administrativa” criando as condições para o desenvolvimento de “porosidade entre domínios pedagógicos e administrativos” (p. 70) e que se traduziu por tensões e conflitos explícitos e latentes entre um aparelho administrativo centralizado – a tecnoestrutura (Mintzberg, 1979) - e uma gestão escolar pedagógica formada por profissionais aferentes de autonomia relativa – o centro operacional - entre critérios de organização administrativa e critérios de cariz pedagógico, ou seja, conflitos e tensões entre a autoridade hierárquica e profissional da organização escolar. Instaurando-se como verdadeira “gramática da escola”, este modelo de organização pedagógica subsiste atualmente apesar dos intentos de reforma das estruturas organizacionais das escolas um pouco por todos os países, Portugal inclusivamente. Formosinho e Machado (2016) verificam que “o modelo centralizado e burocrático revelou-se eficaz para a manutenção do ensino secundário de elites e posteriormente na generalização gradual de todo o ensino pós-primário” (p. 19). Contudo, com a democratização da educação e a heterogeneidade dos alunos este modelo revelou-se ineficiente por manter “um sistema curricular com matérias definidas, horários inflexíveis e salas fixas” (Formosinho & Machado, 2016, p. 19).

No que ao currículo diz respeito, a sua formulação indicia características inerentes ao modelo burocrático uma vez que se resume a “um fluxo massivo de materiais pré-empacotados” em que a planificação separa-se da execução pelo que “a destreza criativa que os professores habitualmente necessitavam já não é necessária” (Apple, 1995, p.220). A separação vincada entre quem concebe o currículo, reduzindo-o a um “pronto-a-vestir” de tamanho único (Formosinho & Machado, 2008) e quem o gere e executa remete inevitavelmente para a compartimentação e hierarquização de tarefas do modelo burocrático. Embora as precedentes políticas educativas como o Decreto-Lei nº6/2001 preconizasse a sua flexibilização, a verdade é que na práxis persistiu uma cultura organizacional que se orientou para a homogeneidade (organização de tempos, espaços, disciplinas e alunos) em torno da unidade rígida da turma tipicamente burocrática e, como consequência, pouco favorecedor de práticas diversificadas, inovadoras e criativas.

Nas palavras de Freire (1970), a própria relação entre professores e alunos assume características de um modelo burocrático, não só pelo seu carácter impessoal mas na própria comunicação: “Falar da realidade como algo parado, estático, compartimentado e bem comportado, quando não falar ou dissertar sobre algo completamente alheio à experiência existencial dos educandos vem sendo, realmente, a suprema inquietação desta educação” (Freire, 1970, p. 38). Fundamenta, ainda, como

esse modo discursivo e magisterial influencia um processo de ensino-aprendizagem mecanicista: “A narração, de que o educador é o sujeito, conduz os educandos à memorização mecânica do conteúdo narrado” (Freire, 1970, p. 38).

Bernstein (1998) na sua obra “Pedagogía, control simbólico e identidad” verifica como os mecanismos de controlo simbólico da prática pedagógica estão cada vez mais regulados e supervisionados pelo Estado através das técnicas de “centralização descentralizada” (p. 31), algo que se verifica sobretudo através da avaliação pedagógica dos alunos. Refém das orientações técnicos-instrumentais produzidas heteronomamente, o processo de ensino-aprendizagem é organizado de modo a cumprir os objetivos supradeterminados. Como verificou Apple (1995): “Os objetivos, o processo, o resultado e os critérios de avaliação são definidos o mais precisamente possível por pessoas externas à situação” (Apple, 1995, pp. 220-21) o que, segundo o mesmo autor, responde a

“um controlo técnico […] que implica a perda técnica, a atrofia progressiva das destrezas pedagógicas”

mas que são substituídas por “uma requalificação de destrezas e visões ideológicas capitalistas” (p.

221). Ainda sob o domínio pedagógico e o caso da avaliação da aprendizagem dos alunos, Almerindo Janela Afonso e Carlos Estevão (1992) apuraram como a avaliação externa dos alunos obedece a uma racionalidade técnico-instrumental com o intuito de introduzir novas formas de controlo a posteriori sobre o trabalho dos professores na medida em que possibilita que os “resultados obtidos em cada escola sejam comparados reduzindo também, de alguma forma, a margem de autonomia profissional”

(p. 92). Por outro lado, Afonso (2014) confirmou como “a avaliação externa das aprendizagens dos alunos e os resultados obtidos ditam frequentemente os parâmetros relativamente aos quais se referencia a avaliação dos professores e da própria escola e até mesmo da avaliação das políticas educacionais” (p. 492) e servem vários objetivos dentro dos quais destacamos “o controlo hiperburocrático sobre a organização escolar e a atividade dos professores e a introdução de novas lógicas de responsabilização dos atores pelos resultados de forma a tornar os governos inimputáveis de qualquer responsabilidade” (Afonso, 2014, p. 492).

Como observamos no capítulo anterior, embora a nível retórico intentaram profetizar o fim da burocracia a favor da modernização do sistema educativo em Portugal, o tradicional “centralismo educativo” (Lima, 1991b) dirigido por um aparelho administrativo central (o Ministério da Educação) prevalece perante todos os intentos reformistas dos responsáveis políticos e leva Lima a concluir que

“é a imagem do poder da burocracia, capaz de contrariar o poder político democrático e de se eximir, aparentemente, aos cursos da decisão política” (Lima, 1991b, p. 1). O Decreto-Lei nº75/2008,

embora advogue a autonomia das escolas, não opera nenhuma alteração morfológica significativa em termos da organização da administração escolar; pelo contrário, a máquina organizacional do Ministério da Educação torna-se “hiperburocrática” (Lima, 2012).

Mais recentemente, Manuel do Vale Fernandes Meira comprovou na sua tese de doutoramento como o paradigma burocrático tende a subsistir, a reinventar-se e a reconfigurar-se na ação organizacional escolar através de meios eletrónicos concluindo que a “capacidade técnica dos meios electrónicos contribuiu para a radicalização de algumas dimensões da burocracia weberiana” (Meira, 2020, pp. 391-392). Ainda sobre este tema, Lima (2021) verificou como a atual administração digital da escola assume contornos mecanicistas típicos da organização burocrática:

A administração digital de escolas e instituições de educação superior encontra-se em acelerado processo de implantação, através do recurso a plataformas que, mais do que simples instrumentos ou ferramentas, emergem como máquinas de administrar, dotadas de capacidade de decisão automatizada em várias áreas, de regimes de regras, de capacidade de exercer uma vigilância ativa, monitorizar as ações, emitir avisos e advertências, produzir cálculos e realizar avaliações, além de apresentar estatísticas e as representar graficamente de modo variável. Tudo isso de forma constante e sem interrupções, com a sistematicidade e a calculabilidade típicas de uma máquina, bem como com a especialização, a objetividade e a impessoalidade que são apanágio do funcionário especializado numa organização burocrática (p. 9).

De facto, não é apenas no desenho organizacional que a (neo)burocracia incrementa as suas exigências. Como vimos anteriormente (Merton, 1978; Willmott, 1993), a burocracia incrementa valores de modo a que o ator desenvolva uma visão endógena da organização para que o desempenho da sua função e o cumprimento das regras atopicamente prescritas se volvem mais importantes do que o objetivo primordial da organização. A própria especialização, exigida a cada um dos seus membros torna-se motivo para um estigmatismo organizacional que conduz os atores a serem decreto-dependentes, valendo-se exclusivamente pelo poder formal e normativo das regras e dos regulamentos, pelo que podemos encontrar um ator passivo (Etzioni, 1974; Morgan, 2006), acrítico e apolítico que se restringe ao cumprimento das suas funções, e cujas relações se caracterizam pela impessoalidade e verticalização típicas de uma estrutura organizativa burocrática.

À luz deste modelo, consideramos a performatividade como um instrumento de controlo burocrático que pretende promover a auto-regulação e diminuir as margens de liberdade e incerteza dos seus atores através de “fabricações” que conduzem “a profundas alterações no ato de ensinar e

na subjetividade do professor (…) que levam a um aumento da individualização, a destruição de solidariedades baseadas numa identidade profissional comum e a construção de novas formas institucionais de filiação baseada numa cultura empresarial” (Ball, 2002, p. 9). Como sugeriu Ritzer (2004) : “Bureaucracies emphasize control over people through the replacement of human judgement with the dictates of rules, regulations and structures” (p. 27).

A burocracia surge, assim, como uma “máquina” supra-humana - metáfora já utilizada por Max Weber18, autor dos princípios teóricos da burocracia - que persiste em não extinguir-se mas que, pelo contrário, encontra novos meios para a sua reinvenção.