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O poder disciplinar: a fotografia e a polícia

6. A POLÍCIA E A FOTOGRAFIA: DISPOSITIVOS INDICIAIS

6.2 O poder disciplinar: a fotografia e a polícia

A fotografia e a polícia são contemporâneas. Os primeiros anos de desenvolvimento do processo fotográfico coincidem com o período de introdução da polícia profissional no Reino Unido (TAGG, 2005, p. 99). De fato, a fotografia proporcionou uma possibilidade técnica para que as práticas de governamentalidade se estendessem de um modo inédito. O registro e a identificação individual tornaram possível a criação e manutenção de um arquivo contendo informações detalhadas sobre os indivíduos e suas condutas. As lógicas pastorais se associavam aos princípios da racionalidade indicial.

O corpo, seu esquadrinhamento e seu arquivamento permitiam que o Estado tivesse um acesso direto ao sujeito, independentemente de sua vontade. A aparência física, as medidas corporais, as cicatrizes, as tatuagens e todas as

marcas corporais imagináveis, passaram a ter um poder de afirmação da autenticidade do “eu” muito superior ao da autodeclaração.

Em um regime indiciário de verdade, aquilo que se diz não vale tanto quanto o que não se diz, mas que assim mesmo é percebido. O sintoma, a impressão digital, a pegada na lama e a imagem fotográfica passaram, no século XIX, a contar com muito mais credibilidade do que a palavra dita, o juramento feito, o testemunho prestado. A mesma lógica predominava na Medicina, na Psicanálise, na Etnografia e na História: o traço percebido pelo especialista, independentemente da vontade de suas fontes, tinha um valor de verdade qualitativamente distinto do mero relato testemunhal. O verdadeiro era apreendido pelos ínfimos detalhes, visíveis apenas ao olhar do especialista.

A polícia constituiu-se sob essa lógica. Se o criminoso era, por essência, um adversário para a obtenção da verdade, era preciso revela-la a partir de meios alternativos. Historicamente, a má vontade dos suspeitos para com a verdade demandou métodos como a tortura, a ameaça, a espionagem e a delação. Durante o século XIX a lógica indiciária se impôs de maneira avassaladora. Por mais que a verdade surgisse através dos mesmos meios e que a polícia tenha continuado, secretamente, a exercer suas técnicas mais invasivas, o cientificismo da época passou a produzir um discurso completamente alheio aos órgãos de repressão tradicionais. É sob o signo da Verdade e do olhar que a tudo penetra que surge o moderno conceito de polícia.

Assumindo uma forma ou outra, sempre houve espiões, verdugos e carrascos. Isto que se tornou lugar comum em qualquer debate sobre segurança pública e que generosamente se denomina “inteligência policial”, pouco se diferencia em sua essência da antiga espionagem. Quando se requisitam os laudos periciais, em muitos casos já se formou convicção à respeito da autoria e materialidade do delito através de técnicas de inteligência mais obscuras. O que se busca é uma prova irrefutável, um argumento científico que possa lastrear a opinião, formada previamente, em um golpe de vista. Os espiões são invisíveis, as paredes têm ouvidos (e posteriormente escutas telefônicas).

A sociedade disciplinar dos espaços fechados parece estar dando lugar a um tipo de controle mais difuso e menos institucionalizado. O controle passa a se situar em uma rivalidade permanente que dispõe os indivíduos uns contra os outros com o propósito de motivá-los. O controle permanente substitui o exame próprio dos

mecanismos disciplinares. Retomando Kafka, Deleuze afirma que conforme a fórmula enunciada pelo Pintor Tintorelli em “O Processo”, teríamos saído da forma jurídica da “quitação aparente” das sociedades disciplinares em que o indivíduo sairia de um confinamento para entrar em outro, para a da “moratória ilimitada” que, segundo Deleuze, teria mais a ver com uma sociedade de controle, caracterizada pela dívida impagável. Estaríamos entre uma forma e outra. (DELEUZE, 1999).

Originado do poder pastoral do sacerdote, o indivíduo da sociedade disciplinar dos séculos passados era ao mesmo tempo único e identificável, alguém com uma posição fixa em uma massa. A massificação, entretanto, é a outra face da individualização. Na sociedade de controle, a senha substitui o número de série, marcando o acesso ou a rejeição à informação. A moeda de metal é substituída pelos fluxos imateriais de capital. As máquinas mecânicas e elétricas características das sociedades disciplinares são substituídas por complexas máquinas informáticas. Ao invés do risco da sabotagem tem-se o da pirataria e o da introdução de vírus. O próprio capitalismo sofre mudanças consideráveis:

Informam-nos que as empresas têm uma alma, o que é efetivamente a notícia mais terrificante do mundo. O marketing é agora o instrumento de controle social, e forma a raça impudente dos nossos senhores. O controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado, ao passo que a disciplina era de longa duração, infinita e descontínua. O homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado (DELEUZE, 1990, p. 224).

O panóptico não deixa de existir, ao contrário, expande-se em uma rede de informações alimentadas por câmeras de segurança e redes sociais. As estatísticas de saúde e as incidências de doenças psiquiátricas são controladas globalmente por organizações internacionais que determinam os riscos de tal ou qual epidemia. A própria normalização das aparências e das condutas parece ser modulada, cada vez menos pelo discurso médico-científico, e cada vez mais pelo discurso midiático. Posições ideológicas variam conforme a adesão a comunidades estéticas que não exigem filiação rígida, partidária, única e que não sujeitam seus membros mais do que os seduzem. As comunidades estéticas possuem sistemas mais frágeis e abertos se comparadas às agremiações políticas tradicionais, mas são também possibilidades, caminhos que se conectam, em novas formas do tecido social. (CÁCERES, 2013) .

Nesse contexto, determinar quais mecanismos de sedimentação pode-se considerar “policial” ou “político” parece ser uma tarefa árdua. Se o policial é a função que distribui os modos de ser, modos de ver e modos de dizer possíveis, na sociedade de controle, os mecanismos policiais não podem ser os mesmos que os da sociedade disciplinar.

Novas visibilidades são suscitadas por esquemas fluidos e velozes. Importa notar que sejam quais forem os meios de sedimentação de um estrato, sempre haverá uma função-polícia que a acompanhe, pois o que propomos é que a característica principal do policial, em um sentido amplo, é a de fazer simultaneamente com que algo apareça e signifique, por mais rápidas que sejam as transformações dos dispositivos.