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2. A VIRADA INDICIAL DO SÉCULO XIX

2.2 A autoridade do detetive

Daniel Link compreende que um gênero literário como o policial, muito mais do que um produto de determinada cultura, se trata de uma poderosa fábrica de percepções, “um perceptrum que permitiria analisar o modo em que uma sociedade, num determinado momento, imagina a si mesma” (LINK, 2002, p. 69). A imaginação, nesse caso, traduz algo mais importante do que o simples desfrute, algo da ordem do saber, da criação de pontos de vista e de princípios formais.

O gênero policial, particularmente, ao chamar a atenção de filósofos, sociólogos, psicanalistas e semiólogos revela uma potência da ficção. Não que as histórias de Doyle e Poe possam atuar diretamente sobre o mundo real mas, sobretudo, por lhe fazer aparecer (no real) seu próprio caráter ficcional.

Link lista dois motivos principais para o interesse no gênero policial. Um de ordem estrutural que faz autorizar ou bloquear percepções e a outra, a própria história e evolução do gênero com a progressiva abstração de suas características.

Fato é que o gênero policial traduz, estruturalmente e epistemologicamente, aspectos do mundo social que em muito excedem a literatura. Falar do gênero policial é também falar de certo regime de aparição da verdade e das relações desta com o Estados, com a moral e com a Lei (LINK, 2002, p. 72), a partir do crime, ou de maneira mais ampla, do delito.

O que o policial traz, como um relato de “Crime e Verdade”, é um modelo de funcionamento narrativo que articula de maneira espetacular o conflito e o enigma, como uma equação que determine as qualidades do relato em si, a partir da forma como se organizam suas variáveis. O relato policial é baseado em uma pergunta, cuja revelação se espera dentro do universo das ações relatadas. Ainda para Link:

Para além das ações, para além dos enigmas da trama, não há verdade. Trata-se de uma ideologia do discurso que pretende para si uma certa inocência, que pretende que o leitor somente submeta à prova de verdade aquilo que o discurso (literário ou

não) quer. A entrega a este pacto de leitura pode ser mais ou menos inocente quando se trata de uma variedade arquetípica do gênero, mas complica-se sensivelmente quando se trata de gêneros não evidentemente literários. (LINK, 2002, p. 74)

O ponto levantado acima traz consigo algo que parece ser do cerne das preocupações das ciências humanas quanto às suas possibilidades epistemológicas, à medida que dependem em maior ou menor grau, da escrita em forma narrativa. Aquilo que não é um texto declaradamente ficcional, passa a estar sob suspeita. O discurso da historiografia, os relatos etnográficos, as crônicas jornalísticas, os documentários cinematográficos passam todos a ser percebidos como potencialmente ficcionais, ainda que não sejam falsos ou mentirosos. A racionalidade narrativa do policial impõe a inevitável figura do detetive, capaz de ver e assinalar na desordem dos fatos, um sentido.

Uma estrutura caótica é classificada e nomeada. Coisas sem nenhum valor são percebidas e relacionadas de modo que quando consignadas, seu conjunto faça sentido. Eis o motivo pelo qual Link vê a obviedade de psicanalistas como Lacan e semiólogos como Umberto Eco e Thomas Sebeok perceberem no detetive uma figura epistemologicamente tão próxima a seus próprios campos de saber.

A literatura policial é, de certa forma, um protótipo das ciências humanas vindouras e da forma como se torna responsável pelo aparecimento da verdade. Como no “livro da natureza” em que as estrelas eram signos do fim do mundo, também na terra dos detetives, qualquer coisa é potencialmente um signo que pode e deve revelar uma realidade mais profunda: “A literatura policial instaura uma paranoia de sentido que caracteriza nossa época: os comportamentos, os gestos e as posturas do corpo, as palavras pronunciadas e as que se calam: tudo será analisado, tudo adquirirá valor dentro de um campo estrutural (ou de uma série).” (LINK, 2002, p. 75)

A forma como a verdade se manifesta no discurso não pode prescindir do respeito à uma “polícia discursiva” que opera não apenas sobre as condições do enunciável, mas também na reserva que se cria do enunciador enquanto ser superior, o gênio, o iluminado, o cientista obstinado, o artista inspirado. A possibilidade mesma do poder está atrelada ao que Foucault chama de “economia dos discursos de verdade”, trazendo em seu método genealógico a historicidade não apenas dos discursos, mas a maneira como discurso e verdade se relacionam em um determinado dispositivo.

O gênero policial enquanto dispositivo reúne as noções de Verdade, Lei e detetive e trata suas relações enquanto conflitos e enigmas, dispondo as possibilidades de relação do sujeito com esses conceitos. Enquanto ficção narrativa, se propõe como verdade interna de um sistema discursivo. Em gêneros não ficcionais, como na historiografia e na própria investigação policial, entretanto, costuma pretender-se uma correspondência com o real.

Parece que o problema da verdade poderia se resolver através da mediação do gênero discursivo. A ciência estaria protegida das formas da ficção caso atentasse para a relação entre as características do gênero com seu sistema global. Ocorre que as relações entre texto e gênero não deveriam ser vistas como um pertencimento e sim como participação. E aqui, o caso policial participa enquanto delito, mas, sobretudo, enquanto acontecimento extraordinário, como rompimento da ordem discursiva que exige reparação.

O rompimento que desenlaça o gênero policial desencadeia um sentimento de irrealidade. Através do assassinato, o intangível surge como uma sombra ameaçadora da desordem sobre uma rede de significados articulados. Todo o sistema racional encontra-se ameaçado, a menos que se encontre o assassino.

A morte é real. A doença é imaginária. O crime, ao que parece, é da ordem do simbólico (Édipo criminoso). O caráter completamente fantasmático das ficções policiais, sua irrealidade exemplar e os decorativos substratos psicológicos ou sociológicos, nos quais se delineia tudo o que importa (o crime e sua revelação), mostram até que ponto o policial é uma máquina de leitura: há um signo privilegiado (a morte de alguém) e um processo de compreensão desse signo. Na realidade sequer há um signo: há um cadáver, um morto, vários mortos, um desaparecimento, enfim: algo que o gênero rapidamente semiotiza. Assim como as antigas religiões semiotizaram a morte em forma de paradigmas antes irracionais (“é o chamado Deus”), o policial semiotiza a morte em forma de um paradigma pseudocientífico, tal como Brecht observou precocemente. (LINK, 2002, p. 80)

Para Link, a teoria da verdade do policial é psicanalítica, e não materialista. O crime é excessivo: mata-se apenas por uma desordem de espírito. A política é transformada em paixão (LINK, 2002, p. 81). O efeito sem causa conhecida põe o caso policial enquanto gênero, em contato com o extraordinário. O detetive, bem como o analista, são capazes de perceber um aberrante que está além da percepção comum e ao encontrar sentido naquilo que há de mais assombroso (muitas vezes demonstrando a simplicidade oculta daquilo que parecia mais bizarro), age como um adulto que acende a luz do quarto quando a criança tremia de medo dos monstros da escuridão.

O policial aparece como a figura do adulto, em uma relação com a da criança. Além do mais evidente sentido de obediência e submissão e agora agregamos uma possibilidade de que o detetive (mas também o analista, o médico, o historiador, o antropólogo e inclusive o policial real) figure como uma esperança de sentido naquilo que há de inominável. Ao caos das fantasias infantis impõe-se a esperança de um julgamento sereno para fazer notar que o sentido sempre havia estado ali. Que os terrores noturnos, tanto quanto os crimes contra a vida (a morte, portanto) não eram mais do que uma incapacidade de ver o “elementar”.

No caso médico busca-se uma tipificação, um rótulo que traga os fenômenos do corpo a categorias preestabelecidas. O caso policial, entretanto, não se deixa reduzir a tipologias prévias. O sentido não se dá ao classificar o assassino, mas ao encontrar a causa aberrante de um efeito também aberrante e, entretanto, simultaneamente claro e estarrecedor. No policial a falta de sentido é preenchido pelo signo da patologia social. No fundo é como se, ao iluminar o quarto da criança medrosa, tudo se possa ver, exceto o monstro que instantaneamente sai pela janela.