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6. A POLÍCIA E A FOTOGRAFIA: DISPOSITIVOS INDICIAIS

6.3 Mapear o corpo

Figura 12: Alphonse Bertillon tomando medidas

Fonte: Metropolitan Museum of Art – New York. Disponível em: <https://www.metmuseum.org/art/c ollection/search/705511> Acesso em 25 de agosto de 2018

A experiência fotográfica na polícia a partir do século XIX é exemplar da tese foucaultiana que percebe um controle cada vez mais sutil através da observação milimétrica e do olhar benevolente que submete aquele que não pode ver àquele que tem a capacidade de ver o invisível. O fundo neutro, o corpo isolado e numerado, a obsessão pela nitidez e ainda os registros detalhados de cada característica da superfície corporal como os de cicatrizes e tatuagens conformam uma fotografia que atua como a guardiã do conhecimento e da verdade, inseparáveis do poder e do controle que engendravam (TAGG, 2005, p. 106)

A fotografia legitima o olhar perito, pois submete os signos a uma observação do estático, isolado e codificado de uma forma que seria impossível reproduzir sem essa tecnologia. De qualquer forma, seu poder não derivava apenas da verossimilhança. A fotografia não era uma imagem do real, mas uma realidade em si, legitimada pelo selo de indicialidade no momento de sua produção.

O exaustivo escrutínio do corpo encontrava na fotografia um método de captura que se sobrepunha a qualquer descrição. Tratava-se de uma aparição, de uma revelação que muitas vezes ultrapassava a capacidade perceptiva do olho humano, indicando signos inapreensíveis a olho nu. O corpo que se revelava à fotografia policial do século XIX, não podia não entregar tudo o que um olhar científico era capaz de perceber, através de uma observação minuciosa ou de um golpe de vista.

Mais do que repressão ou censura, o poder produz mundos que permitiriam responder: “em que condições isso poderia ser verdade?”, “Como isto poderia ser um ponto de vista aceito como verdadeiro”. As condições de força do século XIX não poderiam ter se organizado da forma que fizeram, sem que tivessem mobilizado dispositivos que davam aos signos indiciários um caráter de verdade (e portanto de poder), como a fotografia, a polícia, a psiquiatria, a Psicanálise e mais uma lista que poderia se estender englobando grande parte das ciências humanas. As relações de poder, portanto, não são resultados de uma configuração do saber, mas suas produtoras na medida em que cada formação histórica engendra suas vontades de verdade.

Poder e conhecimento implicam-se reciprocamente. Não há como produzir um sem implicar em efeitos para o outro. A este complexo se poderia chamar de tecnologias de poder:

O objetivo de Foucault, por tanto, não é o de escrever a história social das proibições, mas investigar a história política da produção de “humanidade” como objeto de conhecimento em um discurso que se concebe como “ciência” que se erige enquanto “verdade”. Como requisito prévio para tal estudo, nos oferece uma série de conceitos – um novo vocabulário [...] Mais ainda, deve dirigir nossa atenção a um âmbito novo e diferenciado: o dos mecanismos que não devem reduzir-se a teorias, ainda que sobrepostos a elas; que não podem se identificar com os aparatos e instituições, ainda que estejam baseados nelas; e não podem derivar de opções morais, ainda que encontrem sua justificativa na moralidade. Estas são as modalidades de acordo com as quais se exerce o poder: as tecnologias de poder. (TAGG, 2005, p. 116)16

Os dispositivos, portanto, não devem ser reduzidos às instituições, às teorias ou à moralidade a que recorrem para justificar a si mesmos, de modo que nem a fotografia nem a polícia conformam em si um lugar de poder, mesmo que sejam perpassados por ele a todo momento. Um aparato que reuniu fotografia e polícia no século XIX, alterando as condições de visibilidade até nossos dias, foi a ficha de identificação criminal (dando origem também à identificação civil universal).

Não é coincidência que, ainda hoje no Brasil, as carteiras de identidade sejam confeccionadas por órgãos policiais. A polícia é a instituição com legitimidade para atestar a individualidade além de garantir a segurança do todo e controlar as condutas de cada um.

Para que possa haver vigilância, em primeiro lugar é preciso individualizar as condutas. Vigiar é, antes de qualquer coisa, “conhecer”. É preciso que se pense que a vigilância pode estar ocorrendo a qualquer momento e, portanto, deve haver uma assimetria essencial na escultura de luz. O panóptico de Bentham talvez seja a estrutura que melhor represente a prisão e outras instituições tipicamente disciplinares, mas não deixa de ser também o modelo básico de dispositivos como a Medicina e a Psicanálise, mas também a polícia e a fotografia. É preciso ver sem ser visto. O paciente ou o cidadão comum não apenas sabem infinitamente menos do que o médico e o policial, mas ainda dependem de seus olhos capazes, para enxergar o invisível. O olho da máquina fotográfica empresta o efeito de sua “neutralidade” para conferir legitimidade às pretensões de verdade que as instituições engendram em cada caso concreto.

Em “Vigiar e Punir”, Foucault nos fala sobre a prática disciplinar do exame e da forma como o que antes era um privilégio visando à posteridade passou a ser,

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com a documentação exaustiva de cada existência individual, uma prática utilitária destinada a controlar a todos individualmente:

O exame com faz também a individualidade entrar num campo documentário: seu resultado é um arquivo inteiro com detalhes e minúcias que se constitui no nível dos corpos e dos dias. O exame que coloca os indivíduos num campo de vigilância os situa igualmente numa rede de anotações escritas; compromete-os em toda uma quantidade de documentos que os captam e os fixam. Os procedimentos de exame estão acompanhados imediatamente de um sistema de registro intenso e de acumulação documentária. Um “poder de escrita” é constituído como uma peça essencial nas engrenagens da disciplina. Em muitos pontos modela-se pelos métodos tradicionais de documentação administrativa. Mas com técnicas particulares e inovações importantes. Umas se referem aos métodos de identificação, de assimilação ou de descrição [...] Daí a formação de uma série de códigos da individualidade disciplinar que permitem transcrever, homogeneizando-os, os traços individuais estabelecidos pelo exame: código físico da qualificação, código médico dos sintomas, código escolar ou militar dos comportamentos e dos desempenhos [...] (FOUCAULT, 2014, p.185).

Através dessa codificação o que se faz é uma inversão das visibilidades em relação ao exercício de poder. Se anteriormente o poder deveria ostentar-se em toda a sua glória, com o regime disciplinar passa a pretender-se neutro, impassível e benevolente, como os agentes policiais que calmamente seguravam o delinquente para que fosse fotografado na fotografia do inspetor Byrnes (Figura 2), ou os psiquiatras como Charcot e suas aulas de terça analisando os pacientes em frente a seus alunos. Ao invés de temer um poder esmagador vindo do soberano, um poder invisível que pode estar em qualquer parte.

No regime disciplinar quem recebe os focos de luz são aqueles a quem o poder submete. Há que tornar-se invisível. Esta máxima tão ligada às milenares práticas da espionagem volta-se contra os corpos submetidos. Na polícia, entretanto, há uma complicação. Não se quer que o Estado se apague, que se torne completamente invisível, mas que se disfarce, que se apresente em seus uniformes e distintivos por mais que se saiba que uma ampla rede de informações secretas funcione no subsolo do social. A resistência que se tinha à institucionalização da polícia no início do século XIX, quando de fato tornou-se um serviço profissional, não advinha do risco da brutalidade de seus cassetetes, mas do medo da espionagem.

A espionagem é uma forma assimétrica de visibilidade, um mecanismo panóptico que permite ao Estado ver sem ser visto. “Na disciplina são os súditos que

têm que ser vistos. Sua iluminação assegura a garra do poder que se exerce sobre eles.” (FOUCAULT, 2014, p. 183)

Annateresa Fabris (2002) observa que Alphonse Bertillon havia notado que o retrato policial praticado entre 1850 e 1870 tinha ainda muito das práticas artesanais que marcavam o retrato burguês. Suas normas deveriam garantir a eliminação dos fatores de variabilidade, isolando o corpo estudado. Bertillon determinava cada fator como a iluminação do estúdio, a cadeira deliberadamente desconfortável para que o sujeito posicionasse a coluna vertebral no centro do espaldar.

Hans Gross, a quem mais poderia se creditar a sistematização da polícia científica do final do século XIX, reconhece a obra de Alphonse Bertillon como uma organização rigorosa e sistemática que permite à polícia das grandes cidades utilizar a fotografia como um meio de reconhecimento de pessoas. Declaradamente inspirado no livro “La photographie judiciaire” de Bertillon, o próprio Gross traça suas recomendações para as autoridades que farão uso da fotografia de identificação.

Se se trata de comparar entre si dois retratos ou um destes com um indivíduo, o mais conveniente é colocar ao retratado de perfil, porque assim se caracterizam de um modo mais perfeito as linhas fisionômicas, toda vez que não existe projeção das partes salientes do rosto, o que facilita muito a medição que é indispensável para comparar. Coisa muito diferente acontece quando a fotografia há de servir para o reconhecimento de uma pessoa. Em tal caso, de nada serve o retrato de perfil, porque este só nos mostra a fisionomia do retratado em uma só posição e, diferentemente, o retrato de frente nos permite apreciar o parecido pelo conjunto das linhas fisionômicas. Tão certo é o que afirmamos que não haveria nada de estranho que, visto de perfil, não reconhecêssemos nosso melhor amigo. (GROSS, 1893, p. 215)17

O rosto passa a ser estudado em detalhes, medido, comparado, descrito. Não tarda para que surjam estudos buscando conectar características fisionômicas a qualidades morais e mesmo à propensão para o crime. A partir da sistematização proposta por Bertillon e sua implementação pela Prefecture de Paris, a imagem fotográfica passa a compor um extenso mecanismo de controle que conecta cada delinquente a uma ficha na polícia.

A necessidade do sistema originou-se pela formação de grandes centros urbanos, subitamente assomados por uma criminalidade bastante distinta da que

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havia em zonas rurais. A burguesia necessitava de meios que a livrassem das ameaças à sua propriedade e integridade física.

A princípio, a preocupação principal era a questão da reincidência. Não havia como depender, enquanto instrumento de identificação, apenas dos nomes próprios em uma metrópole urbana. A reincidência faz parte da instituição da imagem do “indivíduo perigoso”, fundamental no imaginário da sociedade burguesa.

Paralela à definição do corpo burguês, do corpo que respeitava a lei, é a definição do corpo criminoso, do corpo que colocava em risco a sociedade. Passível de um biótipo, esse corpo será passível de arquivamento e classificação, propiciando uma identificação alicerçada nos desvios da média. Nesse contexto a fotografia confere um novo significado à noção de identidade. (FABRIS, 2002, p.33)

Figura 13: Tableau Synoptique des traits physionomiques

Fonte: Metropolitan Museum of Art – New York.

Disponível em:

<https://www.metmuseum.org/art/collection/sea rch/289245> Acesso em: 25 de agosto de 2018

É portanto, nessa época que os traços corporais passam a ser codificados, com pretensões científicas, como índices de periculosidade. A diferença, a variação fisionômica que diferencia a aparência do outro daquela do ““homem médio”” de Quetelet18 passa a atuar como signo que pode depor contra a própria pessoa.

Não foi apenas a instituição policial que fez uso da “fotografia científica”. Também no campo da etnogfrafia os métodos de Bertillon foram utilizados, além de ter tido uma prolífica presença em instituições disciplinares a fim de melhor controlar os “loucos”, os pobres, os doentes etc.

O Estado utilizou a fotografia e lastreou a autoridade das imagens garantindo um novo regime de verdade, possibilitando a consolidação dos governos capitalistas (SCORSATO, 2012). A administração e a gorvernamentalidade foi possível apenas na medida em que o Estado era capaz de documentar e vigiar seus cidadãos em um mecanismo panóptico generalizado.

No Brasil, o arquivo fotográfico da Casa de Correção da Corte guarda imagens feitas dos prisioneiros em poses menos sistematizadas, em fichas pouco estruturadas em relação àquelas feitas sob influência do que ficaria conhecido como “bertillonagem”.

A grande questão de Bertillon, e o que provavelmente o fez famoso, foi a forma como buscou solucionar o problema do enorme arquivo fotográfico que se formava. Quanto mais se proliferava, menos utilidade tinha. Era impossível comparar as cem mil fotografias que tinham sido acumuladas em seu arquivo, com cada uma das cem pessoas que eram presas em Paris diariamente (BERTILLON, 1890).

Obviamente o nome autodeclarado pelo delinquente era, automaticamente, posto em suspeita. Era preciso extrair do próprio corpo do preso as características que indicassem seu lugar no arquivo. Reunindo a fotografia de frente e de perfil às variadas anotações sobre características gerais e particulares observáveis no corpo do indivíduo, era possível criar um sistema de classificação bastante confiável e que se podia consignar em fichas.

As medições feitas em um indivíduo, do comprimento de seus ossos às demais, eram anotadas em uma ficha pessoal que continha também a referida fotografia do suspeito as descrições dos detalhes físicos (incluindo cicatrizes e tatuagens. Mais tarde as fichas foram completadas pela impressão digital. (SCORSATO, 2012, p. 7)

18 QUETELET, Adolphe. A treatise on man and the development of his faculties. Edinburgh: William and Robert Chambers. 1842.

O esquadrinhamento do corpo conheceu, com Bertillon, uma sistematização sem precedentes. Seus diagramas nos quais as marcas permanentes como cicatrizes e tatuagens eram reproduzidas, revelavam os efeitos de poder que faziam o corpo atuar como seu próprio delator. Trata-se aqui de uma questão de correspondência. Todo indivíduo real deveria ter uma presença nos arquivos públicos, mas os “anormais” deveriam ser apreendidos em todos os seus detalhes.

O arquivamento das marcas dos corpos não se limitou a usos criminais. A própria questão da identidade civil e universal, após as técnicas de organização de arquivo propostas por Bertillon, se tornou possível, fazendo com que o Estado mantivesse um registro de cada indivíduo. Esta prática pôde garantir aspectos da governamentalidade que seriam impensáveis antes da “bertillhonagem”.

Mais do que retratar cada indivíduo e suas particularidades, a fotografia judicial era um efetivo instrumento de controle social, que “inscreve no próprio código de figuração todos os preconceitos e efeitos de poder inerentes ao seu uso” (FABRIS, 2002, p. 35) Quanto mais se afastava do “homem médio”, mais “digna de registro” se tornava uma pessoa.

Ocorre aí um efeito interessante. O indivíduo cujas características pessoais e marcas físicas eram capturadas pelo sistema de identificação era por sua vez marcado pela própria inscrição no arquivo policial. Era como se o arquivo se tornasse uma extensão do próprio corpo e que depusesse contra ele, contra seu caráter e respeitabilidade. O simples fato de estar “fichado” criminalmente passou a ser a principal testemunha contra qualquer suspeito ao mesmo tempo em que tornava já suspeita qualquer pessoa registrada. Qualquer policial sabe bem a importância de perguntar: “você tem passagem?”. Um registro nos arquivos da polícia já é um argumento pela culpa.

O aparato jurídico-policial ocupa-se de controlar o indivíduo perigoso. Não se trata de punir quem cometeu um crime, mas quem é irremediavelmente um criminoso. Os que possuem no corpo as marcas da criminalidade (raça, tatuagens, vestuário, modos de linguagem) são suspeito a priori.

Figura 14: Ficha de identificação criminal

Fonte: Pictorial History of Crime, p. 35