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Singularidade, designação, atestação

4. O SIGNO FOTOGRÁFICO

4.2 Singularidade, designação, atestação

O mimetismo fotográfico não é, à priori, o caráter fundador da fotografia se considerarmos, por exemplo, que a impressão luminosa pode se dar mesmo sem a intermediação de uma máquina fotográfica. A impressão do traço fotográfico bem como do traço mecânico, não faz decorrer necessariamente um analogismo figurativo. Uma impressão digital não satisfaz a uma figuração de um dedo e menos ainda de uma pessoa.

Uma carteira de identidade possui dois signos visuais complementares que indicam o indivíduo: a fotografia de identificação e a impressão digital. Ambos compartilham de natureza indiciária, embora a fotografia, em tese, permita um reconhecimento imediato do referente enquanto que a impressão digital necessita de uma análise papiloscópica especializada.

Apenas um número muito reduzido de policiais está capacitado para realizar uma identificação papiloscópica através da comparação de uma impressão extraída de uma superfície ou de uma impressão para fins de comparação. A identificação não utiliza, como regra, a impressão realizada na carteira de identidade, mas na

10 O “isso foi”, enquanto noema da fotografia proposto por Roland Barthes em “A Câmara Clara”, será

ficha datiloscópica que fica no arquivo físico ou digital da polícia e que contém a impressão de todos os dedos, e não apenas do polegar.

A identificação policial é, sobretudo, a identificação de um duplo do indivíduo. Ao se confeccionar uma carteira de identidade o que se faz é replicar os signos referentes a uma pessoa (nome, data de nascimento, uma fotografia de rosto, uma impressão digital, etc), criando um documento que deve ser portado pela própria pessoa; e seu duplo, que deve permanecer arquivado para eventual comparação, não com o documento de identidade, mas com as impressões coletadas de um eventual suspeito.

A presença da impressão digital na via da carteira de identidade do portador não possui, em verdade, nenhuma utilidade prática. Não se pode imaginar que alguém que peça a carteira de identidade de uma pessoa vá realizar uma análise das papilas datiloscópicas com seus sulcos e deltas. Funciona, entretanto, para indicar a presença física do portador nos raios de controle do Estado. A impressão digital cumpre um duplo papel de, por um lado, manter uma relação de contiguidade física entre uma pessoa e o arquivo policial gerando um efeito de presença, e por outro, de diferenciar determinado indivíduo, de todos os outros, já que o índice é essencialmente único. Aqui cumpre entender a consequência de singularidade que a fotografia de identidade e a impressão digital têm em comum.

As Rayografias de Man Ray, bem como diversas outras técnicas de fotogramas, não tratam de imediato do efeito mimético da fotografia. Para Rosalind Krauss (1993, p. 69), “o fotograma estende até o limite ou torna explícito o que é verdadeiro para qualquer fotografia: toda fotografia é o resultado de uma impressão física que foi transferida para uma superfície sensível pelas reflexões pela luz”.

O fotograma desloca a questão da mimese da fotografia e já a princípio põe a questão da unicidade da marca indiciária. Antes de representar um referente, a impressão remete a um encontro pensado enquanto acontecimento. A marca deixada no filme é tão singular quanto o próprio referente. Essa característica remete à categoria geral dos índices e já havia sido notada por Peirce, sendo um dos traços que o particularizam, já que tanto o ícone como o símbolo são gerais e mentais.

A lógica da extensão metonímica da marca do objeto garante, além de um efeito de presença (os casais apaixonados sabem bem do valor da fotografia da pessoa ou de uma borrifada do perfume que se usa no papel de uma carta), quanto

de singularidade. Como registro de um encontro de um objeto com uma superfície fotossensível, a imagem fotográfica representa o acontecimento do encontro e é apenas pela metonímia que se faz representar o que chamamos “referente”.

A cicatriz possui possibilidades semióticas similares. Ao mostrar uma cicatriz alguém diz: “Isto foi uma queda”. Nesse caso, remete-se ao puro acontecimento, ao momento da marca que a causou. Entretanto, as possibilidades significativas podem ainda ser da ordem da metáfora e da metonímia. Quando se diz: “Estas cicatrizes são um mapa de meus repetidos encarceramentos” tem-se uma metáfora. Entretanto nos casos: “Isto foi uma baioneta”, ou “isto foi a guerra”, remete-se a entidades que não cessaram de existir após o acontecimento, mas cujo encontro com um corpo em determinado contexto, produziu o único resultado possível, considerando-se todas as variáveis envolvidas. Assim, a faca que produziu a cicatriz não remete a uma faca genérica, mas a determinada faca que esteve, de fato, envolvida. Igualmente, no caso da ferida de guerra, o referente pode ser apenas uma guerra específica.

Assim, o indício na fotografia ou não, denota um acontecimento e conota os envolvidos no mesmo acontecimento, não de forma genérica, mas de forma bastante específica. Têm-se então o acontecimento do contato físico como conteúdo da expressão que, por sua vez, se torna o significante de determinado referente por extensão metonímica. O índice representa seu ato constitutivo e único.

Todo signo possui alguma indicialidade. Uma letra escrita não deixa de representar também a seu ato constitutivo, o traço, a materialidade e a contiguidade física com algum referente. Ocorre que alguns desses signos extraem sua força expressiva muito menos da convenção do que do contato físico. A letra, embora possa ser (e seja frequentemente) interpretada como um signo indiciário, costuma ser entendida de maneira muito mais proveitosa como um símbolo. O mesmo não ocorre com uma pegada ou uma marca de sangue em uma cena do crime, que remete, antes de tudo, a um acontecimento, e subsidiariamente remete a seu autor.

A unicidade atribuída ao signo fotográfico pode então, ser pensada em dois graus. O primeiro deles é a referência a um encontro. O segundo a quem se encontra. Não é possível, entretanto, atribuir o mesmo índice a dois encontros ou a diferentes “encontrados”, sem que se incorra em erro.

A singularidade é um aspecto fundante, também da racionalidade policial. A busca pela autoria não demanda signos que denotem algo como: “alguém esteve

aqui e deixou uma impressão digital”, mas “essa impressão digital corresponde à presença de uma única pessoa e é dela separada apenas por uma porção maior ou menor de tempo”.

A fotografia não deixa de guardar profundas similaridades com a cena de um crime. Walter Benjamin detectara esta característica nas fotografias de Eugene Atget, como se verá adiante. Tudo está dado e se oferece ao olhar. “Isso foi” ou Era uma vez... A distância de uma pegada para um assassino ou de uma fotografia para um fotografado é o tempo. Eis o motivo pelo qual este tipo de índice remete ao impulso por uma narrativa que preencha o seu antes e o seu depois. Ocorre que a fotografia, por mais que ateste e certifique, nem por isto, significa. Se para Barthes a fotografia é um “isso foi”, não se indica, porém, “o que foi”, e aí reside a grande confusão que algumas leituras fazem da teoria fotográfica barthesiana.

A fotografia não mimetiza o real, mas aponta para ele no ato de sua constituição. A fotografia humanista de Sebastião Salgado pode ser criticada, por exemplo, por criar um “real” voltado aos interesses estéticos do fotógrafo e de seu público, retratando a pobreza de forma bastante carregada de um simbolismo cristão etc. Entretanto, por mais “kitschy,” que as consideremos, nem por isto poderíamos negar que aquelas pessoas estiveram em frente à sua câmera, pois cada foto aponta para sua existência.

A designação talvez seja o aspecto comum mais marcante entre a fotografia e os demais signos indiciários porque trabalha como um vetor do pensamento que permite conexões fortes dentro de uma racionalidade que somente se fez possível com a mudança no Saber (no arquivo do visível e do enunciável) que ocorreu no século XIX.

A designação fotográfica é uma forma de ver e fazer ver que rapidamente se associa à polícia. Não nos parece que tenha sido coincidência a precoce associação entre fotografia e polícia e a mudança paradigmática que fez de um bruto órgão de manutenção da ordem, uma instituição que se pretendia crescentemente “científica” e voltada para a obtenção da verdade. Não é à toa que o símbolo de diversas polícias no final do século XIX era o “olho”.

Tanto o policial quanto a fotografia têm o poder de apontar para o que merece ser visto. Ambos enunciam: “isso”, deixando de fora tudo o que não lhes interessou ou não pôde ser captado.

Figura 3: Impressões digitais isoladas - 1960

Fonte: A Pictorial History of Crime, p. 187

A contiguidade física gera ainda outras funções, para o signo indiciário que são comuns à fotografia e à polícia enquanto dispositivos. Como consequência lógica da função de singularidade, o índice atesta ontologicamente e ratifica a existência de seu referente (DUBOIS, 2012, p. 73). Pode-se produzir um retrato falado bastante parecido, mas que não terá o mesmo peso de prova de uma fotografia. Mesmo que fosse menos verossímil que o retrato falado, a fotografia não passou pela elucubração de nenhuma mente mais ou menos bem-intencionada. A fotografia serve como prova nem tanto pela verossimilhança (um traço de DNA não se parece com ninguém), mas pela função de atestação que representa independentemente de uma vontade. Essa visão traz vários problemas. A vontade na coleta e na leitura de provas está presente em toda parte, mas devemos lembrar neste ponto, que estudamos sobretudo os efeitos de sentido que julgamos úteis à compreensão do poder de verdade que a fotografia e a polícia extraem do índice.

Nesse sentido é importante pensar que o “real” do fotográfico é, antes de tudo, um efeito gerado pelo índice e que a partir de uma determinada época (últimas décadas do século XIX) foram codificados e permitiram codificações que tornam importante que retomemos suas características básicas a fim de compreender os efeitos de poder com os quais se relacionam.

O efeito de atestação, ou o índice como prova, é uma possibilidade de percepção, ou uma visibilidade que, talvez, apenas tenha se feito possível, quando associada ao cientificismo do século XIX, mas que perdura até hoje. O valor de

verdade que se dá às fotografias segue os mesmos caminhos que o poder relacionado aos indícios em uma investigação policial, mas também aos signos inconscientes na Psicanálise, do “golpe de vista” do médico, entre muitos outros aspectos das ciências humanas que adotam de forma mais ou menos declarada o paradigma indiciário como meio para atestar suas verdades.